Vila Real, Março de 2002
«Há poucas coisas tão fascinantes quanto meditar a
respeito da maneira como se desenvolve o comportamento
humano.»
Robert M.
Gagné
O presente trabalho, aborda o tema da (in)disciplina, bem como os problemas de comportamento na sala de aula, uma temática cada vez mais actual e que no dia a dia vem preocupando toda a comunidade educativa. Fundamentando-se numa bibliografia variada de diversos autores, que ao longo dos anos se vêm preocupando com estes problemas comportamentais, aborda também, na segunda parte, o caso específico dum antigo aluno com n.e.e. (necessidades educativas especiais), que o autor apoiou no ano lectivo de 1999/2000 na Escola EB 2,3/S de Seixedouro (nome fictício), na sua qualidade de professor de Apoio Educativo. Trata-se dum aluno do 6º Ano de escolaridade, com graves problemas de comportamento, que era considerado o “terror” de toda a Escola. João del Rei (nome fictício do aluno), foi colocado em “Currículo Alternativo”, de harmonia com o Artº 5º e alínea b) do Artº 11º do Dec-Lei 319/91 de 23 de Agosto, tendo-lhe sido aplicado um P.E.I. (Plano Educativo Individual), que contemplou de entre outras, a inserção duma área de mudança comportamental dinâmica, que ajudou o aluno a controlar-se e a contribuir para um melhor ambiente escolar na sala de aula. Hoje esse antigo aluno é um jovem de 18 anos, habilidoso mecânico de motorizadas em Seixedouro, que recorda com prazer essa estratégia comportamental, que o levou a adquirir um comportamento social aceitável, contribuindo ainda para um aproveitamento escolar razoável.
FUNDAMENTAÇÃO
LEGAL |
Pag.1 |
RESUMO |
Pag.3 |
ÍNDICE |
Pag.4 |
I PARTE
TEÓRICA |
Pag.5 |
INTRODUÇÃO |
Pag.7 |
PROBLEMAS DE
COMPORTAMENTO |
Pag.9 |
II PARTE
PRÁTICA |
Pag.13 |
PREÂMBULO |
Pag.14 |
1- João del Rei: o “terror” da
Escola. |
Pag.16 |
2- João del Rei: afinal um antigo
aluno meu do 1º Ciclo
|
Pag.19 |
3- Intervenção
realizada |
Pag.21 |
4- CONCLUSÃO |
Pag.26 |
BIBLIOGRAFIA |
Pag.27 |
LISTA DE
ANEXOS |
Pag.28 |
Não é fácil definir “ disciplina”, quer por razões de ordem
pedagógica, quer por razões de ordem terminológica. De ordem pedagógica, porque
a disciplina decorre de uma determinada concepção estereotipada de criança e de
jovem envolvidos em contexto de ensino aprendizagem; de ordem terminológica,
porque, como sustenta MAGALHÃES (1989, p. 40), “a indisciplina não se define por si, ela surge
como a negação de qualquer coisa, seja essa coisa norma ou padrão socialmente
aceite, ou regra arbitrariamente imposta".
Neste contexto, não resistimos à tentação de citar NIETZSCHE (1987, p.16): «Como poderá nascer algo do seu contrário? Pelo contrário, é no íntimo do ser, no imperecível, na coisa em si que deve encontrar-se a sua razão de ser, e não em qualquer outra parte.» Esta passagem de Nietzsche chama-nos a atenção para a necessidade de valorizar e promover a cultura do NÃO e substitui-la por uma cultura positiva da disciplina em que se estimula o aluno a praticar os actos considerados positivos (pelo prazer de fazer) e não sob a ameaça ou mesmo a punição.
Muitas crianças (alunos), durante o seu processo de desenvolvimento e por diversas razões, esbarram com dificuldades de vária ordem, quer no relacionamento, quer na comunicação com os outros, exibindo comportamentos considerados desajustados, perturbadores ou mesmo associais. Porque surgem estes comportamentos? As causas são muito variadas. Vejamos algumas:
A organização físico-intelectual do indivíduo (problemas cerebrais, deficiência intelectual, anomalias genéticas[1]
Tentativas do aluno chamar a atenção do professor.
Inadaptação à Escola ou ao próprio docente.
