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Os mitos que nos habitam... Aproximando-se do tema Mudança! Os ciclos em Niterói. Como se desenvolveu.

 

Os mitos...


Ao iniciar este trabalho, percebi o quanto o que sinto, vejo, penso sobre Educação está atrelado a minha vivência cotidiana, que, como num "caleidoscópio", integra/funde teorias , práticas , emoções em um movimento de fluxo e refluxo iluminando as características da "professora". Aquela que não é tão somente academicista, pragmática ou emotiva, mas um indivíduo concreto e complexo que se relaciona permanentemente e em rede no cotidiano, com todas as suas potencialidades e limites!

A ciência já provou que utilizamos nosso cérebro por inteiro, contrariando o mito de utilizarmos apenas 10% dele. Ocorre que suas diversas ações exigem atuações mais intensas de diferentes partes. Assim o é nosso cotidiano, o vivemos por completo(Heller,2000), nele somos totais, mas determinadas ações iluminam facetas diversas. Justamente por esse "complexus", usamos todas as nossas capacidades em nosso cotidiano, mas não o tempo todo, nem ao mesmo tempo; por isso não nos é permitido sermos "full time" :professora, mulher, competente, incompetente, triste ou feliz. É o movimento do cotidiano que "ilumina" a professora: em si um "todo" que traz como composição os elementos da mulher ora triste ora feliz, ora competente ora incompetente.

No dia-a-dia, as conclusões a respeito da Educação são tiradas em meio a discussões às vezes acaloradas ou sob a inevitável pressão do "fazer" cotidiano. As hipóteses que levanto e conclusões diárias que acabo tirando recebem como influência imediata as relações mediadas no cotidiano da escola, onde afloram posições profissionais díspares e, como o cotidiano nos recebe por completo, as mediações ocorridas em outros espaços cotidianos também influenciam essas hipóteses e conclusões.

Com essa visão, tenho claro que a minha posição diante da Educação, ao iniciar este trabalho, está carregada de pragmatismo e que esta visão com o passar do tempo corre o risco de transformar em "verdades" inabaláveis conclusões saídas de situações que se sucedem no cotidiano. Surgem explicações modeladas e justificadas por (pré)conceitos construídos no dia-a-dia que, caso não se encontre espaço para reflexão, vão criando o que vou chamar de "mitos da educação".

Não precisamos recorrer a grandes teóricos para encontrar uma definição plenamente satisfatória do que seja "mito". Bastou ter contato com parte da obra daquele que sabe ler com o coração: o poeta. E, no caso, Fernando Pessoa foi o homem que li. Suas palavras clarearam meu pensamento num ponto embrionário deste trabalho, cito-o¹:

 


"O mytho é o nada que é tudo."

 

Ao ler o verso acima, numa espécie de lampejo, assustei-me ao perceber a força que pode ter aquilo o que cotidianamente elegemos como verdade incondicional, de aparência quase perene.

 

"...Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou."

 


O poder mítico que assume o pensamento que nos chega e se impõe como certo, mesmo que não saibamos como ou por que se estabelece hegemonicamente e que como tal nos basta, pode turvar nossa compreensão. Levar-nos a crer em "verdades" forjadas no tempo e que alimentam nossa imaginação.

O "mytho" do poema é uma alusão que Fernando Pessoa faz à lenda de uma possível viagem de Ulisses (herói da Odisséia - poema de Homero) na qual este teria aportado em terras portuguesas e fundado a cidade de Lisboa. O "nada" sendo claramente uma referência à ficção, àquilo que mesmo sem acontecer tem a força do "tudo" , daquilo que nos basta , nos sacia.

Transportando este pensamento para a Educação, o "nada" seria aquilo que "não é" (talvez até "seja", não importa) mas que é tão onipresente que, mesmo não sendo, é. As representações que supomos verdades incondicionais preenchem nosso imaginário e coordenam nossas ações.

Quando uma professora diz: meus alunos "são" assim porque não têm "estrutura" familiar. Ou, diante de um quadro de fracasso escolar, a conclusão que lhe é possível é a de que os professores fazem o impossível, porém a situação está além das suas possibilidades de sucesso e que o fracasso do aluno é tão inevitável quanto não depende deles, professores. Essa professora está transformando o "nada" em "tudo", uma crença em realidade, a parte em todo. Não é essa uma prática comum entre professores?

 

"Por não ter vindo foi vindo
E nos creou."

 

E cremos! Cremos no fracasso, cremos na impossibilidade, cremos que a Educação é a "solução", cremos que o pai é o culpado, o aluno o coitado e o professor o prejudicado. Cremos que o governo atrapalha e a comunidade acata. Cremos que a culpa não é nossa, que fazemos o máximo, que enxergamos a realidade!

E cremos ainda em tantos outros e tão diversos mitos em respeito à Educação...

Poetizar a história de uma cidade pode não prejudicar, ao contrário, pode congregar sentimentos favoráveis a ela. Mas mitificar situações referentes à Educação pode conduzir-nos a caminhos equivocados e quiçá danosos.

Com este trabalho busquei explorar um mito em particular, um mito estruturado recentemente, aquele que no momento coordena minha visão sobre a Educação e tentar, quem sabe, iluminá-lo .

Qual mito ?

As práticas divinatórias (Antunes, vídeo:s/d) que norteiam a visão dos professores em relação à (im)possibilidade de alteração do sistema seriado para o ciclado de ensino. Uma diretora perguntada sobre como estavam os ciclos em sua escola, respondeu que: "quando os ciclos fossem uma realidade ela se preocuparia, por enquanto o que importava era se o aluno aprende ou não aprende o conteúdo". Ou seja, quaisquer que sejam os motivos, existe a crença entre os profissionais de que o sistema de ciclos não se efetivou.
Motivo ?

A cada observação minha percebo o quão parcial estou/estamos em relação às posições que vou/vamos assumindo. Minhas reflexões sobre ações minhas e de outros professores demonstram a dependência que nossas atitudes têm em relação aos mitos estabelecidos. Nossas possibilidades de intervir no sistema para efetivamente alterá-lo depende do quanto conseguiremos flexibilizar a cultura que vivenciamos e pela qual somos formados.

