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O Simbólico em "Apêndice ao
Apocalipse", de Arturo Gouveia

Ensaio de: Anaína Clara de Melo

O contista paraibano Arturo Gouveia vem demonstrando, ao longo de sua trajetória literária, uma habilidade singular no trato com a questão do simbólico em textos literários. Assim, resolvemos estudar, neste ensaio, a forma como o teor simbólico está apresentado em seu conto "Apêndice ao Apocalipse", parte integrante do livro A Farsa dos Milênios1. Esse conto condensa as principais características desse escritor - violência, sutileza, ironia, contrastes... -, todas geradas a partir de uma linguagem assaz metafórica.

O próprio título "Apêndice ao Apocalipse" já nos é bastante sugestivo. Como é sabido, o vocábulo apêndice significa anexo, acréscimo. Daí nós podermos imaginar ser esta uma história que pretende ser um anexo ao Apocalipse, livro que trata da revelação de catástrofes do final dos tempos, composto por vinte e dois capítulos e apresentado pelo profeta João. Esta interpretação é comprovada pelo seguinte fragmento do conto:

"Não que eu queira corrigir o visionário; apenas vou mostrar que ele está incompleto."(p. 183)

João de Patmos, professor de literatura, é quem pretende completar o Apocalipse através da narração de sua história em um diário. João conta que a sua família fora destruída devido a um acidente ocorrido com o seu filho, João de Patmos filho, e com a sua nora, Joana Carolina.

Uma criança de rua, João dos Santos Pequeno, fuzila Joana após João filho ter se recusado a passar-lhe o carro. O filho de João de Patmos passa a viver em estado vegetativo, pois uma bala havia se alojado em sua nuca.

O professor de literatura inicia, então, uma busca, incessante, pelo destruidor de famílias, até porque Joana, além de sua nora, era sua amante e estava grávida de gêmeos. Encontrando o assassino, João de Patmos rapta os seus bebês gêmeos e os estoura nas mesmas estacas de ferro que foram entortadas pelo carro de seu filho na noite do crime. E os estoura na frente do pai, João dos Santos Pequeno, que se encontra amarrado para assistir à cena. Ao final, é o próprio João de Patmos que se entrega à polícia.

Observem que os nomes dos personagens não são escolhidos de forma aleatória. Por exemplo, o nome das pessoas que participam da trama principal é João: João de Patmos, João de Patmos Filho e João dos Santos Pequeno. Inclusive o nome Joana é o feminino de João. A ênfase a este nome deve-se ao fato de também ser João o nome do visionário que apresenta o Apocalipse.

Assim como o nome dos personagens, os topônimos também são acentuadamente simbólicos. O local onde Joana Carolina perde os seus dois filhos gêmeos, e também onde João dos Santos Pequeno tem as suas filhas gêmeas estouradas nas estacas, chama-se Rua Castor Polo. Castor e Pólux são os filhos gêmeos de Zeus com Leda. Notem o caráter de duplicidade nessa parte, aspecto este que pode muito bem ser associado ao número de capítulos do Apocalipse, que são vinte e dois.

A propósito, a numeração que aparece na ação também é bastante simbólica. "Apêndice ao Apocalipse" se inicia e termina com o número vinte e três, além de ter vinte e três partes. Atentem, aqui, para o fato de que o Apocalipse possui vinte e duas partes e, pretendendo este conto de Arturo ser um complemento do Livro das Revelações, como já mencionamos, nada mais plausível do que esta relação com o número vinte e três.

Além disso, João de Patmos Filho está com vinte e dois anos, o número da casa onde João dos Santos Pequeno habita é vinte e dois, Carolina teve seus dois filhos mortos, assim como João dos Santos, e dois e dois formam em seqüência, vinte e dois. Os números continuam assumindo um significado simbólico, e se relacionando ao Apocalipse.

Há, ainda, algumas tríades que podem ser elaboradas ao longo da história: a tríade dos Joões, o triângulo amoroso entre João de Patmos, o seu filho e Joana, Joana e seus dois filhos... Estas trilogias podem ser uma sutil analogia ao número final do vinte e três.

Até mesmo a própria estruturação do conto é metafórica. O seu enredo começa tratando de esperança: João de Patmos vai iniciar uma luta para pegar o menor que destruiu a sua família. Ao final da ação, temos a catástrofe: a morte dos bebês nas estacas. Observem a presença de uma estrutura narrativa que é o oposto da do Apocalipse. Este, inicia-se com catástrofes e encerra-se com uma esperança: a salvação.

Aliás, o contraste é algo sempre presente nas obras de Arturo Gouveia. Por exemplo, em:

"Era comum, antes de ir pra cama, rezarmos. E depois profanarmos tudo, transformando a repressão religiosa em liberação de todos os desejos." (p. 175)

Verificamos uma mistura entre o bem e o mal, mistura esta que cria um bem não inteiramente bom, e um mal não totalmente ruim. Isto é interpretado por nós como uma tentativa de quebrar com o maniqueísmo imposto pela Igreja. Esta busca pelo relativo enriquece, e muito, os textos arturianos, a partir do momento em que se origina uma violência romântica, doce, por mais paradoxal que isto possa ser. No fragmento:

"Apanhei a chupeta, coloquei na boquinha dela e estourei-a na estaca." (p. 186)

Encontramos o que há de mais violento, que é o esfacelamento de bebês. Mas, ao mesmo tempo, encontramos sinais de carinho e delicadeza, expressos pela preocupação do assassino em devolver a chupeta ao bebê e pelo emprego do diminutivo na palavra boca. Esta violência aveludada é um procedimento bastante utilizado pelo nosso escritor em vários de seus textos, recurso este ignorado pelos leitores mais desatentos.

A mesma relativização a qual nos referimos anteriormente também vai ser a causa das surpresas que o texto guarda para o leitor. Por exemplo, a maior revelação que o narrador faz ao leitor é quando descobrimos que João de Patmos fora o autor intelectual do crime contra a sua própria família. Ora, João de Patmos vem sendo apresentado como um coitado que cuida, agora, de um filho em estado vegetativo, e, de repente, passa a ser um dos assassinos da história. Trata-se de um jogo, uma brincadeira, uma ironia com o próprio leitor.

Estruturalmente, a alternância entre partes brandas e trechos drásticos, encontrados ao longo do enredo, também pode representar este jogo com o leitor. Mexer com os sentimentos é, aliás, justamente o que o protagonista de "Apêndice ao Apocalipse" busca. João de Patmos diz para João dos Santos Pequeno que não vai tocá-lo em momento algum. A tortura que Patmos causa em João dos Santos é psicológica.

A ironia assume uma relevância bastante significativa nos textos arturianos, principalmente quando ela se transforma em cinismo. Por exemplo, no momento em que João de Patmos, ao tentar comprar uma arma para matar João dos Santos Pequeno, afirma que quer matar um inocente, o vendedor se assusta e pergunta:

"Mas um inocente? Aí sim é poético, por não ter explicação precisa. Foge da razão mental e física, da lei da causalidade, e é algo estético que vale por si, como arma e dinheiro." ( p. 177)

O cinismo é tão radical que o personagem chega a utilizar argumentos um tanto convincentes para algo que nos parece loucura.

Em meio a tudo isso, verificamos que as categorias temáticas e estruturais do texto de Arturo Gouveia pautam-se numa linguagem simbólica, notadamente poética, o que confere a suas obras a grandeza artística necessária para o enquadrarmos como um autor paraibano que veio para ficar.

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