Algo Não Está a Funcionar no Sistema de Ensino
Por JOÃO VIEIRA GOMES*

"Algo não está a funcionar no sistema de ensino". Esta a conclusão do secretário de Estado da Educação, João Praia, relativa à discrepância encontrada entre a média da classificação interna (12,4 valores) e a do exame nacional (7,4 valores) na disciplina de Matemática.

Na verdade existem demasiadas coisas que não funcionam no nosso sistema de ensino. Se mais evidências não houvesse bastaria analisar a frequência com que, nestes últimos tempos, se muda de ministro da Educação. Mas é curioso que o secretário de Estado tenha sentido a necessidade de focalizar o não funcionamento na Matemática e que tenha para isso recorrido aos resultados verificados no Ensino Público. Se aqui o intervalo de discrepância se situa nos 5 valores, ele é ainda mais acentuado no caso do Ensino Particular Cooperativo: a diferença entre a média da classificação interna final (12,6 valores) e a do exame nacional (7,1 valores) é de 5,5 valores. Se a diferença de 5 valores registada no Ensino Público é sintoma de mau funcionamento o que dizer da disparidade, ainda maior, no Particular Cooperativo?

Este desvio de meio valor não é, em termos estatísticos, relevante, mas a avaliação do problema efectuada pelo secretário de Estado leva a concluir que a questão não deve ser analisada só em função da frieza dos números. Ao comentar que é preciso "que exista uma boa relação entre o que o aluno aprende e o que realmente é mostrado nos exames nacionais", o referido membro do Governo levanta uma questão pertinente: a avaliação em exame não traduz a existência das aprendizagens desejadas. Nesta perspectiva a discrepância no Ensino Particular e Cooperativo é mais grave.

Esta dicotomia de ensinos entre Público e Particular assume hoje, no caso do Ensino Secundário, peculiar relevância. Assiste-se nos grandes centros populacionais ao paradoxo de as escolas públicas não terem alunos e de as privadas estarem a rebentar pelas costuras. Com a agravante de ser o próprio Estado a suportar os custos da educação de muitos desses alunos dos estabelecimentos privados. Temos um Ministério que prefere pagar a terceiros para não autorizar a abertura de turmas no Ensino Público que não cumpram o rigorosíssimo limite mínimo de alunos que impôs.

Mas porque é que a avaliação em exame não traduz as aprendizagens desejadas?

Para além dos conhecidos factores de influência comuns a todas as disciplinas que contribuem para o decréscimo generalizado da CIF para a CE, o Ministério da Educação apresentou uma explicação plausível: nem todos os que fizeram este exame "estão nas mesmas condições". Por isso, "se é para fazer comparações, é melhor recuar até 1999". O secretário de Estado nem à própria explicação do Ministério atendeu. Supõe-se que, para ele, a resposta que parece mais óbvia será a de que não houve congruência entre o exigido em exame e o aprendido ao longo do ano. Sendo conhecidos os pareceres das associações de professores de Matemática sobre as duas provas até agora realizadas e que traduzem a consonância entre os exames e as indicações do programa ajustado de Matemática, o ónus da questão cai sobre os docentes de Matemática. Neste quadro, a afirmação do secretário de Estado indicia que o que não terá funcionado foi a correcta coordenação da actividade lectiva dos docentes de acordo com as indicações e gestão do programa ajustado de Matemática.

Vem a propósito aqui recordar algumas das "Ideias Nefastas para a Educação" que António Barreto expôs num artigo notável no PÚBLICO. Essas ideias traduzem o não politicamente correcto no actual sistema de ensino. Criou-se um sistema que não olha a valores para provar perante a União Europeia que promove o sucesso. Para o conseguir recorre-se às teorias que estão na moda, reformula-se a terminologia (agora o que interessa são as competências), desvalorizam-se os saberes e os conhecimentos e utilizam-se as atitudes e os comportamentos (pretensamente adquiridos) para justificar e forçar a passagem dos alunos. Criou-se um sistema de ensino que procura o sucesso através da facilidade e do baixar do nível de exigência.

Como escreve António Barreto, "os que criticam (...) e contrariam a ortodoxia reinante são necessariamente adeptos de uma educação repressiva e salazarista". Entre eles estarão os professores de Matemática que continuam a insistir no ensino de coisas complicadas. Os que acham que os alunos devem dedicar tempo para perceber e trabalhar a Matemática. Aqueles que não entendem este Ensino Básico que debita para o Secundário alunos que, para além de insuficiências graves em termos de conteúdos, conhecimentos, capacidade ou predisposição para a memorização, não possuem os alicerces mínimos capazes de suportar a interpretação, o raciocínio, a relação, a crítica coerente, a generalização, a formulação de hipóteses, a conjectura, ou até a simples necessidade de concentração.

Não se pode indicar os divisores de um número se não se sabe dividir. Antes de se dividir aprende-se a multiplicar. E para multiplicar tem que se conhecer a tabuada, o que implica memorização. Este simples raciocínio demonstra duas coisas. Primeiro, que o conhecimento matemático é sequencial. Uma falha num dos elos pode pôr em causa toda a cadeia. Segundo, que não se pode adquirir competências sobre o vazio. A indicação do divisor pressupõe o saber da tabuada, ou seja, as capacidades advêm, naturalmente, do conhecimento de conteúdos. E é desse processo de aquisição de conhecimento que brotam as atitudes e os comportamentos desejados. O que se faz muitas vezes na tentativa do sucesso é substituir tudo isto. É bem conhecida a técnica da "fuga para a frente": o problema não se resolve, ultrapassa-se. No exemplo, a utilização da calculadora reduz todo o problema. Mais tarde, quando se pede para apresentar uma probabilidade em forma de fracção irredutível, com a calculadora (agora já gráfica) na frente, o aluno não consegue visualizar os tais divisores para simplificar a fracção. Não houve memorização, repetição ou persistência. Ficou uma ideia dos números e das operações aritméticas mas não existiu conhecimento em toda a sua amplitude. O conhecimento implica reconhecimento e a prática gera intuição matemática facto que, claramente, não ocorre quando um aluno de 12º ano não consegue completar um processo de simplificação de uma fracção.

A Matemática tem uma especificidade própria que não pode ser ignorada. Em muitos aspectos é difícil enquadrar o rigor e a metodologia da disciplina com as ideias que prevalecem para a Educação e para o país. Acresce que não são novos os problemas de relacionamento dos alunos portugueses com a Matemática. Todos concordamos que os resultados obtidos no exame são maus e que muito há a fazer para inverter esta situação. Os docentes de Matemática terão a sua parte de responsabilidade, mas o odioso da questão não pode cair para o seu lado. Tem havido muitos governos e governantes; muitas políticas e ideias para a Educação (algumas delas substituídas antes mesmo de serem avaliadas), mas a sensação continua a ser a mesma: o sistema de ensino em Portugal tarda em encontrar o rumo certo.

*In Jornal Público (www.publico.pt).

Sábado, 11 de Agosto de 2001