A mudança do sistema seriado para o sistema em ciclos me parece exigir não apenas uma revisão de termos pedagógicos ou uma nova safra de jargões educacionais, mas uma verdadeira mudança de paradigma educacional e social.

A primeira impressão que guardo do assunto ciclos foi sentida em uma conversa informal com uma amiga, também professora, que havia ingressado na rede municipal no ano que em que os ciclos foram instituídos. Em 1999, depois de uma reunião com os professores do pólo ao qual pertencia, a professora me fez a seguinte colocação:


"- Hoje, o Secretário de Educação disse que não queria mais ouvir a palavra série ,a partir de 1999 a Rede trabalharia somente por ciclos . E que os professores tinham que "aprender" a falar CICLO no lugar de SÉRIE. Pois muito bem, eu dou aulas para terceira série e vou continuar chamando de terceira série!"


Será que uma mudança como a pretendida com a adoção do sistema de ciclos pode ser iniciada apenas mudando a nomenclatura do que existe?

Será que deve uma professora fincar o pé na seriação se o trabalho não dá bons frutos?
A declaração desta professora poderia ser categorizada como "resistência" de um profissional sedimentado a uma saudável tentativa de melhoria da qualidade do ensino público. Também poderia ser categorizada como saudável tentativa de manter íntegra a Educação, mesmo com as vis tentativas do poder público de achincalhá-la.

Como pode não ser qualquer das duas possibilidades, o que eu tendo a acreditar, talvez uma pincelada de cada e de mais algumas...

Talvez este recorte da fala do secretário possa nos levar a incorrer em erro de julgamento, mas também pode nos dar algumas pistas de como ocorreu o processo em Niterói. Podemos perceber, pela declaração, que os professores, reunidos em pequenos "grupos", foram "informados" que um "coletivo" transcendente a eles havia se reunido, estudado e deliberado que o sistema de ensino na Rede Pública de Niterói mudaria e agora os professores deveriam implementar o que a FME determinou.

Inicio este trabalho com um "(pré) conceito" em relação ao movimento inovador na Educação de Niterói já estabelecido : " Faltou e falta, entre os professores, reflexão e discussão no processo"!

 

APROXIMAÇÕES

 

O texto apresentado é uma primeira aproximação do tema que entre os profissionais das escolas da rede municipal de Niterói demanda discussão, aprofundamento, exploração e apropriação: a adoção do sistema de ciclos nas escolas da rede pública municipal.Tem como base para minha observação a Escola Municipal Eulália da Silveira Bragança. Mais que apresentar soluções, este estudo pretende levantar questões.

Num primeiro momento procuro fazer uma discussão sobre as possibilidades de ensino por ciclos, seu embasamento teórico, suas vertentes. Tomarei como referência teórica (fundamentação) e prática (depoimento de alguns professores) a experiência dos ciclos de formação no município de Belo Horizonte, cujo projeto foi intitulado "Escola Plural". Além dessa visão, caminho pelo chamado ciclo de aprendizagem cuja elaboração vem recorrendo ao trabalho de Phillipe Perrenoud como referência significativa. O entendimento do que sejam as "competências adquiridas" defendidas por Perrenoud é um ponto que me parece levar as professoras a transformarem educação ciclada em seriação flexibilizada. Ao que parece, essas competências são compreendidas como listagens de conteúdos, deturpando um pensamento inicial que vai em direção a uma construção de saberes articulados e não à manutenção da fragmentação do conhecimento.

A seguir, desloco o foco para a adoção dos ciclos em Niterói e tomo com campo de pesquisa o cotidiano da Escola Municipal Eulália da Silveira Bragança, onde, realizei observações formais (semanalmente no horário de planejamento, encontros de formação continuada) e informais ( nos corredores, refeitório, encontros,sala das professoras), entrevistas e um questionário (realizado em 2001). Nessa escola foi possível perceber que parte do discurso utilizado em favor dos ciclos foi incorporado ao vocabulário das professoras, mesmo daquelas que ostensivamente se opõem ao projeto, o que demonstra haver certo anacronismo. Posição que eu pude constatar relacionando as observações realizadas no cotidiano da escola e as respostas fornecidas pelas professoras em questionário dirigido.
Priorizei o cotidiano escolar em minha pesquisa por me parecer o lócus mais adequado para apreender a relação das professoras com a nova organização escolar proposta. O cotidiano por seu caráter social está constituído por profundas contradições, de tal modo que há enormes diferenças entre o falar e o pensar da professora sem que isso, a priori, invalide suas ações e pensamentos. Ao contrário, esta divergência é possibilitadora de uma dada realidade cotidiana que encerra, ou não, as condições para uma efetiva mudança.

Parto da hipótese de que não existe conflito entre as professoras e o sistema de ciclos, pelo simples fato de que a inovação foi encarada burocrática e administrativamente. Segundo escrito em relatório no final de 2001 apresentado pela escola pesquisada :


" As nossas escolas , até pouco tempo, eram organizadas por séries. Desta forma,a tendência é apenas trocarmos a nomenclatura para ciclos e continuarmos o mesmo processo".

 

Procuro no desenvolvimento da monografia verificar a hipótese levantada, que é baseada na forma como vivi o processo de adoção dos ciclos nesta mesma escola.

O olhar deste trabalho monográfico moveu-se em direção à alteração de paradigma na Educação (série/ciclos) provocada por alterações Político Pedagógicas na Rede Municipal de Educação de Niterói, realizadas através das intervenções feitas pela Fundação Municipal de Educação na organização das escolas. A abordagem desse trabalho busca analisar as tentativas locais de trabalho com a concepção de educação por ciclos oferecida aos educadores e a forma como esta se relaciona com as concepções dos professores da escola pesquisada e busca entender ou visualizar como esta se dando a apropriação desta mudança pelo coletivo de professores em um lócus específico.

