Coordenação Regional dos Estudantes de Direito do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro -

Quem Somos | Campanhas | Estatuto | Contato   

 
  ERED
    Apresentação
    Dinâmica do Encontro
    Programação
    Pacotes e Pontos de Venda
 
  Artigos
    Ana Lúcia S. Enne
    Cristina Rauter
    Edson Passetti
    Fernanda Maria da Costa
    João Ricardo W Dornelles
    Lolita Aniyar de Castro
    Louk Hulsman
    Luis Eduardo Soares
    Marcelo Freixo
    Maria Lúcia Karam
    Regina Neri
    Silvia Ramos
    Sylvia Moretzsohn
 
 
 

ESTADO PENAL E A CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS



Fernanda Maria da Costa Vieira

(adv. do MST, professora da UFRJ)

 

No dia 4 de janeiro, o Jornal do Brasil noticiou a prisão de um grupo de moradores de rua que se reuniam numa praça pública no bairro do Leblon, um dos mais caros de nosso Estado, para terem uma aula de artesanato ao ar livre. Enquanto aguardavam pelos professores, uma equipe da 14ª DP levou-os presos em flagrante,  tipificados posteriormente em formação de quadrilha.
 

Tal cena vem se tornando cada vez mais corriqueira em nosso cenário e traduz com perfeição o crescente processo de penalização da miséria - uma necessidade estrutural do atual modo de produção capitalista de cunho neoliberal.
 

A redução do Estado de Bem-Estar Social e a fragilização do Estado-Nação, marca do ideário neoliberal, vem empurrando massas humanas para a exclusão social: crescem os sem teto, os sem emprego, os sem terra. Incapaz de fornecer respostas no plano das políticas sociais, o Estado oferece a esses setores marginalizados apenas o braço forte da sua política de segurança.
 

Como nos alerta Loïc Wacquant, a redução do Estado de Bem-Estar Social, promovida pelas políticas neoliberais, foi acompanhada pelo crescimento do Estado penal e policial, como uma necessidade de fortalecimento dos vínculos de controle social diante de uma população cada vez mais miserável.
 

Nessa lógica de penalização da pobreza e da redução da ação estatal em termos de políticas sociais, novas categorias são compreendidas como “perigosas”, em particular, as que acabam exercendo sua cidadania através de ações de enfrentamento à ordem legal estabelecida, exigindo novos mecanismos de controle social, no qual o Poder Judiciário vem  exercendo  papel fundante.
 

Tal processo de criminalização e controle vem se dando de forma mais agressiva  com relação ao MST e aos trabalhadores ambulantes. Em ambos os casos a tipificação penal é o de formação de quadrilha, que revela uma reorientação no sentido de se retirar da visibilidade pública o debate sobre a predatória estrutura fundiária de nosso país, marcado por um vergonhoso índice de concentração de terras; o direito legítimo ao trabalho; a ruptura com o sagrado direito à propriedade privada; a democratização da gestão do espaço público (uma das vertentes levantadas pelos trabalhadores ambulantes) e da garantia da dignidade da pessoa humana.
 

Não podemos nos furtar em analisar o papel que o Judiciário vem desempenhando na sustentação dessa hegemonia conservadora, que aponta para um recrudescimento dos discursos da lei e da ordem como forma de contenção das massas empobrecidas. 
 

Ao analisarmos algumas decisões, bem como, denúncias promovidas pelo Ministério Público, nos conflitos envolvendo o MST, fica demonstrado a atualidade do trabalho efetuado pelo Desembargador Sérgio Verani, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em seu livro “Assassinatos em nome da lei”, que buscava demonstrar o papel ideológico do Poder Judiciário na sedimentação da exclusão  e do exercício de controle social sobre as camadas mais baixas de nosso extrato social, legitimando o extermínio por parte dos agentes policiais desses setores excluídos,  sempre em nome da segurança da sociedade.
 

Hoje em nome da mesma segurança social, joga-se esses refugos humanos, como nos lembra Bauman, no sistema carcerário, com a mesma facilidade em que se arquivava os processos de extermínio nas décadas de 70  e 80.
 

Esse crescimento do sentimento de insegurança, que se potencializou com a redução das políticas de proteção social, com o rebaixamento salarial e com o aumento das taxas de desemprego, gerou um terreno propício para as políticas de criminalização da miséria, com o conseqüente encarceramento dos miseráveis.
 

