MÍDIA, POLÍCIA
E SEGURANÇA PÚBLICA: O PAPEL DA IMPRENSA NAS RESPOSTAS BRASILEIRAS À
VIOLÊNCIA
Silvia Ramos
De
1980 a 2003, mais de 700 mil brasileiros foram assassinados. A taxa
de homicídios no Brasil mais do que duplicou nesses 23 anos,
passando de 11,7 homicídios por 100 mil habitantes em 1980 para 28,8
homicídios em 2003 — índice que coloca o Brasil entre os países mais
violentos do mundo. Durante muito tempo, a sociedade e as
instituições brasileiras assistiram a esta matança em silêncio.
Afinal, as mortes atingem principalmente grupos desfavorecidos:
jovens do sexo masculino (especialmente na faixa de 15 a 24 anos),
na maioria pobres, quase sempre negros e moradores de periferias ou
favelas dos grandes centros urbanos.
A
partir dos anos 1990, diferentes setores da sociedade despertaram
para a gravidade do quadro e começaram a desenvolver ações não só de
denúncia desta situação, mas também nos campos das pesquisas e das
experiências de gestão de políticas públicas de segurança. No início
da década de 1990 também foram criados o Viva Rio, o Afro Reggae e
outras iniciativas voltadas para responder aos temas da violência
nas cidades e nas favelas. O Instituto Sou da Paz, em São Paulo, foi
criado em 1999.
Os
jornais também responderam a esta nova percepção da problemática da
segurança, alterando estratégias de cobertura e pouco a pouco
deixando as velhas práticas das reportagens de polícia, quase sempre
sensacionalistas e vinculadas à troca de favores com fontes
policiais. Os jornalistas que cobrem a área, geralmente ligados às
editorias de reportagem local, hoje são mais qualificados e
encontram maior reconhecimento de seus colegas, como seria de se
esperar de especialistas num dos temas mais candentes do Brasil.
A
mudança é fundamental, já que a mídia tem desempenhado um papel cada
vez mais importante no debate público sobre o tema, influenciando a
opinião da sociedade e as políticas de Estado. Na apuração do caso
Tim Lopes, na investigação de denúncias de corrupção policial, no
processo de mobilização e votação no Congresso do Estatuto do
Desarmamento, e no processo do plebiscito pelo fim de
comercialização das armas de fogo, a mídia foi decisiva na qualidade
e rapidez das respostas do governo e da sociedade.
Considerando o papel
decisivo dos meios de comunicação nos países democráticos para o
agendamento de políticas públicas, em janeiro de 2004, o Centro de
Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) , da Universidade Candido
Mendes, decidiu realizar um diagnóstico sobre como os jornais cobrem
a violência no Brasil.[1]
A pesquisa analisou textos veiculados pelos jornais Folha de S.Paulo,
O Estado de S.Paulo, Agora São Paulo, O Globo, Jornal do Brasil, O
Dia, Estado de Minas, Diário da Tarde e Hoje em Dia ao longo de 35
dias, distribuídos por cinco meses do ano de 2004 (maio a setembro).
Em média, a circulação dos nove veículos, somada, é de 1,2 milhão de
exemplares diários. Ao analisar os 2.514 textos resultantes,
percebemos que a cobertura dos jornais tem importantes diferenças.
De
um modo geral, o perfil dos textos analisados indica que os jornais
têm abdicado de enriquecer a cobertura sobre violência e segurança
com alguns tipos de abordagem. O espaço que os veículos analisados
dedicaram a textos opinativos sobre estes temas foi muito reduzido:
durante o período da pesquisa, houve pouquíssimos editoriais (1,4%),
artigos (1,2%) e colunas (0,3%) sobre o tema. Mais de um quarto
(27%) da cobertura é composta de pequenas notas informativas, sem
qualquer tipo de contextualização.
Ao
analisar os principais temas tratados pelas redações, percebe-se que
as forças de segurança — nas quais se incluem as várias corporações
policiais (Federal, Civil, Militar e Técnica), as Forças Armadas e
as guardas municipais — são as protagonistas do noticiário, sendo o
assunto de 40,5% dos textos.
O
outro tema dominante é o ato violento em si, assunto de 21% das
matérias. Os desdobramentos e repercussões destes atos somam 16,2% —
ou seja, 37,2% da cobertura gira em torno de crimes. Mas a análise
das matérias deve ser considerada não apenas por aquilo que foi
abordado, mas também pelo que não foi. Temáticas centrais como a
violência enquanto fenômeno sócio-cultural-político (3,3%) e
direitos humanos (2,4%) aparecem muito pouco. Também chama a atenção
o pequeno número de reportagens e artigos baseados em estatísticas e
pesquisas.