O contexto comunitário, cultural e familiar em que a criança vive e que tem igualmente muita influência no aparecimento destes comportamentos. Afirma LOURENÇO (1996, p.99), que o pai ou a mãe estão quanto mais a contribuir decisivamente para a prevenção de comportamentos anti-sociais do seu filho, quanto menos este “estiver de viver angustiado com os problemas de emprego, saúde e habitação”.
Carências económicas e culturais. É verdade, que crianças com comportamentos inadequados, existem em todas as classes sociais, mas destacam-se pelo seu número e gravidade, nas camadas mais baixas da sociedade. Na verdade as carências económicas e culturais, o alcoolismo e a droga, bem como a proveniência de minorias socioculturais favorecem o aparecimento e agravamento destes comportamentos.
Causas imputáveis à própria escola. Embora o tratamento e a prevenção destas atitudes dos alunos, extravase a própria instituição escolar, cabe a esta a espinhosa missão, de conseguir ambientes afectuosos e de calmaria, onde esses comportamentos se amenizam ou mesmo se modifiquem. Casos infelizmente porém existem, em que é a própria escola a principal responsável pelo aparecimento de comportamentos inadequados nos alunos. Assim escolas onde os professores não supervisionem as várias dependências escolares e não falem com os alunos, não se configurará neles a consciência mútua do cumprimento e aplicação das regras expressas no Regulamento da Escola. Aulas mal organizadas, leccionadas por docentes pouco preocupados com as aprendizagens dos seus alunos, tornam estes indisciplinados e fazem neles desenvolver a revolta, a inadaptação e atitudes desviantes. Vem a propósito referir KOUNIN (1970), que citado por SANCHES(1996), estabelece uma relação proporcional directa entre a capacidade para a gerir as aulas e o aparecimento de comportamentos perturbadores nos alunos, havendo, uma grande diferença entre os professores, no modo como planificam e gerem o seu tempo de aula. Os professores designados pela cita autora de “bons gestores”, conseguem formas de prevenir a ocorrência de comportamentos inadequados nos seus alunos e conseguem por isso mesmo mantê-los atentos e motivados. Estes docentes, vão ao ponto de elaborarem contratos pedagógicos com os alunos, nos quais inserem um grupo de regras axiologicamente fundamentadas, para cujo cumprimento fazem apelo ao reforço positivo. E, sem dúvida, que aceitar pedagogicamente a regra é já meio caminho andado para o seu cumprimento. Como afirma ESTRELA (1994, p. 52) «...se a regra não é considerada como legítima, ela surge aos olhos do aluno como uma arbitrariedade do professor e só será respeitada coercivamente.» Também sabemos, que fazer cumprir a regra pela punição, é uma prática pedagogicamente inaceitável, felizmente cada vez mais em desuso. Sobre este assunto MARTINEZ (1993, p. 37) afirma: “Uma educação baseada no castigo não merece tal nome.” E LOURENÇO (1996, p.95, idem), ainda a este respeito acrescenta: “A punição é uma óptima coisa...mas apenas na condição de não ser utilizada.” Por aqui se deduz, que alunos e professores, muitas vezes culpam-se reciprocamente, pela indisciplina. Afirma DAWOULD (1987) citado ESTRELA (1994, pág. 76) em relação à opinião divergente de professores e alunos no que diz respeito às causas dos comportamentos inadequados, que “Enquanto os professores tendem a atribuir as razões de indisciplina a características psicológicas do aluno ou ao meio familiar, os alunos atribuem grande parte da responsabilidade ao professor”
A Escola não pode por si só, resolver todo o tipo dos problemas de comportamento dos seus alunos, (cuja génese por vezes ultrapassa a própria instituição escolar) mas no que concerne às causas imputadas à própria Escola, esta terá que as assumir e resolver, procurando conhecê-las e adoptando atitudes e estratégias pedagógicas adequadas à sua resolução. A mudança comportamental, que se pretende, passa muitas vezes por uma mudança comportamental por parte dos professores. Vem a propósito reler aqui o “Despacho Normativo nº 14.723.001”, de SAMPAIO (1994, pp.237 - 238):
“1- É obrigatório saudar
todos os dias, directa e individualmente, cada aluno, tratando-o pelo seu nome
próprio.
2- É obrigatório que nas
fichas de avaliação passem a constar apenas as apreciações positivas das
capacidades e qualidades humanas dos alunos, sendo os aspectos negativos da
avaliação tratados verbalmente, em diálogo confidencial, entre professor e
aluno.
