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PRISÕES, CRIME ORGANIZADO E EXÉRCITO DE ESFARRAPADOS

 

Marcelo Freixo*
 

O sistema penitenciário do Rio de Janeiro abriga mais de 27 mil presos condenados duplamente. Sentenciados a cumprirem as penas determinadas pela justiça em condições absolutamente precárias, são novamente condenados à criminalização permanente diante do funcionamento de um sistema penal que promove nas prisões o espaço da consolidação da exclusão e não a punição ou a “ressocialização”.
 

O Brasil vem apresentando um forte crescimento da população carcerária desde a década de noventa. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), entre 1995 e 2003 a população de encarcerados no Brasil cresceu 93%. Este crescimento vem se tornando estrutural e se consolidando como um dos mais graves e desafiadores problemas da atualidade. Em dezembro de 2004, o Brasil contava com 336.358 presos. Em dezembro de 2005, este número subiu para 361.402. A grande maioria cumpre pena em regime fechado. Neste sentido, São Paulo vive um drama incomparável. Nas prisões paulistas concentram-se mais de 138 mil presos. O Rio de Janeiro é o segundo estado que mais encarcera no Brasil. Em dezembro de 2005 registramos 23.054 presos no sistema penal e 4.755 nas delegacias de polícia.
 

A realidade dos presos do Rio de Janeiro apresenta uma peculiaridade em relação aos demais estados. No Brasil, mais da metade dos presos é condenada por roubo ou furto, enquanto no Rio de Janeiro a maior concentração das condenações é por tráfico de entorpecentes. Este contexto gera a necessidade de uma análise específica sobre a relação das prisões com a ação do que chamam de “crime organizado” nas favelas do estado.
 

A cidade do Rio de Janeiro possui mais de 800 favelas, onde vivem mais de um milhão de pessoas. Em praticamente todas as comunidades existe o tráfico de entorpecentes. Exceção feita para algumas favelas na Zona Oeste, onde o domínio é feito por grupos de policiais que controlam a segurança, o transporte alternativo, a distribuição do gás e outros serviços. Por mais que menos de 1% dos moradores esteja envolvido com o tráfico, é no combate a este comércio de drogas que podemos ver focada toda a política de segurança do governo estadual. Seria este tráfico o grande crime organizado do Rio de Janeiro?
 

O comércio de entorpecentes é uma das atividades econômicas mais complexas e lucrativas do mundo capitalista atual. É uma “empresa” concentradora de renda, altamente lucrativa, que explora mão de obra barata e, portanto, totalmente adaptada ao mundo neoliberal. Outra característica curiosa é a forte alienação do trabalho que produz: seus “funcionários” não possuem a menor idéia do montante do lucro da empresa. Esta mão de obra é formada por jovens, cada vez mais jovens, arruinados afetivamente, esvaziados de reconhecimento e visibilidade e sem qualquer perspectiva de um futuro breve.
 

Excluída de forma complexa e profunda, esta juventude enxerga na arma, na facção e no poder local todo sentido de vida e reconhecimento necessário. Recentemente observei, dentro de uma favela da Zona Norte do Rio de Janeiro, um jovem de aproximadamente 15 anos, alugando uma arma do tráfico para passear pela favela e, possivelmente, desfrutar dos olhares mais atenciosos das meninas da mesma idade. Fica evidente que, por um lado, o desemprego, a desigualdade social e a péssima distribuição de renda e, por outro, o imaginário simbólico e coletivo, a exclusão geográfica e cultural produzem, da mesma forma, um mapa complexo e desafiador da violência.
 

Quando entramos nas favelas observamos armas, drogas e miséria afetiva e material. O que chamamos de crime organizado é exatamente onde existe o menor grau de organização. Os que chamamos de grandes traficantes são pessoas que, na maioria das vezes, nunca saíram da favela e possuem um baixíssimo nível escolar. O enorme grau de violência e inconseqüência, que caracteriza a ação destes garotos, confunde-se com criminalidade e organização. A linha entre a vida e a morte é tênue, sutil, quase imperceptível.  Seriam grandes criminosos por serem muito violentos. Esta lógica é falsa e acaba sustentando toda política de segurança e penitenciária do Estado.
 

As favelas do Rio de Janeiro são vitimadas duplamente. De um lado o tráfico cada vez mais opressor e violento, e de outro a ação discriminatória do Estado que só comparece nos morros com a polícia.  Nestes lugares não existe Estado! A favela da Maré possui mais de 130 mil moradores e só existem duas escolas públicas. Hospitais, creches, transportes e todos os setores básicos são precários.  Junto com a desigualdade de direitos, observamos a criminalização da pobreza. A obstrução generalizada do princípio da legalidade opera dentro das favelas como um motor do poder local do tráfico. Não existe poder paralelo e sim absoluto, pois a ausência do poder do Estado e de um padrão de legalidade faz com que qualquer questão seja resolvida dentro da lógica local.
 

