http://www.abordo.com.br/mctavares/art01_00.htm
 
 
 
 
 

=========================================

MEMÓRIAS DE UMA ADOLESCENTE
DO SÉCULO XX

=========================================









Agora, no limiar dos meus esperados setenta anos e do novo milênio, tenho de lutar, mais uma vez, contra uma nova ditadura do pensamento hegemônico globalitário que promete uma "falsa madrugada".
 
 
 
 

Maria da Conceição Tavares
Folha de São Paulo, 16/01/2000 


 
 




Nascida em plena crise mundial, no ano de 1930, passei minha infância às voltas com o fascismo, começando pela ditadura portuguesa de 1932.

O Primeiro Ministro Salazar era um economista formado em Oxford, para quem o "ajuste fiscal" e a "moeda forte" eram uma obsessão.

Apesar de suas simpatias pela Alemanha, não tentou copiar a política heterodoxa do Estado Alemão.

A divisão internacional do trabalho proposta pela Inglaterra era baseada nas "vantagens comparativas" e aceita como "natural" pelas elites dominantes portuguesas.

Pelas décadas seguintes, Portugal continuou exportador de vinho, cortiça e portugueses.

Aos sete anos de idade fui emocionalmente atingida pela guerra civil de Espanha, que estava no auge.

O esmagamento da Catalunha batia pesado em casa, porque meu pai era anarquista, meu tio comunista e minha mãe católica.

Eu me tornei católica de esquerda aos 12 anos, o que me permitiu compreender e superar não apenas as brigas da família, mas as noites de insônia da queda de Paris, da batalha de Leningrado, da bomba de Hiroshima.

Já o terror supremo dos campos de concentração e do holocausto, aquele horror que levou Malraux a afirmar que "o demônio estava sobre o Mundo", esse não consegui superar nunca.

Quando terminou a 2a  Guerra Mundial e se sonhou com a Paz Perpétua e os avanços do socialismo pareciam irreversíveis, eu era uma adolescente de 15 anos e coloquei-me como esperança de vida a idade de 70 anos.

Estava  segura que nesse horizonte de tempo veria os avanços da educação, da medicina e do progresso técnico suficientes para universalizar o conhecimento, e que a ignorância e a miséria seriam banidas da face da Terra.

A descolonização, a liberdade dos povos, a igualdade e a fraternidade estavam a caminho e a justiça social conduziria o milênio a um final esplendoroso.

Minhas esperanças, como as de tantos da minha geração na Península Ibérica, começaram a ser frustradas pelo imediato fracasso da liberdade política.

Mal entrei na Universidade, os centros acadêmicos de estudantes foram fechados por ordem de Salazar, e até seminários sobre a República de Platão eram considerados subversivos.

O primeiro e único grande ato de massas que participei foi o do enterro de Bento de Jesus Caraça, o grande matemático, democrata e socialista que inspirou uma geração inteira de intelectuais e trabalhadores portugueses.

Em 1947 as ditaduras de Salazar e Franco foram confirmadas por uma decisão anglo-americana para conter o "avanço do comunismo" e, em troca, os governos ibéricos cederam bases militares ao governo americano na porta do Mediterrãneo.

A esquerda de qualquer matiz estava amordaçada, na prisão ou no exílio, e assim continuou até a Revolução
dos Cravos em 1974, que restaurou as liberdades políticas e tentou dar fim ao nosso passado colonial de 500 anos.

Eu não fiquei para testemunhar essa longa noite branca e vim "descobrir o Brasil".

Em fevereiro de 1954 aportei no Rio de Janeiro em busca da liberdade, da democracia e do emprego.

Poupo aos leitores os avanços e recuos da trajetória brasileira.

Não por acaso, eu e os brasileiros da minha geração lembramos os anos de J.K. como os anos dourados, em que decidi naturalizar-me brasileira, tamanho era o dinamismo desta sociedade.

Apesar dos sobressaltos militares, dos 21 anos de ditadura, da injustiça social, do delírio consumista da classe média, do caos metropolitano, sempre consegui ter esperança na criatividade do povo brasileiro.

Ser "contra-elite" e crítica da economia política só começou mais tarde, no início dos anos 60.

Hoje já virou um hábito, uma "personna", quase uma obsessão.

Mas ainda mantenho a esperança de então como um fio de vida, plantado na minha cabeça, sobretudo pelos ideais de Darci Ribeiro, Mário Pedrosa e Moacyr Werneck de Castro.

A visão do futuro - ainda vamos ser uma democracia multirracial nos trópicos - ajudou-me a agüentar vinte e um anos de ditadura com mais otimismo que período equivalente de salazarismo .

A dúvida e a angústia sobre o "Futuro do Brasil" só começou para valer de 1994 para cá.

Mesmo a militância no PT e o mandato de Deputada foram insuficientes para canalizar minha indignação ante a transição  democrática apodrecida, o desmonte da Constituição e o retrocesso dos Direitos Sociais.

Assisti ao massacre da desconstrução da Nação, vendo em Brasília meus ex-companheiros de luta democrática irem se convertendo às "leis do mercado e do Império" com uma naturalidade e uma falsificação de consciência que nenhuma tortura ou campo de concentração conseguiria provocar.

Não eram movidos pelo medo nem apenas pelos interesses, mas pela vaidade e a arrogância de uma "casta dirigente" absolutamente segura de seu saber e do poder delegado.

Protegiam-se "moralmente" amparados na sua vida ilibada até aos 50 anos e na pobre retórica de que "o mundo mudou"!

O resto da plutocracia foi levado de roldão: os de quarenta e trinta anos terminaram enquadrados numa visão unidimensional do mundo.

Agora, no limiar dos meus esperados setenta anos e do novo milênio, tenho de lutar, mais uma vez, contra uma nova ditadura do pensamento hegemônico globalitário que promete uma "falsa madrugada".

Ao que parece, terminarei minha vida às voltas com o "fascismo de mercado", uma doutrina totalitária "branda" que minou a resistência moral de duas gerações.

Volto este ano à Universidade, para revisitar a crítica e a esperança junto com os mais jovens, os que já perderam a sua adolescência e ainda não sabem como virar cidadãos do século XXI.
 
 
 
 
 
 

======================================
Mais a respeito em http://try.at/HeitorReis (textos próprios).
 
 

- Fale com Heitor Reis: heitorreis@brfree.com.br
- Leia textos de Heitor Reis publicados por terceiros clicando aqui.

 
BORDER=
by Banner-Link