...6- É proibido, em
qualquer circunstância, pôr alunos fora da aula, suspender turmas ou marcar
faltas disciplinares.
...8- É obrigatório que os
professores ajudem a descobrir o que cada aluno quer ser quando for adulto e
passe a escalonar as disciplinas por ordem decrescente de valor, tendo em
atenção que «nucleares» são as necessárias para alcançar esse
objectivo.
9- É obrigatório ensinar,
uma vez por mês, uma «coisa» que a maioria dos alunos tenha interesse em saber,
independentemente do programa, ou criar as condições para que os alunos a possam
aprender.
10- É obrigatório que o
delegado de turma dê conta aos professores, dos alunos que evidenciam sinais de
tristeza ou dificuldades, para que o professor os possa receber discretamente
com intimidade e sigilo para os ajudar.”
Hoje a escola é local de conflitualidade, reflectindo uma realidade social degradada e amplificada pela guerra de audiências da própria comunicação social. Existe um número cada vez maior de alunos, que por não estarem devidamente integrados na turma, na família e na comunidade, vão deambulando pela escola, exibindo um tipo de relações e barulhentas e mesmo associais, perturbadoras do ambiente propício à aprendizagem. E os professores, frequentemente recorrem às ameaças, às constantes repreensões, ou às “medidas educativas disciplinares”, expressas no Artº 14º do Decreto-Lei nº 207/98 de 1 de Setembro o que quase sempre, acaba por não dar resultado.
Muitos dos problemas resolver-se-iam com certeza se as escolas fossem verdadeiramente inclusivas, para o que deveriam, conforme refere CORREIA (1997) “tornar-se centros para actividades comunitárias, que se ajustassem a todas as crianças e respectivas famílias».
Certamente que uma mudança profunda de atitudes na sala de aula
por parte do professor, iria influenciar positivamente uma disciplina positiva
na classe. Como refere LOPES (1998, p.72) “A sala de aula estruturada pode também
ajudar não só na aprendizagem, mas também no lidar com os problemas de
comportamento.”
Concluímos,
lembrando que não é na luta desenfreada por uma pseudo e aparente normalidade, à custa de atitudes
coercivas, que se situa a disciplina escolar, o sucesso educativo ou mesmo a
nossa própria evolução. Esta é sobretudo um círculo aberto, não encerrado por
isso à mudança e à diferença. Como afirma MORIN «...somos um produto "desviado" da história
do mundo; isto permite-nos compreender que a evolução não é qualquer coisa que
avança frontalmente, majestosamente, como um rio, mas parte sempre de um
"desvio" que começa e consegue impor-se, se torna uma grande tendência e
triunfa.».
Então,
as diferenças (mesmo as comportamentais) são imprescindíveis para a nossa
evolução e se nos fecharmos a elas, encerramo-nos na nossa própria limitação e
egoísmo, reduzindo os alunos a meros clones educativos mecanizados e
formalmente amestrados. Deve ser este o maior risco que a Escola deve saber
evitar, de gravidade sem dúvida muito maior que os problemas de comportamento ou (in)disciplina.
Quem hoje for a Seixedouro[2], logo à entrada do lado esquerdo, vê uma oficina de motorizadas. O melhor dos mecânicos dessa oficina chama-se João del Rei[3], um jovem de 18 anos. A irmã (dois anos mais nova) conversa comigo a respeito de algumas cenas escolares, aquando minha aluna na Escola do 1º Ciclo. Pedi-lhe para me falar do irmão…e logo lhe teceu as mais ternas e justas considerações: «..é uma excelente pessoa, capaz de dar a camisa do corpo, todos na oficina o estimam e então o patrão…é como que fosse um pai para ele!”. E acrescentou ainda os atributos de trabalhador, amigo, familiar, respeitador, que não bebia, não fumava, que era muito alegre e que adorava brincar com os mais novos, mas…
Foi preciso invocar a minha condição de seu ex-professor, para que me segredasse o porquê daquele “mas”:
- Bem quero dizer, que o João tem aquele defeito, que sempre teve na Escola e que o senhor tão bem conhece!
E continuou:
- Tem certas ocasiões, que lhe vem aqueles arremessos, fica todo vermelho, fora de si e parece que come este mundo e o outro!
- Então queres dizer – retorqui interessado- que…aqueles acessos de fúria, que lhe davam na Escola do 1º Ciclo e no 2º Ciclo ainda se mantêm?!
