A Escola, as massas e a meritocracia |
Na
edição do Jornal Público de 06/01, degladiam-se duas visões diametralmente
opostas sobre a escola dos nossos dias.
De um lado, um artigo escrito por Stephen R. Stoer e António M. Magalhães da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, onde se conclui com a interrogação: Em suma, deve-se ou não sacrificar o pedagógico à "performance"? Ou será que é possível gerir a relação entre a crescente centralidade da individuação (a assumpção de que o indivíduo é reflexivo, isto é, senhor e, logo, responsável pelas suas escolhas) – em contraste com a individualização imposta, diríamos nós, sobretudo pelas exigências do mercado - e uma sociedade fortemente marcada pela exclusão e polarização sociais?
Do outro e em jeito de resposta, outro
artigo escrito por José Manuel Fernandes (director do jornal), critica o
anterior como a defesa de uma escola nivelada por baixo e onde conclui: Estes
dois "filhos de Rousseau" interrogam-se por isso se se deve ou não
"sacrificar o pedagógico à 'performance'", como se a boa pedagogia
não fosse precisamente aquela que permite os melhores resultados. Pedagogia
sem "performance" é instrumento sem objecto, é o vazio absoluto.
Mas isto, que é tão elementar, parece não entrar em certas cabeças crentes
no mito da superioridade do "bom selvagem" sobre o homem civilizado.
Eu, por mim, prefiro o homem civilizado e uma escola onde se aprenda. Apenas
isso. Será pedir muito?
In http://www.forum.dte.ua.pt/
“Ao atacarem a escola meritocrática, o que estes nossos “filhos de Rousseau” estão a fazer é a perpetuar os verdadeiros mecanismos de exclusão social.”
José Manuel Fernandes, Público, 06/01/2001
“O
texto destes dois “filhos de Rousseau” é exemplar pela clareza com que
defende uma escola onde não se aprende e onde não se premeia o mérito. Uma
escola de maus alunos – mas, na sua óptica, uma “escola para todos.” (JMF,
ibidem).
O
que JMF parece esperar é que haja um fortalecimento progressivo da ligação
entre a avaliação e selecção social com base nos desempenhos. Por outras
palavras, o JMF parece defender que a avaliação (neste caso aferida) deve
estar ao serviço de uma sociedade cada vez mais fundada na responsabilização
individual. É esta lógica que parece subjazer à pretensão de “estar
preparado para ser-se avaliado em permanência” e à defesa da “saudável
comparação de performances”. (Stephen R. Stoer e António M. Magalhães,
ibidem).
É
indubitável que, no âmbito da Educação, com ou sem os bons “filhos de
Rousseau” e apesar dos hinos palestrados por sapientes pedagogos, haverá
sempre muito a fazer. Que novidade, em país onde ninguém é culpado, porque
todos serão responsáveis!? ...
“Honra
ao mérito”! Porque não? “Só é possível pensar uma agenda positiva, no
Portugal de agora, a partir da qualidade. A qualidade não é o que substitui
a quantidade, mas é o que reconhece e valoriza o volume de recursos públicos,
humanos, materiais e organizacionais colocados na Educação, e interroga a
sua mobilização e afectação do ponto de vista da eficiência dos
procedimentos, da valia dos resultados e do impacto social. A pergunta-chave
é singela: estão a melhorar consistentemente as aprendizagens?” (Augusto
Santos Silva, Público, 14/12/2000).
Pior
seria que não! Reconheça-se, porém, que pouco se aprende na Escola. Os
afamados “filhos de Rousseau” aprendem na rua, no salão, no ginásio, no
ruído distorcido dos resumos e pagelas “manual” e “politicamente
correcto”. Por outro lado, é manifesto que o “pedregulho” do Sistema
Educativo é de difícil alinhamento. É um “peso pesado” em que
se cruzam
múltiplas e
contraditórias variáveis. O
recurso à
eventual filiação
Não
é Rousseau (1712-1778) que se questiona nem sequer os seus filhos que, face
à memória do mestre excelente, deveriam fazer silêncio, precisamente porque
“O Emílio” incendiou a modernidade que, certamente, só poucos saberão
em que consiste. “Pedagogia sem performance é instrumento sem objecto, é o
vazio absoluto.” (JMF, ibidem). Ora, a qualidade e a competência são,
hoje, sinais visíveis da melhor capacidade de cada um. É por isso que a
Escola possa e deva ser avaliada: não é por acaso que a Escola Pública está
em crise e os beneméritos “filhos de Rousseau” sabem-no bem, mesmo que em
aberta defesa de uma “escola para todos”.
