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ABOLICIONISMO PENAL E PRIVAÇÃO DE LIBERDADE

 Louk Hulsman     

 Abolição

 

Faço uma distinção analítica entre dois tipos de posturas abolicionistas:

 

1.  Abolicionismo como movimento social que nega a legitimidade   da justiça criminal e luta por sua abolição da mesma forma como os abolicionistas da escravatura fizeram com a escravidão.

 

                    2. Abolicionismo como teoria crítica, referente a valores acadêmicos que requerem independência acadêmica de práticas sociais existentes, para permitir uma avaliação mais objetiva dessas práticas à luz de uma moral definida. É necessário abolir a linguagem da justiça criminal em tal avaliação do sistema. A teoria crítica é que a justiça criminal não é ‘natural’ e que sua ‘construção’ não pode ser legitimada.

 

Minha contribuição é estruturada no abolicionismo como teoria crítica. As idéias sobre a realidade da justiça criminal que sustenta o debate público e as contribuições da universidade a esse debate são em grande escala empiricamente apresentadas como sendo impraticáveis. Nesse debate a criminalização é vista como uma resposta normal às ações criminalizáveis. E as ações criminalizáveis são vistas como fatos problemáticos de natureza especial.

Estudos da ‘cifra negra’ (quantidade de ações criminalizáveis não tratadas pela justiça criminal) mostram que a atual criminalização de ações criminosas (com base na tipificação legal do direito penal) é uma rara exceção. Na Holanda só por volta de 2% dos acontecimentos que podem ser definidos como crime pelo código penal é tratado pela justiça criminal.

                Provavelmente muitos desses não criminalizados fatos criminalizáveis são (na medida em que são problemáticos) tratados por pessoas que se sentem de diferentes modos injustiçadas. As vias pelas quais eles são tratados, na realidade, não fazem parte do debate público.

A auto-reflexão provavelmente irá mostrar a quase todos que os fatos criminalizáveis, nos quais alguém foi envolvido como pessoa injustiçada, não foram vividos como especificamente memoráveis ou traumáticos em comparação a outros fatos problemáticos experimentados na vida. Muitos deles são vistos mais ou menos como ‘problemas’ comuns e alguns não são de forma alguma considerados problemas. Pesquisa feita nesse campo confirma o resultado de tal auto-reflexão.

Um dos motivos importantes do por que tão poucos fatos são tratados na justiça criminal é que as pessoas injustiçadas não acham que o caminho da justiça criminal seja uma boa maneira de resolver seus problemas.

Na linguagem da justiça criminal, o foco está em um perpetrador culpado e seu castigo. A culpa do perpetrador está subordinada à pergunta se o seu comportamento se encaixa à descrição de uma definição específica na lei penal. Essas definições específicas são muito limitadas no tempo e espaço. Elas são descontextualizadas e não produzem reconstruções válidas dos acontecimentos para uso ‘social’. Essas reconstruções restritas só podem ser usadas para limitar o poder do Estado em processos criminais.

Em minha análise abolicionista o foco está na situação problemática. A introdução do conceito de situação problemática é uma estratégia para formular algumas questões. A primeira questão é: Quem pensa que essa (vagamente ainda formulada) situação é problemática? Para aqueles que podemos considerar como mais ou menos diretamente envolvidos, temos então uma segunda série de perguntas: O que aconteceu? O que quer? Somente se a pessoa injustiçada tiver atribuído o fato a um perpetrador (e o perpetrador se tornar conhecido) é que o perpetrador passa também a fazer parte de minha análise. Ao agir dessa maneira isentamos diversas pessoas que se sentem incomodadas ou injustiçadas e também àquelas várias que são pedidas para intervir em situações problemáticas (profissionais ou não-profissionais). Essas intervenções devem se concentrar em reforma e/ou prevenção. As perguntas podem ser feitas com respeito às situações em um nível micro, médio e macro.

 

  Como pode o forte crescimento na população carcerária (e a importante diferença de nível dessas populações) ser explicado?

As grandes diferenças em nível da população encarcerada entre distintos países (e o deslocamento dela) são claramente explicados na terceira edição de um livro de Nils Christie, ‘Controle do crime como indústria”. Pego emprestado alguns de seus mapas que dizem respeito à Europa Ocidental e a Europa Central e Oriental (veja anexo). Mais adiante, repito a informação dele com relação a América do Norte: ele aponta que, em 1999, no Canadá, o número de prisoneiros, para cada 100.000 habitantes, era de 129 e, nos Estados Unidos, o número era de 709. Está claro, a partir desses dados, que as diferenças na população carcerária estão subordinadas principalmente ao tipo de reação aos incidentes e não às diferenças entre a natureza dos acontecimentos em si mesmos.