- Sim, de vez em quando. E nessas alturas, oh rapaz do diabo, quem o há-de aturar?!
- E nessas ocasiões, como reagem vocês cá em casa? Berram com ele?
- Olhe cá em casa, já todos sabemos como ele é. O meu pai, a minha mãe e eu já todos o conhecemos e não fazemos absolutamente nada…esperamos simplesmente que a trovoada passe!
- E resulta? – perguntei sorrindo.
- Em cheio. Passa aquele momento e fica manso que nem um cordeirinho, como que nada lhe tivesse acontecido!
Foi há três ano…como “professor especializado em Educação Especial”, havia sido colocado numa Escola do 2º e 3º Ciclos do Ensino Básico, para prestar “apoio educativo” a alunos com «problemas mentais e comportamentais”.
Logo no primeiro dia do ano escolar, enquanto me falava do João del Rei, do 6º B, a minha interlocutora (directora daquela turma) parava para respirar mais fundo…
- O terror da Escola – dizia ela – é o caso mais terrível que temos!
Comecei então por consultar o PEI (Plano Educativo Individual) do ano anterior – 5º ano. Voltei a trás para reler melhor, o que dizia a dado passo:
ANTECEDENTES
ESCOLARES
O
percurso escolar deste aluno iniciou-se no 1º CEB da Escola de Seixedouro, onde
foi retido três vezes e beneficiou do apoio da Educação Especial durante cinco
anos. Foi caracterizado neste Ciclo, como sendo um aluno com dificuldades de
aprendizagem e problemas de comportamento. As áreas mais problemáticas foram
Escrita (Ortografia e Sintaxe), Matemática. Relativamente ao comportamento,
«tem vindo a fazer alguns
progressos, que ainda não são os desejados, dado que ainda não consegue
estar durante algum tempo no mesmo lugar. Tem necessidade de ajuda constante
para trabalhar. É um aluno hiperactivo com grandes dificuldades de concentração.
Por vezes revela-se bastante inseguro e pouco
sociável.»
No final do 1º CEB, é também de realçar uma referência inserta no
Relatório de Avaliação, que é a seguinte: «apesar de não ter atingido os
Objectivos Mínimos propostos no seu programa individual, a professora da turma e
a professora de apoio decidiram que para o aluno seria mais vantajoso transitar
para o 2º Ciclo». Sugerem ainda
a necessidade de apoio no 2º Ciclo.
No ano lectivo anterior, demonstrou um certo desencanto por tudo o que o
rodeava. Faltou às aulas e mostrava pouco interesse por todas as actividades
escolares.
HISTÓRIA CLÍNICA e
PSICOLÓGICA
Da observação psicológica efectuada e das provas psicológicas utilizadas, os dados
recolhidos sugerem o seguinte:
«No domínio cognitivo o aluno revela resultados abaixo da média,
relativamente ao seu grupo de pertença, sendo possível afirmar que o aluno
apresenta debilidade mental ligeira. Na realização de tarefas de características
verbais, apresenta défices acentuados ao nível da compreensão, raciocínio verbal
e numérico, agravados pela dificuldade de concentração mnésicas e de
perseverança. Manifesta também poucos conhecimentos gerais e um vocabulário
reduzido. No desempenho de tarefas de características não verbais
constatamos dificuldades na
organização perceptiva, coordenação visuo-motora e lentidão na
realização.»
Da observação enquanto realizava as provas, manifestou muita agitação,
apreensão e foi possível verificar que o aluno tem percepção de auto-eficácia
muito baixa, sendo frequente a recusa à realização de certas tarefas
verbalizando: «Não sei!» No entanto, após encorajamentos, foi possível a
realização de algumas delas com êxito.
No domínio
sócio-emocional o aluno apresenta
um repertório comportamental desajustado. No relacionamento interpessoal
sobretudo com adultos, manifesta imaturidade, timidez, insegurança, inquietação
e por vezes até agressividade.
RAZÕES JUSTIFICATIVAS DA
NECESIDADE DE EDUCAÇÃO ESPECIAL
Deficiência mental
ligeira, acompanhada de défice de atenção e problemas graves de
comportamento.
