CORTE DE CABELO

Acordei e me olhei no espelho. Barba por fazer, cabelo comprido, unhas dos pés protuberantes. Tirei a cueca e, enquanto o chuveiro não esquentava, barbeei-me rapidamente. Molhei primeiro a cabeça, que era como minha mãe tinha me ensinado. Depois, o corpo veio junto.

Fiquei me ensaboando e sentindo minha pele com as mãos por um bom tempo. Tinha-o de sobra. Trabalhava só à tarde e, naquela manhã, tudo que tinha para fazer era cortar o cabelo naquela senhora da esquina. Continuei debaixo do chuveiro, aliviando o calor sufocante da noite passada. Alisava meu rosto e sentia a aspereza da gilete. Aquilo era bom e excitante. Olhei para o dedão do pé esquerdo: estava murcho e meio amarelado. Atribui aquilo à falta de luminosidade, e jurei a mim mesmo que caminharia descalço na grama, aos finais de tarde. A água havia esquentado consideravelmente, de forma que meu corpo tinha se tornado leve e cansado. Permiti que o fluído revigorante escorresse pelo meu pescoço por mais alguns segundos, e então me sequei.

Cortar as unhas naquela posição destruía minhas costas. Enquanto eu fazia aquele sacrifício necessário à minha higiene, sentia as últimas gotas de água debruçarem-se sobre meu joelho. Com a atenção voltada para o fenômeno da evaporação, descuidei-me e cortei a unha curta demais. Seria doloroso usar a meia de lã delicada e de alta aderência, a minha favorita. Continuei cortando os outros dedos (suas unhas), e um pequeno filete de sangue soltou um pingo suave e vermelho sobre o azulejo claro, com adereços cujo significado me eram desconhecidos. Com um pedaço de papel higiênico, limpei-o.

Vesti-me. Calça jeans, tênis e camiseta. Gosto desse tipo de roupa porque nunca se é notado. Liguei o rádio na Gaúcha e, ouvindo o noticiário, tomei meu leite com sucrilhos. Comi uma banana prata. Um copo d’água para o hálito. Escovei os dentes e usei o fio-dental. Penteei o cabelo sem muita preocupação. Eram nove e quarenta e cinco da manhã. Verifiquei se as janelas estavam fechadas. Desliguei o som e baixei a orelhinha do gás.

O porteiro me cumprimentou. Eu também. Nada na caixa de correspondência. Vi umas mulheres conversarem no sofá do saguão, uma contando para a outra como era difícil morar sozinha com sessenta e tantos anos. Tomavam chimarrão. O porteiro, homem de quarenta e poucos, tinha ao cinto um lugar para guardar seu canivete suíço. Escutei o barulho dos carros saindo da garagem lateral, com seus motores potentes e ignorantes, seus motoristas sempre com um cigarro amassado ao canto da boca triste. A porta era automática e, ao ser acionada, emitia um gemido que me lembrava do verão.

A rua me deu bom dia com uma rajada de vento úmido. Do outro lado , havia alguns mendigos compartilhando sua cachaça e seu fumo fedorento. A velha barraquinha de cachorro-quente, os ipês amarelos, o bar dos desempregados, os prédios em eterna construção. Em um segundo plano, pude ver os carros atravessando a Grande Avenida. 

Atravessei-a e fui à banca comprar o jornal. Uma mulher chorosa ao orelhão clamava pela pensão alimentícia, e eu então pensei na dificuldade de se encontrar pessoas simples, amáveis e legais. Arranquei alguns suplementos do periódico e joguei-os fora. Uma velha sentada na calçada ficou me olhando, e me pediu cinqüenta reais. Eu disse que só tinha cinco pilas pra cortar o cabelo. Tudo bem, ela disse, pode ser.

Entrei no salão de beleza e senti o frio artificial. Uma loira fazia as unhas de uma ruivinha. Sentei e não disse nada. Fui chamado. Sentei-me, e a senhora fez o que tinha de ser feito, manejando a tesoura de forma hesitante e desconfiada. Em certos momentos, fiquei com medo de perder uma orelha. Mas o corte até que ficou bom. Curto. Bem curtinho. Não quis lavá-lo. Paguei à mulher e saí.

Parado na calçada, esperando os carros se despedaçarem atrás de distâncias asfaltadas, eu olhei para o céu. Dez e meia da manhã, e algumas nuvens sardentas preenchiam aquele cenário. Havia um ventinho frio, gostoso, cobrindo minhas costas. Coloquei as mãos nos bolsos, sorri e continuei caminhando. Na sinaleira, um ônibus lotado.   

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João Carlos Dalmagro Júnior.