 

Mudanças!!

"A gestação do novo, na história, dá-se, freqüentemente, de modo quase imperceptível para os contemporâneos, já que suas sementes começam a se impor quando ainda o velho é quantitativamente dominante. É exatamente por isso que a "qualidade" do novo pode passar despercebida. Mas a história se caracteriza como uma sucessão ininterrupta de épocas. Essa idéia de movimento e mudança é inerente à evolução da humanidade. É dessa forma que os períodos nascem, amadurecem e morrem". (Milton Santos)

 


As reformas sociais, econômicas e culturais ocorridas no país no último século poderiam apenas com sua enumeração e brevíssima descrição compor um vasto documento, já que inúmeras foram as tentativas no período de minorar os problemas derivados de um sistema econômico capitalista e de uma formação cultural marcada pelo privilégio .

Poderíamos imaginar neste longo documento, um grande espaço destinado às mudanças na área da Educação que, seguindo o gosto brasileiro pelas adaptações, não foram poucas e norteada por "progressistas" ou "conservadores" visavam uma melhoria substancial no cenário educacional, fosse em busca do "desenvolvimentismo nacional" ou em torno da democratização da escola.

Para este trabalho a simples constatação dessas inúmeras "mudanças" já é indicativo suficiente de que o país está num caminho de procura, de construção da Nação e para tanto necessita de interferências políticas que quanto mais legítimas forem, maiores chances terá o país de tornar-se "efetivamente" soberano.

Desde de o início do século XX, mudanças educacionais foram alterando a Educação brasileira através de Reformas, constituições, LDB's . Essas alterações foram sendo legitimadas e consolidadas ou mesmo descartadas ou "engavetadas". Esses processos foram contribuindo para a construção da estrutura educacional que vivenciamos hoje. Neste percurso, nota-se que, desde o início do século, experiências próximas do pensamento por ciclos foram se dando, mas estas não se desligaram do pensamento que organizava a Educação, a estrutura seriada.

Surgiram, dentro ainda da seriação, experiências nas Redes educacionais, como a que instituiu o Bloco Único no município do Rio de Janeiro em 1981, e que tinham um objetivo bem definido: através da promoção automática ou progressão continuada propiciar a escolarização com vistas a resolver o problema do "fracasso", na verdade da distorção série/idade apresentada na maioria das redes educacionais. O pensamento era de que se as crianças não fossem retidas, o fenômeno da evasão e da distorção nas séries seria eliminado. O tempo mostrou que essa não era a solução para o fracasso escolar!

No final do século passado, mais exatamente em suas duas décadas finais, surgiram no cenário educacional brasileiro experiências municipais que caminhavam em direção a uma descentralização da Educação e traziam em seu discurso a proposta de construção de uma sociedade nova, livre da cultura seriada imposta pela lógica da exclusão, fruto do modelo social no qual foi estruturada e ao qual serve.
Todo esse movimento que compõe a história da Educação brasileira indica que a educação está passando por um momento de "gestação do novo". Em decorrência do "gestar" desse processo histórico, vemos, por exemplo, que hoje, por várias das Secretarias de Educação do país, a concepção de Educação por ciclos está se impondo sobre a concepção seriada, alteração essa que influi e é influenciada por uma lógica social que valoriza a coletividade e por isso se diferencia da até então instituída onde o individualismo e a exclusão são características constitutivas predominantes. Dentre essas inovações, destaco os ciclos de formação, que, das propostas que vão em direção a uma nova estruturação escolar, é a mais radical no sentido em que rompe completamente com a estrutura disciplinar dos conteúdos escolares, procura reorganizar a escola tendo como referência as fases do desenvolvimento humano, busca uma avaliação processual onde é priorizada a constituição sócio-cultural do indivíduo.

Os ciclos de desenvolvimento humano ou de formação não têm como objetivo a escolarização "estatística" da população. A escola estruturada neste tipo de ciclos está inserida num cenário político social que visa a construção de uma sociedade mais justa e humana que prioriza a coletividade e rompe com a lógica excludente imposta pela sociedade do lucro. e o caminho para essa "nova possibilidade social se dá, inclusive, através de um processo de escolarização.

As primeiras Redes Públicas a buscarem esta nova estruturação educacional foram as Prefeituras de Belém do Pará ( 1992), São Paulo(1992), Belo Horizonte (Escola Plural- 1993), Porto Alegre (Escola Cidadã - 1996) .

As Prefeituras que promoveram e buscaram a implementação deste pensamento educacional eram ligadas ao partido dos trabalhadores, o que justifica pensar que o que está por trás do movimento ocorrido é a expectativa de construção de uma outra sociedade.

As discussões promovidas nestas redes escolares não tinham a função de explicitar uma proposta gerada no gabinete do Secretário de Educação e sim a intenção de construir coletivamente um projeto educacional. O professor Arroyo(1996) afirma que o trabalho coletivo esteve presente em todos os momentos de estruturação da Escola Plural, demonstrando a importância da constituição do coletivo no processo de construção desta nova escola.

Na experiência por ele relatada, realizaram-se encontros, alguns polarizados nas escolas e outros abrangendo toda a Rede, para discutir esta construção. Buscou-se nesses encontros a máxima participação de toda a comunidade escolar (pais, professores, alunos) porque o princípio que regia este fazer Educação previa alteração das relações sociais e necessitava justamente desta participação comunitária para efetivar-se.

Aqui chegamos a uma verificação importante, como vimos, esses encontros e experiências aconteceram em municípios comandados por partidos populares, foram realizados antes da redação final da nova LDB e da compilação dos PCN's, documentos em que está facultado e sugerido o ensino por ciclos. Pode ser sintomático a aceitação das Propostas Municipais por parte das comunidades locais e também do Governo Federal. Mas o que o Governo Federal pretende ao encampar várias das diretrizes da Escola Plural / Cidadã e incorporando-as às Diretrizes, aos Parâmetros Curriculares Nacionais ?