Eram
estas as únicas informações, que havia do João del Rei, o tal “terror da
escola”, como referia a Directora de Turma. Estávamos na preparação do ano
lectivo (que ia começar daí a uma semana). Daí que e uma vez que a Escola tinha
bastantes alunos com N.E.E. (necessidades educativas especiais), resolveu-se
fazer um inquérito simples (ver em anexo) a todos os docentes, para sabermos as
suas opiniões sobre os alunos com N.E.E., com quem tinham lidado no ano
anterior, com vista a traçarem-se estratégias de intervenção. Quando nos chegou
à mão, as fichas dos inquéritos, respeitantes ao João, surpreendeu-nos as baixas
expectativas, que todos os docentes tinham dele:
«Penso que a Disciplina
de História não lhe diz nada.» - docente de História.
«O tem muita falta de concentração, depois
perturba a aula e os colegas. Já experimentei várias técnicas, mas logo de
seguida porta-se pior.»- professora de Português.
«Porta-se muito mal, nunca acompanha os conteúdos da disciplina, deveria ser tomada a opção de ser apoiado pelos Apoios Educativos na Sala 12, fora a sala de aula regular. Deveriam educar o aluno para um melhor comportamento e participação na sala de aula. Este aluno revela uma má educação, pois pronuncia certos “palavrões” dentro da sala de aula e nunca acata nenhuma repreensão dos professores.» - docente de Educação Visual e Tecnológica (directora de Turma).
«Deveria estar sempre na
Sala de Apoio (Sala 12). Na sala da turma, só prejudica os colegas,
distraindo-os e dando maus exemplos de comportamento. Porta-se muito mal.» -
professor de Matemática.
«É impossível trabalhar
com este aluno.» professor de Educação Musical.
«Quando se zanga, parte tudo
e chega a agredir os colegas. Já arrumou com um livro à professora e chamou-lhe
palavras obscenas…» - professora de Ciências
Naturais.
«Não tem calma nenhuma, nem
obedece a qualquer regra. Não presta atenção à aula, não tem relações de amizade
com os colegas.» - professor de Educação
Física.
«Um caso muito complicado.
Este aluno não devia estar nesta Escola.» - professora de Educação
Moral e Religiosa Católica.
Chegou finalmente o primeiro dia de aulas…quando me dirigia para a Sala de Apoio (sala12) alguém se dirigiu a mim e disparava surpreendido:
- O senhor está aqui? Então não é professor primário? O que está aqui a fazer?! .
Fiquei pasmado, correspondi àquele aperto-de-mão demorado e afectuoso… e só depois o reconheci: aquele aluno era o João del Rei, um antigo aluno meu da Escola do 1º Ciclo.
Conheci o João de Rei
no ano lectivo de 1996/97, como professor de Educação Especial. Prestei-lhe
apoio na Escola do 1º Ciclo de Seixedouro e revelava problemas graves a vários
níveis, sobretudo de atenção, comportamento e socialização.
Exibiu sempre uma necessidade insaciável de dar nas vistas, presente em inúmeras travessuras feitas na comunidade local, na vida familiar e na própria Escola. Ficaram célebres algumas das partidas a pessoas da comunidade: numa tarde abriu a porta do curral ao porco duma vizinha e foi o cabo dos trabalhos para fazer regressar o suíno ao curral! Roubou um dia a chave da casa duma velhinha, que não o deixou ir às cerejas do quintal e escondeu-a no buraco duma parede de xisto (só que depois…esqueceu-se de qual era o buraco!). Esses comportamentos sedimentaram nele um baixo auto-conceito na comunidade e na escola, passando a ser visto como "maluco" e como um peso para a família. Na escola de Seixedouro eram-lhe imputadas todas as “asneiras”, que apareciam feitas, embora muitas delas tivessem origem noutros colegas, que lhe arremessavam assim as culpas.. A família no auge do desespero para controlar a sua hiperactividade, chegou ao extremo de o amarrar a pedras e a árvores e de o enclausurarem no curral dos animais.
Revelou, no entanto, sempre uma certa capacidade intelectual, que o levavam a adquirir algumas competências escolares, embora a custo de muito esforço e persistência da parte de professores e agregado familiar. Era incapaz de se concentrar numa determinada actividade...cansava-se e depressa desistia. Por si só, nada conseguia fazer e acabava por enrodilhar toda a folha, desfazer a esferográfica, roer a borracha, mexer nas coisas dos outros e até agredir os colegas e sair da sala. Foi um ano difícil esse em Seixedouro, mas penso que proveitoso para este aluno, que melhorou mesmo assim muito no seu comportamento e até nas suas aquisições escolares, mercê duma “tutoria pedagógica”, que deu os seus frutos, graças à grande interacção e interajuda que foi possível estabelecer entre os dois professores da turma: do ensino regular e do especial.
