http://www.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1004200009.htm

FOLHA DE SAO PAULO - TENDÊNCIAS/DEBATES
São Paulo, segunda-feira, 10 de abril de 2000
 



 
 
 

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           UM GOVERNO QUE VAI BEM

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É um fenômeno social e político sem precedentes na América Latina:
mesmo sem usar métodos ditatoriais abertos", instaurou-se uma
ditadura do modelo econômico-financeiro,
que subordina os agentes políticos e apresenta-os -é o caso de FHC- como se eles mandassem ou "conduzissem" alguma coisa.
 



 

TARSO GENRO








Passado o verão e terminado o Carnaval, começa de fato no país o ano político.

O governo Fernando Henrique está em alta, pois durante os meses de dezembro, janeiro e fevereiro, a oposição esteve praticamente ausente da crônica política e dos noticiários nacionais.

Falta de consistência?

Perseguição midiática?

Genialidade tucano-pefelista?

Não se trata disso.

Ocorre que a tensão política que reflete na imprensa, valoriza a oposição,
faz ferver os cronistas políticos e indigna os editorialistas é determinada
pelo comportamento das Bolsas de Valores.

Estas, por seu turno, dependem dos
humores de Wall Street.

Como as Bolsas vêm operando mais ou menos dentro do  figurino e sem problemas agudos à vista, o governo vai muito bem.

Mas essa aparência reflete a essência do período histórico que atravessamos?

Hoje o Estado brasileiro, além de estar mais endividado do que sempre esteve, vem realizando uma moratória de fato.

Vem caloteando o pagamento de
dívidas vencidas e devidamente previstas no Orçamento da União e também vem
instrumentalizando o Poder Judiciário para revogar milhares de sentenças
trabalhistas transitadas em julgado, tanto originárias dos diversos planos
econômicos, como de outras ilegalidades que cometeu.

O Estado brasileiro, na verdade, é inadimplente e joga com expedientes ilegais para aparentar uma saúde financeira que não existe.

O FMI sabe disso, mas faz vistas grossas
porque, por enquanto, lhe convém.

A "coisa julgada" e mesmo decisões judiciais tecnicamente executáveis de
caráter antecipatório não são mais obedecidas no país quando o governo não quer.

O Estado de Direito também está desconstituído por centenas de medidas
provisórias e os gastos sociais com saúde, universidade pública e assistência social são transferidos sem nenhum escrúpulo para pagamento de juros e serviços da dívida, visando estimular a tranquilidade dos credores
externos.

A violência endêmica, a corrupção no Estado, a violação dos direitos humanos e sociais, as centenas de milhares de crianças nas ruas,
tudo aumenta de forma desmesurada, mas ainda assim o governo navega em águas
tranquilas e o presidente viaja e sorri.

É um fenômeno social e político sem precedentes na América Latina: mesmo sem
usar métodos ditatoriais "abertos", instaurou-se uma ditadura do modelo
econômico-financeiro, que subordina os agentes políticos e apresenta-os -é o
caso de FHC- como se eles mandassem ou "conduzissem" alguma coisa.

Ao mesmo tempo que a oposição, apesar dos esforços e destas condições objetivas, não
consegue mobilização social de contestação política nem maiorias eventuais
no Parlamento para combater o governo.

Não é uma ditadura militar, não é um cesarismo clássico ou um modelo
napoleônico porque o próprio cinismo e mediocridade dos agentes do modelo
não têm brilho nem mesmo vontade de mandar.

Trata-se de um novo tipo de
dirigismo político, de caráter burocrático-financeiro, em que o empregado do empregado do sr. Soros inclusive vale mais do que os três grandes partidos
do poder: PSDB, PFL e PMDB.

Qual o panorama de fundo desse painel?

O mercado de ações nos EUA é de US$
13,5 trilhões, ou seja, em torno de 40% do Produto Mundial Bruto.

O mesmo mercado de ações nos EUA corresponde a 150% do seu Produto Nacional Bruto: quase o dobro do recorde anterior de 1929.

Desde o final de 1996 o índice do mercado de ações americano cresceu 77%, mas a taxa de lucro das empresas subiu apenas 2%!

É um crescimento financeiro sem lastro e sem fundamento macroeconômico.

Todo o planeta gira, hoje, em torno desse novo processo de acumulação sem
base na produção.

De tempos em tempos o modelo mundial cobra a conta da periferia e da semiperiferia, baseado em duas hegemonias cristalizadas: uma hegemonia ideológico-cultural, que sedimenta no imaginário social a visão do
"caminho único", ou seja, de que estamos vivendo no presente o futuro da
humanidade; e uma hegemonia econômico-financeira, cuja própria
artificialidade é a ameaça mais patente para que mantenhamos o bom
comportamento periférico e que, se for rompido, poderemos ter mais pobreza e
mais desemprego.

Transformamo-nos conscientemente numa mera extensão subordinada do festim
global de caráter financeiro, que está gerando um novo tipo de colonialismo:
o colonialismo da pós-modernidade, no qual o conceito de nação sucumbe na
periferia e na semiperiferia e cresce nos países do núcleo orgânico do capitalismo, sobre os escombros de países como o nosso.
 
 
 

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Tarso Genro, 53, advogado, é membro do Diretório Nacional do PT e
coordenador do Conselho Político da Frente Democrática e Popular.
Foi prefeito de Porto Alegre (RS) de 1993 a 96 e deputado federal de 1989 a 90.
É autor de "Direito Individual do Trabalho" (LTr) e de "Utopia Possível"
(Artes e Ofícios), entre outros.

Mais a respeito em http://try.at/HeitorReis (textos próprios).