Justamente porque a história é viva, temos a possibilidade de estar vivendo uma mudança de paradigma na Educação, que neste caso se explica através dos pares: série/ciclo, indivíduo/coletivo. O pensamento sobre a Educação (o que é, para que serve, qual o fim e tantas outras sentenças) traz em si objetivos definidos de acordo com a ótica possível aos educadores de cada época. No momento, para refletirmos a Educação, nos valemos de um pensamento construído num período de plena hegemonia das séries, da ordem, das disciplinas, enquanto o momento atual está nos mostrando a necessidade de "articularmos saberes" (Morin, 2000) , de buscarmos uma concepção de educação onde a totalidade deixe de ser vista como algo que para ser compreendido precise ser decupada em pequenas e lógicas unidades do conhecimento. Esta mudança no processo de elaborar o conhecimento se articula a mudança no modo de organizar o projeto educacional.

Os agentes dessa mudança de paradigma na Educação se encontram nos gabinetes, nas salas de aula, nos corredores, no refeitório, nas salas de professor, enfim, na educação escolar e nessa modalidade o pensar educacional recebe influência do Secretário ao Servente, do Diretor à Merendeira, do Aluno ao Professor. Mas dentro deste quadro é inquestionável a influencia do professor no cotidiano escolar, vários teóricos, como Schön (1992), Teresa Esteban(2000), Miguel Arroyo(1999), entre outros, alertam para a importância de uma prática reflexiva por parte dos professores e essa é uma atitude que demonstra a relevância deste profissional. A priori, todo ser humano reflete sobre suas ações, mas no caso do professor esta reflexão é fator determinante no processo de aprendizagem/ensino de outro ser humano: o aluno. A sua reflexão tem interferência direta no caminhar do aluno. Reconhecer a dimensão reflexiva da ação docente, não significa colocá-la como figura central na elaboração de um novo projeto educacional. Significa reconhecer que sua ação cotidiana produz conhecimentos relevantes, que devem ser considerados, no processo coletivo em que todos os sujeitos envolvidos na escola compartilham seus conhecimentos, sonhos, projetos e propostas.

Miguel Arroyo (1996) em entrevista sobre a primeira implementação da escola Plural (que adotou o ciclo de desenvolvimento humano) no município de Belo Horizonte, afirma que o coletivo de professores contribuiu de forma determinante para o surgimento de experiências inovadoras como as que fomentaram a escola Plural:

 


"A categoria de professores avançou bastante mais do que muitos governantes, conselheiros e técnicos que teimam em controlar as políticas sociais. Os professores nos últimos quinze anos se organizaram e tomaram consciência de seus direitos. Avançaram na compreensão de que a escola é um espaço de direitos, não somente dos professores e funcionários, mas também dos educandos e das famílias.Se os professores vêm lutando pelos seus direitos próprios,..Como ser insensíveis ante uma escola que nem sempre garante esses direitos por seu imobilismo, pela rigidez de suas grades curriculares, pelo controle central dos órgãos normativos e de inspeção?"

 

 

Este recorte da fala do referido professor parece indicar que a efetiva participação docente na elaboração de uma mudança nos moldes da pretendida com o advento do sistema de ciclo é fundamental para o processo e requer a consciência crítica como elemento propulsor. Um professor que não acredita, não muda! Sendo assim, mesmo quando as mudanças são oriundas de instâncias exteriores, se elas se dão em local onde os professores estejam envolvidos num permanente processo de reflexão, a inovação encontra uma crítica consciente e a conseqüente apropriação das mudanças propostas é um ato integrador que tanto pode incorporar as mudanças quanto negá-las, mas que certamente contribui com o processo educacional.

Ora, o que a escola Plural e a Cidadã propõem com os chamados ciclos de formação é mais do que a escolarização em si, é a interferência na sociedade através de uma política sim de escolarização, tornando a escola um lugar verdadeiramente capaz de criar, produzir e difundir cultura . É a aceitação e o desejo por parte dos educadores de que podemos construir uma sociedade onde a inclusão seja direito inalienável dentro da escola e fora dela! Parece-me significativo interrogar os movimentos que fazem com que os sujeitos individuais assumam como seus desejos as transformações propostas pelas políticas educacionais, mesmo quando o que é proposto se apresenta como contraditório aos procedimentos dominantes na sociedade.

 

"É bastante difícil livrarmo-nos do efeito hegemônico das representações sociais sem um esforço intencional, fundado no conhecimento e na reflexão sobre a prática. Se os professores (ou qualquer outro sujeito, claro!) vivem seu cotidiano automatizadamente, assumindo como definitivas as "verdades" produzidas pela repetição, certamente estarão bastante distantes da possibilidade de construírem outro saber sobre si mesmos e seu trabalho." ²

 

O comentário da Professora Hilda Alevato me leva a crer ainda mais na força que nossas representações têm no nosso fazer cotidiano. Quando vivemos este cotidiano de forma automatizante, olhamos para alguns alunos e por esse ou aquele motivo - justificado pelo nosso "calejado" olhar de professor -, "adivinhamos" quais têm maiores chances de sucesso e quais estão fadados ao fracasso, é muito provável que ao final do processo aconteça exatamente o que "previmos" .... Esta prática "divinatória" não é algo premeditado, acontece quase sem o professor perceber. Quando recebe uma turma, em geral ela já vem com as devidas recomendações: "- Aquele pode! Aquele faz muita bagunça! Aquela é dispersiva! Aquele é muito aplicado!..." Será que o professor tem autonomia suficiente para se livrar desses "pré-conceitos?"

A professora Teresa Esteban nos dá pistas de como intervir neste processo, onde reproduzimos as ações sem questionar nosso olhar, ao nos colocar que "A reflexão tem o sentido de contribuir com a construção de alternativas..." (Esteban, 2000:34)

O profissional reflexivo, para existir, não basta "receber" formação acadêmica, ele precisa "ter" condições para que efetivamente torne "viável" a prática da reflexão. Uma turma de 35 ou mais alunos, o pouco reconhecimento da profissão, social e financeiramente, algumas teorias que conduzem o processo pedagógico são alguns dos empecilhos desta prática. Pensar na estruturação de um coletivo reflexivo na Educação me remete ao filme MATRIX (Warner, 1999).