Já restabelecido da surpresa, disse ao João que estava ali para o ajudar, o que o deixou muito contente. Entretanto, uma semana depois, a primeira conversa coma mãe, vieram trazer a lume outros dados importantes, de que eu não tinha conhecimento:
· O avô
materno do João tinha sido morto a tiro de pistola calibre 6,35mm e o que aluno
presenciou tudo.
· Era um
aluno bastante meigo para a família, em especial para a mãe e para a irmã (dois
anos mais nova).
· Era
incapaz de ajudar nas tarefas agrícolas, porque chegava a meio, “arreliava-se” e dava cabo de
tudo.
A intervenção delineada para este aluno, teve como base a formulação dum Currículo Alternativo, de harmonia com o Artº 5º e alínea b) do Artº 11º do Dec-Lei 319/91 de 23 de Agosto. Conforme se poderá constatar pelo PEI (Plano Educativo Individual) concebido para esse ano lectivo (em anexo), o seu desenho curricular teve por base várias estratégias de modificação comportamental, e de Áreas de Enriquecimento curricular, ligadas à Informática e à pré-profissionalização.
Confesso que me senti muito motivado na elaboração do seu P.E.I., pela carga emotiva que sentia, por tratar-se dum antigo aluno, que eu conhecera anos antes e com quem tinha interagido, junto da sua família e da comunidade em geral. Não se tornou por isso mesmo difícil, a programação de algumas estratégias de intervenção baseadas em autores diversos ligados à problemática do aluno E de entre todas as estratégia, é de sublinhar as seguintes:
Solicitou-se a todos os intervenientes no seu PEI, que prestassem uma atenção especial às “fúrias do João”. Era consensual entre os docentes, que psicologicamente aquele aluno, só conseguia estar atento durante uma certa fatia de tempo, durante o qual tinha até um comportamento “normal”. Só que a dado momento “entrava em fúria” incontrolável e destruía tudo, mesmo alguma coisa, que de bom tivesse já feito.
Recomendou-se por isso a todos os intervenientes, que nesse estado “de crise” (comportamento disruptivo??[4]), que deitassem mão duma pertinente e cuidadosa intervenção, que consistia no fundo em tentar que o aluno se auto-controlasse nesse seu estado crítico, recorrendo para o efeito a estratagemas diversificados, de entre as quais se apontaram os seguintes:
·
Mudança de imediato de actividade.
·
Dar-lhe uma outra responsabilidade para realizar,
como por exemplo: «Vai ver se
deixei o vidro do meu carro aberto.», ou «Vai à sala dos professores ver se o
professor X se encontra lá.», etc.
·
Uso do reforço positivo em relação à actividade que
realizou anteriormente e que iria continuar numa outra oportunidade (nessa mesma
aula, após a passagem da “crise”, numa próxima aula, ou na sala de
apoio)
·
Mandá-lo, em última análise e de imediato para a Sala
de Apoio (Sala 12), para ser “ajudado” pelo professor da Educação
Especial.
De referir o completo sucesso desta estratégia, a qual, de início, não foi levada a sério por alguns docentes, mas que resultou, conseguindo o aluno (minutos depois de lhe passar a crise, ou numa aula seguinte) completar os trabalhos, que até ali acabava por destruir. De registar ainda algumas formas originais e plenas de criatividade que se encontraram para remediar os momentos da crise do João: ir comer um bolo ao bar, ir jogar uma partida de matraquilhos, ir jogar um bocadinho no computador…para logo de seguida regressar à sala de aula e continuar as anteriores actividades.
A Turma da Sala de Apoio, era constituída por vários alunos com N.E.E. (Necessidades Educativas Especiais), para quem foi usada uma estratégia colectiva comportamental, que consistia essencialmente num “Aluno de Serviço” por semana, que de entre outras actividades, ajudariam o professor no que fosse necessário (disciplina geral, higiene e asseio, distribuição do material didáctico, apagamento dos quadros, escrita dos sumários diários, etc.).
