DA MINHA JANELA
"São
os primeiros cantos de um pobre poeta. Desculpai-os. As primeiras vozes do sabiá
não têm a doçura dos seus cânticos de amor.
... São as páginas despedaçadas de um livro não lido..."
Álvares
de Azevedo. Prefácio de “Lira dos Vinte Anos”.
Tá
bom. Eu sei que a porra desse cigarro vai acabar com a minha vida. Sei que
cheiro mal e que meus dedos já estão bem amarelados. Alguns dentes estão
podres também. Tenho ciência do mal que a cerveja me causa. Mas e daí, se
gosto disso? E vou dizer mais, gosto dessa janela com as extremidades
carcomidas, gosto de ficar olhando as pessoas entrarem e saírem da tabacaria
com jornais, cigarros e revistas pornô. Sabe como é, passei toda a minha vida
vendo as situações daqui de cima. Permanecendo longe de tudo. Ficava lendo
Conan Doyle e imaginando que o meu marlboro do Paraguai fosse um primoroso
cachimbo inglês. Fechava um e imaginava ser o Bob Dylan. Era engraçado. Só
descia as escadas pra colocar o lixo na rua, sempre esperando pra ver se não
tinha ninguém pra me torrar o saco. Não sei se o que sinto pelas pessoas é
asco ou simples preconceito. Mas procuro sempre manter uma certa distância. Você
pode me chamar de tudo, menos de hipócrita. Eu curto é muita sacanagem.
Adorava esperar a Sandrinha passar pela calçada da frente do meu prédio com
uma roupa bem apertada e tocar uma pra ela. As pessoas só viam minha cabeça, e
eu tava lá, peladão. Ela até chegou a me cumprimentar, uma vez. Gozei na
hora.
E
tem também o sol. Adoro ver ele nascer e morrer, sangrar na minha cara como uma
virgem em um lençol. A sua luz vermelha invade todo o meu pequeno quarto, eu me
sinto feliz. Faço isso escutando Cat Stevens. Às vezes tomo vinho; outras
vezes, água mineral sem gás. Acho que é a parte mais fecunda da minha vida. A
hora mais feliz do meu dia. É horrível ficar olhando as paredes o tempo
inteiro, ir ao banheiro espremer espinhas e voltar para a cama. Ultimamente não
tenho mais paciência para ver TV. E eu gostava tanto... Só tenho vontade de
ler revistas sobre bonsai. Até que já sei bastante coisa. Todos os tipos de
arvorezinhas, todas as técnicas para apará-las. Tem horas em o que eu quero
mesmo é ser um bonsai, quero que você venha de mansinho e apare as minhas
pontas. Sabe como é, me sinto sozinho. E não acredito naquela frieza do
estrangeiro do Camus, não. O desgraçado era um baita escritor! Se era! Sabia
fazer seus personagens fingirem muito bem, sabia enganar a gente. Às vezes
gosto de folheá-lo à tardinha, sentindo os raios de sol no meu rosto. É
impressionante como o meu sol nasce e vai embora veloz, rígido e inflexível.
Chego a me desesperar, porque quando isso acontece percebo que não tenho mais
nada. Meus livros? Já li todos. Eram três ou quatro. Dei todos os meus discos,
ou troquei por baseados. E é por isso que fico aqui em cima, vendo o movimento
na calçada. Puro desespero. Tristeza de ver as poças d’água nos paralelepípedos,
ver as coisas de um ponto lúgubre da cidade. Tristeza de ver o mundo da minha
janela.
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João Carlos Dalmagro Júnior.