Assim, incapaz de dar respostas no plano econômico-social, o Estado-Nação se apresenta como um Leviatã no quesito segurança, “desenha-se a figura de um novo tipo de formação política, espécie de `Estado-centauro`, dotado de uma cabeça liberal que aplica a doutrina do `laissez-faire, laissez-passer` em relação às causas das desigualdades sociais, e de um corpo autoritário que se revela brutalmente paternalista e punitivo quando se trata de assumir as conseqüências dessas desigualdades.
 

Logo, o Estado penal se sustenta num processo crescente de criminalização e controle social das camadas excluídas. Tornando a situação dos sem emprego mais frágil, pois esse setor é colocado como integrando o conjunto denominado de classes perigosas: os vadios.
 

A proliferação do temor da desordem e do caos justificam as estratégias de exclusão e controle social sobre as classes perigosas (pobres, desempregados, toxicômanos, moradores de rua, camelôs...). Assim, o genocídio se manifesta no aniquilamento dessas classes perigosas, impondo-lhes uma invisibilidade profundamente perversa, quando se tem dimensão de que as chamadas classes perigosas a cada dia crescem abandonadas nas marquises dos grandes centros urbanos.
 

O medo e a insegurança que invade corações e mentes se tornam categorias justificadoras de políticas de segurança mais ofensivas e legitimam as práticas policiais/penais. A proliferação do sentimento de medo, que vê o outro como um eterno inimigo a ser combatido, será  potencializada por uma mídia constante, responsável pela reprodução de práticas/discursos de exclusão.
 

A defesa da ordem e da lei,  sempre em nome de toda a sociedade, e, portanto, da nação, serve de justificativa para desvios da própria ordem legal, quando se trata de criminalizar os inimigos internos. A mídia, nesse sentido, vem exercendo um papel exemplar na manutenção do status quo.
 

A mídia vem se revelando bastante eficiente na construção de um imaginário de caos quando se trata de trabalhadores ambulantes. As imagens de guerra urbana produzidas pela imprensa acabam por legitimar as ações de repressão violenta por parte dos guardas municipais. Cresce o número de camelôs presos, são inúmeros os relatos de espancamento e tortura efetuados pela guarda municipal.
 

No entanto, a imprensa silencia. Trata-se de reforçar o estereótipo de que trabalhadores ambulantes são “fachada do crime organizado”, o que por si só justifica as práticas de barbarização no processo de repressão.
 

Se ainda não há uma sedimentação dos discursos jurídicos com relação aos camelôs, o mesmo não se pode dizer do MST. Ao romper com a construção de uma cidadania regulada reconstruindo sua agenda de direitos em conflito com o Estado, o MST torna-se um inimigo a ser vencido. A imagem de uma organização desordeira, se torna justificadora de medidas mais duras sobre o movimento.
 

                É em nome da ordem pública, da paz social, enfim, da manutenção do Estado Democrático e de Direito que se torna  necessário impor políticas persecutórias ao MST, como as decisões que decretam as prisões preventivas:
 

“Lembrando-se que ordem pública não é simplesmente a ausência de cometimento de ilícitos penais; seu conceito é mais abrangente. A ordem pública aqui é considerada como a normalidade da convivência social, é o respeito do cidadão à autoridade. Tem o conceito de ordem pública a finalidade de acautelar não só o meio social mas também a própria  credibilidade da justiça” (Proc. nº 229/2002 – Comarca de Teodoro Sampaio – Vara Única – seção criminal)
 

De fato, a criminalização do MST revela-se plena quando se analisa as denúncias promovidas pelo Ministério Público, isto porque, conquanto não haver responsabilidade penal objetiva, o parquet, como forma de concretizar a conduta delituosa acaba por valorizar  o vínculo do denunciado com o movimento:
 

“Narram os autos que os denunciados e os demais elementos não identificados, fazem parte de um movimento intitulado MST (...). Os denunciados tem se destacados dos demais integrantes devido a liderança que ostentam no grupo, sempre divulgados pela imprensa como os mentores intelectuais, posto que conseguem fomentar a massa hipossuficiente vinculada ao movimento, fazendo todos agirem de maneira uniforme, ao mesmo tempo, buscando sempre o mesmo fim, de acordo com as ordens da liderança, ludibriados por um pretexto legítimo que é a luta pela reforma agrária e consequentemente solucionarem um problema social. (...)
 

É certo, ainda, que por expressa deliberação da liderança, ora denunciados, todo o grupo também se une para descumprir ordens judiciais de reintegração de posse, fazendo sempre o Estado recuar (um absurdo) para se evitar um confronto armado” (Proc. nº 275/00 – Promotoria de Justiça da Comarca de Teodoro Sampaio ).
 