Semanalmente, às segundas-feiras, haveria "a passagem do testemunho", ao “Aluno de Serviço” seguinte. No entanto, antes havia ainda uma Reflexão Geral, entre todos (professor e alunos), onde seriam analisados todos os aspectos mais importantes, ocorridos durante a semana e ao mesmo tempo planificar algumas actividades para a semana em curso. A Metodologia desta reflexão semanal era conduzida com muita dinâmica pelos alunos, que para o efeito começavam sempre por uma auto avaliação, feita pelo “Aluno de Serviço” cessante. Em seguida intervinham ordenadamente todos os elementos da sala. Para isso, era formada uma Mesa de Assembleia, constituída por três elementos. O professor, seria um simples elemento desta Assembleia, e para usar da palavra, tinha que se sujeitar à regra geral: inscrever-se para falar. No final, era pontuado o “Aluno de Serviço”, numa escala de 1 a 5, a qual seria conseguida, por apuramento de maioria de votos, onde o professor tinha um único voto também. Em seguida, abria-se a " Urna das sugestões, medos, opiniões, curiosidades", que fora ao longo da semana, anonimamente recebendo "papelinhos" preenchidos pelos alunos, que seriam ali lidos e os assuntos por todos analisados.
Durante a semana era elaborada uma acta pela Mesa da Assembleia, que seria lida na reunião semanal seguinte.
No caso específico do aluno João del Rei, mostrou-se muito participante nas actividades relacionadas com esta estratégia, apesar de algumas dificuldades de controlar por vezes o seu ímpeto de falar, desrespeitando a regra acordada.
Tomámos como referência para
esta mudança, RUTHERFORD e LOPES
(1994), nomeadamente a Parte III - Modificação do Comportamento, onde se
dá relevo à denominada “Gestão de Contingências”, que consiste essencialmente na
técnica, de reforçar,
sistematicamente os comportamentos agradáveis ou prováveis
(C.A.P.- comportamentos de alta
probabilidade), fazendo-os
depender de outros menos agradáveis
(C.B.P. - comportamentos de baixa
probabilidade.)) Esta teoria baseia-se ainda em PREMACK (1965), que a explica de
maneira simples, no exemplo, da mãe, que diz ao filho: «Come a sopa, que eu conto-te uma
história![5]». Optou-se ainda por complementar esta
estratégia com uma outra de KAZDIN (1983), citado por RUTHERFORD
(idem), implementando um "Sistema de Créditos", bem como de um "Contrato
Comportamental".
Facilmente se definiram algumas actividades,
que para o João del Rei, constituíam C.A.P. e que eram as
seguintes:
DESIGNAÇÃO |
PONTOS |
Jogar uma partida de
matraquilhos. |
20 |
Jogar no computador um jogo
preferido. |
50 |
Comer um bolo no Bar. |
75 |
Visionar um filme na
biblioteca. |
100 |
Ganhar um walkman (radiogravador
pessoal). |
200 |
Os diversos créditos seriam conseguidos, mediante o preenchimento duma FICHA DE SÍNTESE COMPORTAMENTAL (ver em anexo), a qual era preenchida no final de cada aula do ensino regular (ou de qualquer actividade constante do seu P.E.I.), pelo responsável da actividade (professor, funcionário da escola ou estagiário) e com a seguinte pontuação:
DESIGNAÇÃO |
Pontos |
Comportamento BOM |
5 |
Comportamento RAZOÁVEL |
2 |
Comportamento MAU |
0 |
Com base nesta estratégia e fundamentando-nos ainda em RUTHERFORD e LOPES (ibidem, p.80), realizou-se um “Contrato Comportamental” com o aluno João del Rei. O acto da sua assinatura, decorreu na reunião do “Conselho de Turma[6]”, tendo o aluno nesse dia primado por uma postura, que surpreendeu a todos.(Ver contrato em anexo).
É curioso que o João nunca conseguiu juntar e cambiar pontos suficientes por um Walkman, não porque não conseguisse a sua soma total, mas porque os ia trocando por filmes na Biblioteca, bolos no Bar ou jogos no computador.
É de realçar também aqui a enorme colaboração do Conselho Executivo da Escola, que acompanhou particularmente a intervenção realizada e que se prontificou a pagar todos os bolos no Bar, que o João fosse capaz de ganhar (e foram bastantes!)