É provável que em muitos países o aumento da população encarcerada não esteja relacionado a uma mudança nos incidentes problemáticos criminalizáveis, mas em uma mudança da reação a esses acontecimentos. Esse é claramente o caso dos Estados Unidos e da Holanda.

 

Direitos Humanos e população carcerária

O direito das pessoas de liberdade de movimento é um dos mais básicos direitos humanos. Confinamento (e detenção) de pessoas afeta esse direito não somente com respeito às pessoas presas ou detidas, mas também com respeito a todas as pessoas que são impedidas de ter acesso a elas. Em muitos textos nacionais e internacionais que são ‘garantia’ a esse direito, as limitações só são justificadas no máximo como ‘necessárias em uma sociedade democrática’.  Freqüentemente a privação de liberdade vai também em contra a outros direitos humanos.

 

O que pode ser feito, e o que é feito, para acabar com esse injustificado restringimento de liberdade de movimento, infração de outros direitos humanos e a imagem errônea de nosso meio ambiente social que resulta disso?

Existem algumas coisas que todos sempre podem fazer, e outras coisas que só certas pessoas podem fazer, e muitas vezes só em certos momentos.

A justiça criminal existe em nós no máximo quando usamos sua linguagem, seja falando-a para esclarecer as coisas ou ouvindo-a para entender as coisas. Todo mundo se transforma em justiça criminal quando faz isso.

Antes, eu disse que a linguagem da justiça criminal só pode ser usada de maneira válida para limitar certos poderes do Estado. Contribuímos para a abolição da violência injustificada da criminalização quando nos recusamos a usar sua linguagem e pedimos aos outros que nos digam sobre o que estão falando, colocando isso no contexto e nos permitindo entender a inter-relação das circunstâncias dos acontecimentos, e a fazer distinções entre descrições factuais e julgamentos morais. Dessa forma podemos todos, o tempo todo, contribuir para uma mudança para o melhor.

Podemos também todos tentar abordar acontecimentos problemáticos criminalizáveis, que nos ocorrem, de uma forma que evite a criminalização. Essas duas maneiras de evitar a criminalização estão expostas a todos e reforçam uma a outra. Todo mundo lucrará também com isso em muitos aspectos.

À parte desses caminhos, que são franqueados a todos, existem os caminhos expostos a grupos especiais de pessoas.  Na universidade, os professores podem ajudar os estudantes a desenvolver uma atitude crítica com respeito aos sistemas, e a mobilizar e a respeitar seus próprios ‘tesouros’ de experiência, e a se sentirem confortáveis com a variedade desses ‘tesouros’. As pesquisas na universidade podem se concentrar nas formas em que as situações problemáticas criminalizáveis são tratadas pela justiça criminal do mundo exterior. O que, e para quem, é eficaz lá, e como estabelecer uma relação entre essas práticas e os direitos humanos.

Dessa maneira podemos nos dirigir a todas as diferentes profissões que têm algo a ver com justiça criminal ou com acontecimentos problemáticos criminalizáveis que não são criminalizados. E lá encontraremos farta quantidade de experiências práticas, freqüentemente bem descritas e testadas, de como lidar com esses eventos. Mas, muitas vezes, não reconheceremos imediatamente esses acontecimentos como criminalizáveis porque, reconstruídos de uma outra forma, têm uma outra face.

 

 

 

CASOS                               no ano de 2004                         PESSOAS INJUSTIÇADAS

 

4,6 milhões    vivenciaram acontecimentos considerados crimes pelo código penal                  3,4 milhões

1.6 milhões                                mencionaram à polícia                                           1.3 milhões/1.2 milhões

1.3 milhões                         registraram queixas oficialmente                                                            954.000

147.000                                elucidaram (resolveram) casos                                                             137.000

103.000                                 trataram com promotor público                                                            129.000

67.000           mandados pelo promotor público ao tribunal e trataram no tribunal                             84.000

 

slachtoffers van criminaliteit, feiten en achtergronden\

karin wittebrood   sociaal en cultureel planbureau

den haag april 2006

 

*Os números nos mapas abaixo se referem ao número de prisioneiros para cada 100.000 habitantes.

 

 

  


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