No filme, a Inteligência Artificial domina Terra e os seres humanos passam a condição de servidores do grande computador. Os humanos nasciam em incubadoras e viviam numa espécie de software, numa "vida" virtual. Um pequeno grupo formava a "resistência" (eram capazes de refletir para além do óbvio) que lutava em condições precárias pela liberdade e esperava por um "escolhido" que lideraria a vitória. Enquanto o pequeno grupo consciente de suas potencialidades lutava, todo o resto da humanidade "vivia" virtualmente num programa de computador, servindo de energia para manter as máquinas funcionando. A humanidade nem sequer imaginava a possibilidade de que sua vida não fosse realidade, ela "traduzia" a virtualidade em realidade sem se dar conta de que coisas como o sabor e o cheiro do alimento que comia simplesmente não existiam...

Algo semelhante pode acontecer com o professorado. Como enxergar que a realidade posta a ele é apenas uma das realidades possíveis e que alterar a sua compreensão da realidade depende de muito esforço. E, como em Matrix, a Força que impõe a realidade é poderosa e, o que é grave, muitas vezes invisível!

Acredito que a formação de uma "resistência", por parte dos professores que consigam enxergar-se para além da realidade imposta seja um caminho saudável para a Educação, crie possibilidades para que a prática reflexiva se estabeleça naturalmente , mas, ao contrário do filme, não podemos depositar as esperanças da Educação nas mãos de um "escolhido" ( seja um professor, a sociedade, o governo...) porque isso nos levaria a um imobilismo fatal! Nós, professores, não podemos abrir mão de uma resistência reflexiva.
Só uma prática reflexiva coletiva permite aos profissionais da educação uma condição de não sedimentação, que os mantêm aquecidos na busca de soluções para as situações-problema e abertos às novas possibilidades, permitindo o questionamento tanto das práticas já estabelecidas quanto das inovações.

Esta compreensão do processo de proposição e implementação do sistema de ciclos constituiu a referência a partir da qual busquei realizar a análise da implantação deste novo sistema em Niterói.

 


Ciclos em Niterói!

 


O sistema de ensino oficial da Secretária Municipal de Educação de Niterói está acompanhando uma tendência nacional de busca de escolarização através de tentativas de procedimentos que visam manter o alunado freqüentando o espaço físico das escolas públicas durante os 8 anos de escolaridade obrigatória. Os gestores da educação municipal identificaram como principal problema da rede a "distorção nível de conhecimento/série" que ocorreu em decorrência da promoção automática, e, como estratégia para minorar este quadro, trouxeram o chamado sistema de ciclos:


"A distorção série/idade foi... assinalada como principal problema a ser enfrentado pelas autoridades educacionais. ... A principal causa ... foi identificada como sendo a repetência. Daí porque alternativas foram lançadas... . Niterói, por exemplo eliminou a avaliação dos alunos para fins de aprovação, ou não, nas séries, adotando a progressão automática. ... Surgiu, em conseqüência, a distorção nível de conhecimento/série, ... . A implantação ou reimplantação de um sistema generalizado de reprovações, não iria minimizar a gravidade da situação..., pois resultaria... na retenção integral dos alunos da rede, nas séries em que estivessem cursando. Surgiu, assim, como primeira opção, a organização do nosso ensino em ciclos - ... ressaltando, porém, que mudanças estruturais, de forma e nomenclatura, unicamente, não levarão a resultados satisfatórios. Há que haver um projeto coletivo... " (Proposta político Pedagógica de Niterói,1999:17-18)

 

Em novembro de 1998, através da Portaria SME/003/98 (anexo I), a Fundação Municipal de Educação de Niterói - FME alterou a estrutura organizacional do ensino no Município. Dessa forma, a partir de 1999 Niterói adotou nas suas escolas municipais, em lugar da promoção automática até então praticada, o sistema de ciclos normatizado pela Portaria de 98 e organizado na proposta político pedagógica da rede. Desde então, seus profissionais vêm buscando se apropriar dessa proposta para possibilitar a implementação das mudanças.

Estar na escola, no entanto, não significa que o aluno progride sempre, há possibilidade de interrupção de fluxo, como, por exemplo, as situações de retenção ou reprovação. A existência legal dessas possibilidades é um dado interessante por ser o oposto do que se ouve no cotidiano escolar: o aluno agora passa, sabendo ou não. O Parágrafo único da Portaria 003/98 faz uma distinção entre o que representa um aluno retido e um reprovado, e acredito que o motivo seja a tentativa de aproximação com um pensamento de educação ciclada. Porém, o documento não deixa claro o significado de cada categoria, o que permite que, na prática, não exista diferença entre aluno retido e aluno reprovado. No texto da Lei lê-se:

 

"Art.6 - Os alunos considerados retidos pelo Conselho de Classe da Unidade Escolar, deverão receber no próximo ano, pelo período máximo de 1 ano, ou 1 semestre, no caso de Educação de Jovens e Adultos, atendimento especial em classes de aceleração ou de reforço, a serem instituídas nas escolas da rede municipal.

Parágrafo único - Atribuir-se-á aos alunos retidos na série ou fase pelo Conselho de Classe da Unidade Escolar, o conceito 5, permanecendo o conceito 4, para os alunos que não atingiram a freqüência mínima de 75%, sendo considerados portanto reprovados."

 


Fica clara a tentativa de "humanizar" o processo em que terá que haver a retenção, diz o Parágrafo citado que o aluno retido por conteúdo receberia conceito D e apenas o reprovado por freqüência teria que receber via de regra o conceito E. Ocorre que na Portaria seguinte, este Parágrafo Único foi suprimido e hoje o aluno para ser retido "não" pode apresentar qualquer conceito melhor que E, pois não haveria justificativa para sua retenção, que em última instância é baseada no conteúdo.