As imagens estereotipadas estão presentes em diversos momentos e criam um território propício à penalização do MST, ao mesmo tempo em que revelam toda a face ideológica do Poder Judiciário, desestimulando a resistência coletiva organizada e manifestações populares, como estratégias na definição de políticas públicas.  Na mesma denúncia acima mencionada, o parquet expõe de forma cristalina o horror que lhe causa o MST ao afirmar que:
 

“A liderança do movimento conhece os riscos que submetem os integrantes humildes, inclusive mulheres e crianças, fazendo que sirvam de escudos durante as invasões, muitas vezes, na busca de uma vítima para servir de bandeira do movimento, já que o conceito do MST tem recebido inúmeras críticas pela imprensa nos últimos anos” .

 

Conclusão
 

Estaríamos vivendo um verdadeiro processo de darwinismo social? marcado por uma banalização da vida, onde para uma pequena parcela da população, uma elite, abre-se a possibilidade de transcender ao infinito, garantido por vultuosas contas bancárias - denunciadoras de um processo cada vez mais brutal, que é a concentração de renda.
 

Por outro lado, aos  milhões de seres humanos vitimados pela fome e pela indigência, a alternativa é o desespero silencioso de uma vida sem sentido e sem esperanças de mudanças. A globalização, como esta vem se construindo, marcada por uma emergência do capital financeiro,  possui um caráter de segregação espacial:

 

“o que para alguns parece globalização, para outros significa localização; o que para alguns é sinalização de liberdade, para muitos outros é um destino indesejado e cruel. A mobilidade galga ao mais alto nível dentre os valores cobiçados - e a liberdade de movimentos, uma mercadoria sempre escassa e distribuída de forma desigual, logo se torna o principal fator estratificador de nossos tardios tempos modernos ou pós-modernos”.

 

Em outras épocas esse quadro de desigualdades provocaria, com certeza,  reações mais extremadas na esquerda, tanto no plano discursivo, quanto na ação. No entanto, perece-nos que tanto a esquerda quanto a direita lêem em uníssono a mesma cartilha. Esquerda e direita, finalmente,  parecem unidas, corroborando as teses dos defensores do fim das ideologias, o que  nos produz a sensação de que, de fato, não há alternativas.
 

Serão dias muito infelizes, como o próprio Fukuyama reconhece.  Nesse quadro de barbárie chega-se a pensar que não há saídas. Talvez o maior mérito do ideário neoliberal esteja na sua capacidade de amortecer as resistências.
 

Essa nova ordem tenta criar a imagem de que, nesses novos tempos, não se trata mais “de arriscar a vida por um objetivo puramente abstrato, a luta ideológica mundial que exija ousadia, coragem e idealismo, serão substituídos pelo cálculo econômico (...) não haverá política nem filosofia”.
 

O MST nos dá o tom da magnitude de nossos desafios ao bradar seu grito de  guerra: OCUPAR, RESISTIR, PRODUZIR! Nunca foi tão necessário ocupar os espaços públicos, resistir à barbarização da vida e produzir uma alternativa para sociedade, fundada em uma nova ética, marcada pela fraternidade e igualdade.
 

Fica aqui a defesa do historiador inglês HOBSBAWM, que de forma brilhante resgata o papel do socialismo nesse mundo marcado por uma razão cínica que insiste em nos dizer que não há saídas:

 

"Os socialistas estão aqui para lembrar ao mundo que em primeiro lugar devem vir as pessoas e não a produção. As pessoas não podem ser sacrificadas. (...) O Futuro do socialismo assenta-se  no fato de que continua tão necessário quanto antes, embora os argumentos a seu favor já não sejam os mesmos em muitos aspectos. A sua defesa assenta-se no fato de que o capitalismo ainda cria contradições e problemas que não consegue resolver e que gera tanto a desigualdade (que pode ser atenuada através de reformas moderadas) como desumanidade (que não pode ser atenuada)    (...) Uma sociedade que não é apenas capaz de salvar a humanidade de um sistema produtivo que escapou ao controle, mas uma sociedade em que as pessoas possam viver vidas dignas de seres humanos: não apenas no conforto, mas juntos com dignidade.

É por esse motivo que o socialismo ainda tem um programa 150 anos após o manifesto de Marx e Engels. É por esse motivo que ainda está no programa”.

 

Fernanda Maria da Costa Vieira, adv. do MST, professora da UFRJ

 

  


---------------------
Copyright Reserved - Todos os Direitos Reservados
CORED - RJ