O Rio de Janeiro possui a polícia mais violenta do mundo. O grau de letalidade da polícia carioca supera todas as polícias dos Estados Unidos somadas. Nos últimos sete anos, as mortes provocadas pelas ações policiais cresceram 298,3%. Hoje são mais de três pessoas por dia mortas pela polícia. O perfil das vítimas é conhecido: jovens do sexo masculino, pretos, pobres, moradores de favelas e periferias e de baixíssima escolaridade. Os dados citados referentes a letalidade policial são oficiais e definem apenas aqueles registrados com o título de autos de resistência - pessoas que foram mortas supostamente em conflito com a polícia.
 

Um estudo do professor Ignácio Cano demonstrou que em 67% dos casos de auto de resistência a vítima apresentava tiros na nuca e disparados a curta distância. Os laudos não deixaram dúvidas que por trás destes registros existe mascarada a prática da execução sumária. Esta realidade atinge diretamente os jovens pobres das favelas e provoca a perversa inversão do ônus da prova, pois se um jovem com estas características é morto pela polícia e registrado como auto de resistência, cabe a família provar que seu filho era inocente.
 

Outra prática que consolida a criminalização da pobreza é o mandado de busca genérico ou coletivo. Contrariando a lei brasileira, estes não especificam endereços ou pessoas, mas abrangem toda a comunidade. Este é o momento onde todos os moradores são criminalizados pela polícia e pelo judiciário. Evidentemente estes mandados são exclusivos para as favelas, consolidando assim o etiquetamento penal dos setores mais pobres da sociedade. É verdade que a polícia sempre invadiu as casas das favelas sem qualquer necessidade de mandado judicial. O que assistimos, então, é a adequação da justiça à ação opressora da polícia sobre os guetos. É a legitimação da ação ilegal e truculenta da polícia.
 

Em um dos mandados genéricos expedidos no Rio de Janeiro no ano de 2002, um juiz fluminense justifica a medida da seguinte maneira: “Destarte, este grito de socorro e justiça promovido pelo povo deve ser atendido com urgência e rigor, não só pelos policiais honestos, mas também, e principalmente, pelo Poder Judiciáro, que ciente e consciente das dificuldades investigatórias dos incorruptíveis policiais e da fragilidade dos cidadãos que se aventuram em ‘denunciar’ o lixo genético que lhes amedronta, cala e mata, não pode simplesmente encastelar-se de forma alienada para discutir meras filigranas jurídicas.”
 

Os setores pobres e favelados do Rio de Janeiro se tornaram a nova classe perigosa. Durante o regime militar, o discurso da segurança pública se voltava para a ameaça comunista, subversiva. No decorrer da década de noventa verificamos um forte processo de criminalização dos setores que sobraram da sociedade de mercado. Durante o fim da década de oitenta e início da década de noventa, o Brasil consolidou um capitalismo neoliberal, não produtivo, onde a busca do lucro se faz na esfera da especulação financeira e não no setor produtivo da economia. Este modelo se faz com um Estado forte em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em gastos sociais e intervenção econômica. A estabilidade monetária passa a ser o eixo central da economia. Daí a necessidade de disciplina orçamentária, contenção de gastos públicos e restauração da taxa “natural” de desemprego. A redução de impostos mais altos e sobre a renda, assim como a alta lucratividade dos Bancos, fez da desigualdade social um importante dinamizador de nossa economia.
 

O atual governo federal mantendo o modelo econômico do governo anterior, gastou com juros e serviços da dívida pública R$ 717 bilhões, valor que seria suficiente para assentar 4 milhões de famílias rurais, duplicar os recursos em educação e saúde e garantir habitação para 15 milhões de famílias sem teto. Segundo o economista Márcio Porchmam, no Brasil de hoje as 20 mil famílias que vivem de rendas ganham R$ 2.685,00 por dia, mas os 8 milhões de pobres do programa Bolsa-família recebem R$ 0,48 por dia. Este abismo faz o Brasil estar sempre entre os países mais desiguais do mundo. A exclusão social se torna estrutural diante da construção do Estado Mínimo. São mais de 50 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza.
 

A desigualdade é acompanhada de forte imobilidade social sistêmica, onde parte da população se torna uma massa inimpregável de subcidadãos. Para todo Estado Mínimo existe a necessidade de um Estado Máximo de controle social e repressão sobre as populações pobres e excluídas. De um lado a mão do mercado e da desqualificação e desregulamentação do trabalho, do outro a mão penal e policial da repressão. Segundo Zigmund Bauman, “a pobreza não é mais um exército de reserva de mão de obra, tornou-se uma pobreza sem destino, precisando ser isolada, neutralizada destituída de poder.”
 

É neste contexto que precisamos debater o sistema penitenciário atual e sua complexidade. A quase totalidade de nossos presos são representantes deste setor completamente excluído economicamente, culturalmente e socialmente. O sistema penitenciário é sempre um reflexo da sociedade que o produz, um espelho das nossas contradições. A falta de política para o sistema penitenciário e a ausência de gestão são sintomas desta exclusão mais profunda. Para a opinião pública e para boa parte dos governantes, uma prisão segura é aquela em que não ocorrem fugas nem rebeliões. O que acontece dentro dos muros pouco importa. Investir na capacitação de técnicos e dos profissionais de segurança, em trabalho para os detentos, em escolas dentro das prisões ou na classificação dos presos conforme determina a lei, não são prioridades. Não são vistas como medidas que contribuam com a segurança das unidades penais. O crescimento da população carcerária brasileira é acompanhado do mais absoluto caos administrativo.
 