Entre os 2.514 textos analisados, 1.018 tiveram como foco central as
chamadas forças de segurança (Polícia Militar, Polícia Civil,
Polícia Federal, Polícia Técnica, Forças Armadas e guardas
municipais). Parece haver uma tendência na consolidação de um
jornalismo de fiscalização policial, dado que o segundo maior
percentual (16,5%) dentre os textos que abordaram as forças de
segurança é ocupado pelos que relatam crimes (ou denúncias de
crimes) cometidos por policiais. Mas o tratamento editorial da
cobertura envolvendo as forças de segurança ainda é muito mais
pautado pelo acompanhamento dos diferentes tipos de ação policial
(57,6% das notícias que se centraram nas forças de segurança,
trabalharam a ação policial).
Quando analisamos as ações policiais verificamos que elas estão
centradas nas prisões de suspeitos, seguidas de investigações e
operações de busca e/ou apreensões de várias naturezas. Esses
resultados derrubam cabalmente o mito, tantas vezes repetido por
policiais e autoridades de segurança, de que a mídia "só dá destaque
às coisas negativas sobre a polícia". Nada menos do que 585, de um
total de 2.514 textos analisados, focalizam ações policiais
bem-sucedidas: prisões, apreensões, resultados de investigações,
mostrando a polícia "em ação".
Na
verdade, a pesquisa revela que as polícias têm nos jornais um
excelente veículo de divulgação de suas ações e que predominam os "feitos"
policiais, onde se imagina que predominam as críticas. Dificilmente
outra instituição encarregada de políticas públicas (como por
exemplo as da saúde, da educação, ou de saneamento) encontrará tanto
espaço nos jornais para divulgar seu trabalho.
No
entanto, é importante reconhecer que em alguns estados brasileiros,
como o Rio de Janeiro, a mídia é uma fonte quase solitária de
controle externo da ação de polícia, considerando que a ouvidoria é
virtualmente inexistente e as corregedorias são extremamente frágeis.
Em
síntese, pode-se concluir que há tendências simultâneas em curso.
Por um lado, o volume de notícias sobre os temas da violência e da
segurança publica é expressivo, indicando o reconhecimento da
importância do assunto, especialmente nos jornais do Rio de Janeiro.
Tudo
indica que a maioria dos jornais analisados deixou de praticar as
coberturas meramente "criminais" típicas das antigas seções de
polícia e passou a tratar de violência e de segurança pública. Além
disso, nem mesmo os jornais de venda em banca se excedem no
sensacionalismo ou na apelação à "dureza" contra o crime nos moldes
clássicos e muito recorrentes no passado. São muito raras as
notícias que defendem o endurecimento do tratamento com os
criminosos ou a restrição de seus direitos (0,4%) e é pequeno (5,6%)
o número de matérias que buscam enfatizar um sentimento de medo da
sociedade frente ao fenômeno da violência urbana. Por fim, são
desprezíveis os textos que deixam transparecer a idéia de que é
possível fazer justiça com as próprias mãos (0,7%).
Por
outro lado, a cobertura ainda é altamente dependente das fontes
policiais, é extremamente factual, pouco contextualizada, com baixa
presença de opiniões divergentes e pouquíssimos dados. Novas
tendências se vislumbram, com um percentual não desprezível de
textos enquadrados na perspectiva das políticas públicas, em
particular quando o foco é o sistema penitenciário. Mas, do ponto de
vista jornalístico, predomina em grande parte das matérias um
tratamento superficial, que revela um investimento ainda pequeno das
redações em retratar o setor com a importância que ele tem. Assim,
vive-se uma contradição: enquanto a mídia denuncia a gravidade da
crise da segurança pública no país, abdica, na maior parte do tempo,
do papel de tomar a dianteira no debate sobre o tema — o que poderia
motivar ações do Estado mais eficazes e abrangentes.
Uma das críticas
mais comuns à polícia é que ela corre atrás do crime, sem capacidade
de preveni-lo com planejamento e inteligência. A cobertura
jornalística, mesmo dos melhores jornais do país, padece, em parte,
dos mesmos problemas. Corre atrás da notícia do crime já ocorrido,
ou das ações policiais já executadas, mas tem pouca iniciativa e usa
timidamente sua enorme capacidade para pautar um debate público
consistente sobre o setor.
[1]A
pesquisa foi coordenada por Silvia Ramos e Anabela Paiva. Os
resultados da pesquisa encontram-se em www.ucamcesec.com.br
|