Foi particularmente interessante e deu-me um sabor muito agradável ter a oportunidade de falar do João del Rei, um meu antigo aluno com N.E.E. (necessidades educativas especiais), que foi apoiado por mim por duas vezes: 3º ano de escolaridade (1º Ciclo) e no final do 2º Ciclo (6º ano).
Daí que me tivesse sentido particularmente emocionado, quando o vi como mecânico de motorizadas em Seixedouro. Ao ver-me fita-me por momentos, enquanto acaba de afinal o silenciador a uma motorizada Sachs, velhinha mas rezingona:
- Então, professor, ainda está na mesma Escola?
- Não, João, nós os professores de Educação Especial, somos uma espécie de caixeiros-viajantes…
- E continua ainda a pôr os alunos a papar bolos?!
Palavra de honra, que rimos ambos à gargalhada!
& ALVES, Eduardo Ribeiro (1997) – Memória Final - Dificuldades de Aprendizagem: Contributo para uma Intervenção diferente. Instituto Piaget, Escola Superior de Viseu.
&
CHARLES, C.M. (1997) Les
modèles Pratiques. Editions du Renouveau Pédagogique, Montréal, pp. 156 a
174.
& CORREIA, Luís de Miranda (1997) - Alunos com Necessidades Educativas Especiais nas Classes Regulares, Porto Editora, Colecção Educação Especial: Porto.
& ESTRELA, Maria Teresa (1994) – Relação pedagógica, disciplina e indisciplina na aula. Porto Editora.
& KAZDIN, A.E. (1983) Faillure in Behavior Therapy.
Ed. Wiley, New York.
& LOURENÇO, Orlando M (1996) – Educar hoje crianças para o amanhã.. Porto Editora.
& LOPES, José Pinto (1998) - Alunos com Dificuldade de Aprendizagem. Da teoria à prática. Série Didáctica, nº 16 – Ciências Sociais e Humanas. Ed. Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro - Vila Real.
& MAGALHÃES,O. (1989). A causa das coisas. Indisciplina e Escola. Ed. Aprender, 9,39 - 43.
& MARTINEZ, Baudilio (1993)– Os castigos na Educação. Porto Editora.
& MORIN, Edgar (1996) - O Desafio da Complexidade para uma Reforma do Pensamento. - Conferência promovida pela Escola Superior de Educação. Jean Piaget - Macedo de Cavaleiros, 18 de Abril.
& NIETZSCHE, F. (1987). Para Além do Bem e do Mal. Ed. Guimarães, Porto.
& PREMACK, D. (1965)- Reinforcement
Theory. In David Levine (Ed.). Nebraska symposium on motivation. Vol. 13.
Lincoln: University of
Nebrsaka Press.
& RUTHERFORD, Robert; LOPES, João (1994) – Problemas de Comportamento na sala de aula, Identificação, Avaliação e Modificação. Porto Editora.
& SAMPAIO, Daniel (1994)– Inventem-se Novos Pais – 7ª Edição. Editorial Caminho, Lisboa.
& SANCHES, Isabel Rodrigues (1996) – Necessidades Educativas Especiais e Apoios e Complementos Educativos no quotidiano do professor. Porto Editora.
LISTA DE ANEXOS
· Inquérito aos docentes de turmas com alunos N.E.E.
· Plano Educativo Individual – PEI – do aluno João del Rei.
· FICHA DE SÍNTESE COMPORTAMENTAL.
· CONTRATO COMPORTAMENTAL.
· Decreto-Lei 319/91 de 4 de Agosto
[1] - E
nestes casos então a postura comportamental explica-se antes de mais, pela
própria doença ou imaturidade do aluno.
[2] - Nome
fictício.
[3] - Nome
fictício.
[4] - Foi por várias vezes
solicitado pela Escola (ao médico de família e aos Serviços de Psiquiatria da
infância e Adolescência), que investigassem as causas e possível tratamento destas “crises de
fúria” do aluno, mas nunca se obteve uma
resposta.
[5]
- Faz-nos lembrar a “Regra da Avó”, expreeessa por Fredric Jones, citado por CHARLES, C.M. (1997)
Les modèles Pratiques. Editions
du Renouveau Pédagogique, Montréal, pp. 156 a 174.
[6]
- Que reuniu para efeitos da Avaliação reeelacionada com a 1ª Interrupção,
tendo-se aproveitado essa oportunidade, para a assinatura formal deste
Contrato.