O texto legal que se seguiu a essa Portaria é de dezembro de 1998 (anexo II) e torna ainda mais ambígua a interpretação do que seja "retenção". Em seu Artigo 4º, estabelece como indicador do rendimento escolar do aluno os conceitos de A,B,C,D, E, sendo até o D considerado o aproveitamento satisfatório e apenas o E aproveitamento insuficiente, pois atinge menos de 50% dos objetivos propostos. Este trecho ratificaria o Art. 6 da Portaria 003/98 quando afirma que apenas os infreqüentes teriam conceito 4, ou seja, menos de 50% dos objetivos por isso equivale ao conceito E- insuficiente, e os retidos receberiam o conceito 5, 50% dos objetivos equivalendo ao conceito D - satisfatório, dessa forma esses alunos estariam automaticamente matriculados na próxima etapa recebendo atendimento personalizado visando a otimização de seus estudos. Porém, na Portaria FME/320/98 a alínea b, do inciso II, do art.2º possibilita a interpretação de "aluno retido" com igual significado de "aluno reprovado":


"b- possibilidade de retenção ao final de cada um dos três primeiros ciclos, por freqüência ou aproveitamento insuficientes, podendo os alunos que não atingirem os objetivos propostos no ciclo ser atendidos em classe de reorientação de aprendizagem, com duração máxima de 1 ano letivo, no Ensino regular e de 1 semestre letivo, na Educação de Jovens e Adultos;" (grifo nosso)


A indefinição no uso das palavras nos documentos legais não teria problema se não interferisse na prática cotidiana. Resultado dessa inconstância foi um fator considerado de grande ganho pelas professoras: o fato de após 2001, o aluno poder ser retido por mais de um ano, sabendo-se que na leitura escolar praticada reter significa reprovar.

Em dezembro de 2002, a FME não permitiu a retenção de uma aluna no ano escolar em que estava, alegando que para reter seriam necessários pelo menos dois conceitos E, o questionamento que se seguiu na escola foi quanto a equipe pedagógica da FME estar retomando uma avaliação por média dos conceitos: E mais E dividido por E = E (professora Silvana). Outro fator que também chamou atenção foi o caso da aluna que pelo desempenho durante o ano estaria retida mas que a professora no último bimestre atribuí-lhe o conceito D pelo crescimento apresentado, a equipe pedagógica da FME não permitiu afirmando que não podiam "reprovar" um aluno com D de conceito final.

Observamos, tanto nos documentos consultados quanto em práticas cotidianas, uma grande indefinição sobre o que é ciclo, como organizá-lo e como ocorre a movimentação do estudante ao longo de sua escolarização.

Uma peculiaridade do ensino por ciclo no município de Niterói está no fato de que este substituiu quatro anos de promoção automática, sistema que a princípio exigiria a prática da reflexão e avaliação continuada do processo de ensino/aprendizagem do aluno. O ciclo, neste caso, trouxe consigo o retorno da possibilidade de retenção ao final de determinados períodos. Tal formulação gera uma contradição conceitual: o ciclo no município rompe com a idéia de processo contínuo e se apresenta às escolas da rede como "estratégia" que permite a retenção de seus alunos, não ao final de cada ano letivo, ainda visto como série escolar, mas ao final de cada ciclo.

A Professora Sandra Maria dos S. Teixeira (SEERJ/FME - Niterói), uma das profissionais responsáveis pela implantação do sistema de ciclos na Rede, acredita que se a promoção automática tivesse sido bem apropriada pelo coletivo dos professores não haveria necessidade de implantação dos ciclos, pensamento esse acompanhado por outros vários profissionais da rede.

Juntamente com o ciclo foi instituída através da Portaria FME/255/99 (anexo III)a Comissão de Reorientação composta por 7 profissionais que teriam "como competência acompanhar, dinamizar, planejar e replanejar o processo de Reorientação de Aprendizagem sempre em parceria com as equipes pedagógicas das Unidades Escolares" (Portaria FME/255/99, Art.2º). Pelo projeto, as escolas teriam um professor reorientador para cada turno e este profissional atenderia aos alunos retidos nos fins dos ciclos, únicos com direito a esse apoio pedagógico.

Na escola pesquisada, a reorientação de aprendizagem é realizada num espaço "adaptado" para receber os alunos contemplados com o projeto. O professor reorientador divide períodos de tempo dentro da carga horária semanal e em cada horário estipulado recebe um grupo de alunos para reorientação que, para isso, deixam suas classes originais, tornando assim a reorientação uma espécie de aula extraclasse na qual o professor buscará nivelar o aluno ao conhecimento esperado para a turma em que está matriculado. Nota-se que a lógica da seriação se mantém.

Com poucas diferenças, a Reorientação é aplicada nas demais Unidades Escolares da rede.

A reorientação da aprendizagem chega como recurso para dirimir a distorção série/idade atestada na proposta pedagógica como principal problema da rede. Chega em caráter emergencial e com prazo para terminar. Segundo a professora Sandra, a partir do momento em que o sistema de ciclos estivesse dando conta da aprendizagem do aluno com distorção série/conhecimento, atestado como principal problema, a Comissão de Reorientação deixaria de existir. Não foi o que aconteceu e hoje o professor regula não admite que se questione a existência da Reorientação, apesar de haver a recomendação através de ofício, inclusive, de que a reorientação não poderia se tornar um ensino paralelo. O que nos leva perceber que não basta mudar para ciclo burocraticamente, é necessário trazermos para "cima da mesa" não só os problemas dos alunos que não conseguem aprender, mas também os problemas dos professores que não conseguem ensinar.

O modelo apresentado pela Fundação de Educação ao corpo de profissionais docentes do município de Niterói esteve em vários momentos respaldado em teóricos que participaram das tentativas de remodelamento do sistema educacional de prefeituras inovadoras, como as de Belo Horizonte e de Porto Alegre . Os dois seminários externos realizados pela rede tiveram a Professora Elvira Lima como principal palestrante e a formação continuada externa ocorrida em 2001, contou com a presença da Professora Aparecida Franco da rede municipal de educação de Belo Horizonte. Houve também a discussão interna conduzida pela equipe da escola com o texto de Vitor Paro sobre a sua última pesquisa que trata da reprovação nas escolas paulistas.