Por
consensual, não se discute que a Escola deva ser um espaço de prazer, em que
o louvado “bom selvagem” se faz um “bom malandro”. Gostar da Escola
equivalerá a gostar de aprender. Não deixa, todavia, de ser, igualmente,
lugar de desprazer. Ir à Escola é uma obrigação com custos, às vezes
penosos. Pressupõe espírito de sacrifício e determinação. Alienar esta
perspectiva, como aliás se constata, representa a desvalorização dos
objectivos de instrução e de formação que inerem ao exercício didáctico-pedagógico.
Evidente:
“Escola para todos”, porque terá de ser inclusiva, cooperativa, não
exclusiva nem “bancária” (cf. Paulo Freire); promotora do sucesso, não
selectiva ou fonte de recalcamento. Se a eufemisticamente chamada avaliação
contínua faz bom sentido, não são de excluir as provas de aferição
externa nem o louvor ao mérito, à qualidade e à competência. Se repugna a
Escola meritocrática, incomoda muito mais olhar professores, no exercício da
sua missão, tornarem-se em maus selvagens, só porque solicitam aos “filhos
(e filhas) de Rousseau” matrizes de conduta e de saber integradoras na
Comunidade Educativa.
Ora,
isto implica uma cada vez mais sólida responsabilização individual, uma espécie
de “peregrinação interior”, uma metanoia (cf. A. Alçada Baptista) –
alicerçada na plataforma familiar, já que se sabe que o processo educativo não
acontece num vazio
social
e fora de um contexto cultural – o que, por si, traz à colação níveis de
análise mais complexos que, por certo, alguns dotados saberão deslindar.
Duvida-se até que a Escola meritocrática, ainda que “mitigada”, seja tão
desajustada como sugerem Stephen H. Stoer e António M. Magalhães, precisamente
porque a avaliação da performance é, em contexto de competitividade selvagem,
inevitável em todos os segmentos da vida. Dá para lembrar Kant: “o homem
precisa de um dono”.
Sem
ironia, quem está adoentada é a Ciência da Educação dos pedagogos.
PS: Em esclarecedor texto “as provas de aferição ao serviço da
organização das práticas pedagógicas” (cf. Público, 23/12/2000), Ana
Benavente considerou que a aferição externa das aprendizagens se constitui
como instrumento válido para a “construção de uma cultura de avaliação
orientada para a prestação regular de contas a todos os intervenientes no
processo educativo e para o apoio sistemático às escolas, na definição das
orientações pedagógicas mais adequadas à formação de um ensino de
qualidade”.
Como noutros sectores da vida, importa distinguir o vivido do pensado.
Interessa, no entanto, saber, nomeadamente aos pais e encarregados de educação,
aos professores, a todos, o que se ensina e o que se aprende – se se aprende
– na Escola, para além, obviamente, da avaliação das competências dos
alunos do 4º ano de escolaridade e para além do trato saudável da língua
materna e do cálculo matemático.
É manifesto que se pretende uma Escola para todos, tal como a sociedade
o deverá ser. Ora, desde Abel e Caim, tudo se baralhou e o estado de natureza
teve de dar lugar ao estado de direito, além de que Darwin se aproxima de
Nietzche.
Somos, afinal, todos “filhos de Rousseau”, com a condição de que o
que de melhor há na Escola são os alunos que a fazem. O efeito dominó não é
argumento seguro para justificar a procura de uma Escola melhor.