Em todo o Brasil convivemos com um enorme abismo entre o que é real e o que é legal. Porém é no sistema penitenciário que esta distância se torna mais dramática. A Lei de Execução Penal é uma de nossas leis mais avançadas, apesar de ter sido elaborada em 1984 e evidentemente necessitar de complementações. A LEP é sem dúvida a lei mais descumprida de nossa legislação. 70% dos estados da federação separam os presos pela facção criminosa, a média nacional de presos estudando é de 17%, apenas 16% dos estados possuem patronato, só 20% contam com escola de formação penitenciária e em 70% não existe plano de cargos e salários para os funcionários da secretaria responsável. Sendo assim, as prisões vão se consolidando como instrumento de solidificação da exclusão, executando a pena de morte social.
 

É dentro desta perspectiva que devemos analisar o crescimento e fortalecimento das facções criminosas dentro e fora das prisões. As facções representam o elo entre as favelas e as prisões. Dentro das favelas, diante da ausência do Estado, estes grupos exercem o poder local com grande violência e tensão permanente. A maioria esmagadora de seus membros são jovens que nunca conheceram uma realidade diferente das favelas, poucas vezes saíram da comunidade. A linguagem hegemônica desde muito cedo é a da violência. A breve vida se resume na venda da droga, no exercício do poder local, nos romances locais, nos confrontos e acordos com a polícia e nas guerras permanentes com as facções rivais. A inserção destes jovens nos grupos criminosos muitas vezes representa não somente a possibilidade de uma vida mais viável economicamente, mas também, e não menos importante, a viabilidade de se sentir reconhecido, valorizado e dotado de significado. Dentro das prisões estas facções são fortalecidas e continuam mantendo o controle absoluto sobre as comunidades - dando ordens de quem vai viver e quem vai morrer, qual comunidade será invadida e quem responde pelos negócios locais.
 

No Rio de Janeiro, quando uma pessoa é detida e chega à delegacia, os funcionários perguntam a qual facção ela pertence, de forma a poder classificá-la em uma das celas da unidade. Quando o preso afirma não pertencer a nenhuma facção, o funcionário pergunta onde ele mora visando com isto identificar em qual facção sua vida pode estar mais “segura”. Para muitos presos, é na prisão que se inicia a vida dentro de uma facção. Hoje, todas as prisões do Rio de Janeiro estão ligadas a uma das três facções existentes no estado. Tal realidade faz com que o sistema penitenciário e a direção das unidades tenham que adequar as regras legais com as regras das facções. Quando um detento ganha a concessão de um benefício, como o regime semi aberto, sua transferência para uma unidade compatível com o novo regime depende das vagas oferecidas nas prisões da facção a qual pertence o preso. Se a vaga disponível for em um presídio de outra facção, o preso continua no regime fechado e a vaga continua aberta. É evidente que não se pode misturar presos de fações rivais, porém não criar alternativa para a correta classificação dos presos conforme o crime que cometeu e seu grau de periculosidade, faz com que o Estado seja um importante instrumento da organização deste exército de esfarrapados.  Dos trinta presos que morreram na casa de custódia de Benfica em 2004, no mais sangrento conflito entre facções dentro das prisões, pelo menos 17 tinham sido detidos por crimes leves. A maioria eram moradores de rua, presos por furto ou roubo de pequeno valor. Não possuíam qualquer vínculo com facções até o momento de suas prisões.
 

O tráfico de drogas e de armas continua sendo de enorme lucratividade, o discurso da segurança pública continua focado na guerra contra o crime organizado nas favelas e os jovens pobres e negros continuam sendo mortos e presos em escala assustadora. O atual quadro além de desumano com os setores mais pobres da sociedade é também de total ineficiência das políticas penitenciárias e de segurança.
 

A sociedade de mercado não comporta conceitos como democracia, liberdade, garantias legais, penais e processuais. As instituições não suportam nem mesmo um choque de legalidade. Todos os valores e conceitos são substituídos pela segurança. A luta pelos direitos humanos busca garantir o cumprimento da lei para todos, garantir que por serem humanos devem ter a garantia dos direitos básicos. O preconceito ao termo “direitos humanos” vem do fato de que a opinião pública não reconhece humanidade numa parcela da sociedade e, conseqüentemente, não considera a possibilidade dos seus direitos. A despersonificação e a invisibilidade destes segmentos contribuem para a construção do medo e da intolerância. Enquanto não vencermos esta luta política pedagógica, vamos continuar ampliando a crise do sistema penal e chamando de crime organizado apenas os atos criminosos dos setores esfarrapados.

 

* Marcelo Freixo é professor de História e pesquisador da ONG Justiça Global

 

  


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