A operacionalização do novo modelo para a educação fundamental em Niterói foi realizada a partir da proposta pedagógica compilada pela FME e intitulada "CONSTRUINDO A ESCOLA DO NOSSO TEMPO". Apesar de na sua página 24 citar a proposta pedagógica da E. M. Vila Monte Cristo - Porto Alegre, uma das primeiras escolas da rede a adotar os ciclos de formação, a proposta da FME seguiu caminhos que a aproximaram da linha teórica defendida pelos Parâmetros Curriculares Nacionais.

Ora, a linha adotada nas prefeituras citadas postulam o CICLO DE VIDA (Neidson Rodrigues, 2002) e a formação humana de cada sujeito, enquanto a linha difundida pelos parâmetros se afina com o ciclo de aprendizagem, forma de organização pesquisada por Perrenoud que tem na busca pelas "competências" necessariamente a determinação de uma listagem de objetivos a serem alcançados ao fim de cada período, apesar dos tempos escolares serem mais dilatados que nas tradicionais séries escolares, esta concepção permite uma visão reducionista dos ciclo fazendo-o caminhar em direção a "flexibilização da seriação" já que na prática seus "objetivos" são diluídos por ciclos de escolaridades, contribuindo para uma prática disfarçada de seriação dos conteúdos. E é justo nesse ponto que encontramos um dos "nós" na possibilidade de entendimento da proposta pelos profissionais da rede. As séries não foram abolidas nem mesmo questionadas, apenas realocadas.

Nos anos de 1999, 2000 e 2001, a FME apresentou como referencial teórico da sua proposta ("sua" porque veio de cima e a secretaria tentou difundir entre os profissionais a nova "nomenclatura") os conceitos que embasam o sistema de ciclos de formação ou ciclos de desenvolvimento humano, sistema de ensino defendido pelas escolas Plural e Cidadã. Trazendo, para as discussões com os professores, profissionais que têm uma visão educacional marcada pela concepção de desenvolvimento global do sujeito, onde o ciclo de formação é "conseqüência da reconceituação da escola como espaço de formação, não só de aprendizagem". (LIMA, 2000:8)

O documento, produzido originalmente em 1999 pela FME, traz em suas páginas um elemento causador de um possível "não-entendimento" do ciclo como "novidade" educacional ao teoricamente atribuir aos ciclos o conceito de desenvolvimento humano e no mesmo documento estipular como prática uma "flexibilidade real ... permitindo que os alunos participem de mais de um grupo, com o nível desempenho mais próximo... e com base em princípios pré-estabelecidos pelo professor"(Niterói,1999) .

Esses princípios delimitados pelo professor, foram anteriormente delimitados na própria pedagógica da rede que elenca para cada ciclo os conceitos a serem trabalhados, decupando-os no mesmo quadro em conteúdos que em última instância se tornam os objetivos almejados pelo professor. O conceito de ciclo que parece possível a partir dessa dualidade é aquele que estipula de antemão os conteúdos para cada etapa, que determina a avaliação das competências adquiridas através da demonstração pelo aluno de domínio do conteúdo na perspectiva de uma prática avaliativa estritamente mensuradora.

Segundo Elvira Lima (referencial teórico apresentado aos professores pela FME), ciclo "é,..., uma concepção de formação humana que propõe rupturas com os modelos internalizados sobre aprendizagem e desenvolvimento humanos que influenciaram fortemente a prática pedagógica pós-guerra."

Mas o volume que contém a proposta pedagógica da rede foge desta concepção de desenvolvimento e recai num sistema de aglutinação das séries existentes, mantendo a lógica da seriação e da fragmentação dos saberes ao estipular as competências mínimas para cada ano do ciclo, competências organizadas a partir dos índices de livros didáticos que são as referências encontradas para estipularmos os conteúdos/competências.

 

"...os materiais de apoio para o processo de ensino e aprendizagem incorporaram, também, uma divisão temporal artificial. Os livros didáticos, em sua grande parte, organizam os conteúdos por frações que "caibam" no tempo de aula do professor e na carga horária da matéria. Além de simplificarem, muitas vezes, as informações, tornando impossível para o aluno construir um conceito, tal a falta de elementos e de possibilidade de estabelecer relações entre eles, muitos livros didáticos estabelecem uma relação com o conhecimento que é utilitarista, pois serve à estruturação das aulas, ao invés de servir ao processo de aprendizagem do aluno, e , deste modo, não promovem o desenvolvimento das funções psicológicas superiores (Vygotsky)." (LIMA,2000:6)

 

Mesmo que estes conteúdos sejam agrupados em blocos num primeiro momento (como foi feito da Proposta Pedagógica da FME) ou com algumas falas da proposta apontando no sentido de uma educação inclusiva pautada no sujeito, como a lógica da seriação não foi superada quando se começa a discutir os anos escolares e seus objetivos (novamente conteúdos) esses blocos são decupados/fragmentados e a apreensão destas frações de saber são eleitas como objetivos finais de cada ano de escolaridade!!

Considerando, também, a primeira organização do sistema de ciclos, válida em 1999 e 2000 (anexoV), fragmentado em ano de escolaridade e Área de conhecimento e as modificações implementadas a partir de 2001, quando passa-se a poder reter mais de uma vez ao final de cada ciclo, o que se concretiza na educação municipal se equipara aos ciclos de aprendizagem e não aos de formação! A prioridade ainda é o "quê" o aluno retém de conteúdo e não seu desenvolvimento como sujeito.

Permanece na Educação a tentativa de um modelo ideal, que pré-existe.

No caso de Niterói, o processo de inovação foi gestado no entorno dos professores e entregue como solução como foi exposto. A prática da reflexão foi relegada para uma fase posterior na implementação das mudanças, o corpo de professores não participou do pensamento que originou a implantação dos ciclos, a sua participação se deu de forma "branda" após a oficialização da proposta.

Visando a tarefa de "informar" aos professores das novas diretrizes, a FME realiza desde o ano de 1999 vários encontros com intenção formadora que são chamados de formação continuada e anualmente previstos no calendário escolar, porém mesmo nos encontros específicos para discussão sobre ciclos, a reflexão sobre o sistema implantado era secundarizada e nitidamente transportada para o campo da mera informação, impossibilitando ou dificultando o surgimento de um coletivo capaz de se tornar agente construtor desta nova educação. Ou seja, a participação do professor no processo se dá no mais tradicional tecnicismo, a ele cabendo o papel de executor do que foi pensado por outro profissional.

Em 1999, a Rede realizou dois encontros onde a principal palestrante professora Elvira Lima, teórica dos ciclos de formação. Um aconteceu num clube em Niterói com a presença de todos os profissionais da Rede, durante um dia e o outro foi o VIII SEMINÁRIO EXTERNO - ritos de passagem na escola e na vida - realizado em Teresópolis - RJ para um grupo menor de professores, com a duração de três dias.

Em outubro de 2000, quando o sistema de ciclos completava dois anos de funcionamento, a FME através de ofício realizou uma pesquisa entre as escolas da rede sobre o sistema adotado, todas as escolas responderam através de memorando. Depois disso, na formação continuada externa de 2001, a FME trouxe como palestrante uma professora do Ensino Fundamental da escola Plural de Belo Horizonte. O fato é que continuou sendo pontual e dirigida a participação do professor, sendo ele ainda encarado como sujeito executor de experiências alheias ao seu fazer. Excluindo-o, como se possível fosse, da realidade pedagógica ao iluminar e valorizar espaços ocupados por outros que não ele. Esta forma de proceder parece isentar o professor do "trabalho" de refletir sobre a inovação.

O pensamento educacional de Niterói está mais para a origem plural das propostas das Prefeituras citadas ou mais para a proposta pelo governo federal em suas Diretrizes educacionais, que se afastam dos ciclos de formação e recaem num ciclo de aprendizagem onde a lógica da graduação não desaparece mas antes subsiste com "artifício" para o caminhar do aluno nos ciclos?

O descrito acima gerou indagações me motivaram a realizar esta pesquisa, buscando ampliar meus conhecimentos, através de um estudo sobre algumas propostas de ciclos já implementadas e procurando compreender o processo de adoção dos ciclos em Niterói, particularmente na Escola Municipal Eulália da Silveira Bragança, objetivo primeiro desse trabalho.

 


Como se densevolveu!

 

A pesquisa de campo se iniciou formalmente no mês de junho/2001, entre os profissionais da Escola Municipal Eulália da Silveira Bragança de Ensino Fundamental da rede pública de Niterói, situada no bairro do Jacaré. A escola atendia na época à Educação Infantil e aos dois primeiros ciclos do Ensino Fundamental, hoje, seguindo orientação da FME a Educação Infantil não é mais oferecida na escola. Até o ano de 2002, a escola trabalha em dois turnos (manhã e noite) e conta com um quadro de 15 professores, dos quais 06 dobram na própria escola. Além de 03 professores que fazem dupla , mas são de outras escolas.

São ao todo 22 turmas regulares (12 pela manhã e 9 pela tarde) e 1 sala de leitura no turno da manhã e 1 sala de informática para cada turno.

O ano de 2003, iniciará com a carência de 1 professor no turno na manhã e 3 professores no turno da tarde. E contará com uma turma para atender à Educação de Jovens e Adultos no turno da noite.

O discurso apresentado pelos professores no período da pesquisa, mesmo daqueles que não responderam ao questionário aplicado ou não foram entrevistados, constam direta ou indiretamente do texto de análise.

Considerando que eu mesma faço parte do universo pesquisado, no momento da análise crítica da pesquisa, o meu posicionamento tem sido sem dúvida o mais isento possível, mas nem por breve instante neutro.

No 2º semestre de 2001, início da pesquisa de campo, estruturei um questionário que trabalhei entre os profissionais da escola e tinha como objetivo revelar a visão que os profissionais da escola possuem sobre a nova proposta de educação.

Um total de vinte e três profissionais, na época, entre corpo docente e técnico-administrativo, foi o alvo da presente pesquisa(questionário). Foram distribuídas fichas de questionários contendo, cada uma, cinco questões.

Algumas fichas foram respondidas na mesma hora e outras, a maioria, levadas pelos profissionais e devolvidas depois de preenchidas .

Apenas 11 pessoas devolveram preenchidas, o que perfaz aproximadamente a metade do total de pesquisados e em si já é um indicativo da disposição dos profissionais diante da mudança e revelador de uma resistência a ela.

Fez parte também da pesquisa uma declaração escrita por uma das professoras da escola sobre sua visão do processo de mudança, vale dizer que partiu dela a iniciativa de redigir a carta. A relevância do escrito reside em ter sido o primeiro relato de uma professora envolvida na mudança e seu conteúdo auxiliou a delimitação do meu olhar, no sentido em que indicou-me caminhos de busca e pesquisa do "porquê" as práticas se sucediam sem grandes alterações perceptíveis.

O trabalho foi complementado por pesquisa bibliográfica e contou com a orientação da professora Maria Teresa Esteban.

O estudo vem sendo realizado através do entrelaçamento dos dados obtidos dessas diversas fontes, buscando uma reflexão aprofundada sobre a implantação do sistema de ciclos em Niterói. Para melhor compreender o processo do qual estou participando tem-se mostrado relevante visitar outros tempos e espaços em que o sistema de ciclos é um tema relevante.

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Notas:

1. PESSOA, Fernando- Mensagem, 1ª parte- Brasão- II Os Castelos Primeiro / Ulisses

2.Comentário feito pela professora Hilda Alevato via e-mail sobre as representações sociais.