SERENATA

    um discurso noturno e outras incursões etílicas — 

“O que que você pode fazer quando os outros te vêem como um covarde mas você sabe que você é um homem?”  

Jerry Stahl. Perversão — uma história de amor 

Me apoiei na cerca que separava minha raiva do prédio. Porra, naquela noite o calor era infernal. E eu ali, bêbado, cambaleando. Os dedos trêmulos agarravam as grades sonolentas. Meu estômago era um chapéu mexicano, aqueles brinquedos de parques de diversão que ainda existem em cidadezinhas do interior. Um líquido verde alcançou meus sapatos. Fiquei feliz. Pela primeira vez, tinha vomitado minha bílis. Escorreguei e esfolei minha canela no concreto criminoso da calçada. Não conseguia me manter em pé. Escutava os risos flutuantes dos que passavam. “Olha só o estado do cara!” Imbecis. Não sabiam o que estava acontecendo. Não sabiam droga nenhuma da minha vida. Ah, puta merda. Vomitei de novo, agora sobre meus joelhos. Miseráveis joelhos ralados. Limpei um pouco as calças com uma folha de jornal que estava no chão. Havia um mendigo dormindo sob a parada de ônibus. Fedia à cachaça. “Que desgraçado”, pensei. Cobri o homem com o papel gosmento. Ele nem deu bola. 

Resolvi cambalear até a esquina. Talvez houvesse um táxi por ali. Cinco minutos depois eu estava de volta às grades. Não iria para casa até esclarecer bem o assunto, mas não sabia como abordá-la. Não sabia como chegar até seu apartamento. Havia porteiros e cães. Morro de medo desses animais. O que os distingue dos homens é a sua honestidade. Quando querem estraçalhar o teu braço, rosnam e babam feito loucos. Assim, descartei a idéia de pular o muro. Sentei no chão frio e aproveitei para vomitar mais uma vez. Fiquei bem melhor. De alguma janela, uma música fugia calma. Um delicado solo de trompete. O vento rígido trazia consigo jazz, saxofones, pianos. Olhei para as estrelas, todas elas broxas. Não piscavam como de costume. 

Levantei. Acho que o vento gelado me curou um pouco. Ergui a cabeça e respirei fundo. O ar queimava meus pulmões. Acompanhei as folhas das árvores. Em meio a elas, em seu apartamento, um garoto gordo e suado masturbava-se em frente à tela do computador. Seu rosto crispou-se e ele olhou para suas mãos. Acendeu um cigarro e as luzes se apagaram. Ficou brincando com a ponta ardente no escuro. Tinha de comemorar mesmo, o gordo. Comeu uma loira espetacular, vinte e quatro anos, tinha até feito com que ela gozasse. Estava orgulhoso. O próximo encontro, quarta à noite. Dez, dez e meia. Com internet a cabo, tudo ficava mais fácil.  

Voltei para a terra. Enfiei o nariz entre as grades e senti o cheiro de pó de brita. Lembrei a minha infância. Eu brincava de Comandos em Ação em montes de brita que machucavam as minhas nádegas. Mas, enfim, permaneci naquela posição, sentindo o ferro frio atenuar o suor de minha face. Suava muito. Acho até que eu suava cerveja, de tanto que bebi. Mas era tudo culpa dela, a vagabunda da Marcinha. Se alguém me visse ia notar o quanto eu era ridículo. Balançava meu corpo e falava baixinho: “ Querida, os restos da janta estão no forno?”  

Comecei a chamar a atenção do porteiro, que me viu de trás de sua mesa pacata. Fez uma cara de perplexidade. Mandei-o tomar bem naquele lugar, e tenho certeza que ele entendeu o movimento dos meus lábios. Dissimulou cruzando as pernas por baixo do móvel antigo e sintonizando o rádio. Nem mesmo os cães sentiram meu cheiro decadente.  

— Hei, seu filhodumaputa! — minha voz finalmente era a de um homem — vem cá pra que eu possa esmurrar essa tua cara feia!  

Nem se mexeu. Nada. Nenhuma demonstração de se sentir contrariado. Virei-me, ficando de costas para o edifício. Havia algumas pessoas caminhando por ali. Cheiro de tempo perdido pelo ar. Apertei o interfone. 

— Que quê tu quer, ô vagabundo? — adorei a maneira como ele me atendeu.

— Falar com a Marcinha. A do quatrocentos e quinze. Sou o...namorado dela.

— Vai embora logo.  

Notei que o desgraçado não ia me deixar falar com ela. Resolvi ligar. Não tinha cartão. Ia ser a cobrar mesmo.  

— Alô. Marcinha? Aqui é o Pedro. Olha pela janela, na direção da portaria do teu prédio. — Ela não disse nada. — Consegue me ver? — acenei como um maluco, e sua cabeça apareceu no sereno noturno.  

   Senti ânsia de vomito, mas me controlei. Pelo menos ela me viu.  

   — Olha, me deixa subir, vamos trepar e depois tomar banho, e você sabe, nós também podemos... 

Ficou mudo. O telefone. o vento débil. O porteiro (sempre). O jazz. Tentei ligar mais vezes, mas ela deixou fora do gancho.  

— Desgraçada — berrei, chutando forte a grade.  

Finalmente o porteiro se levantou, e os cães rosnaram. Olhei para a janela do seu apartamento e vi seu enorme e obsceno dedo dirigindo-se a mim de forma hostil. Lamentei por ela com a cabeça. Antes de correr, ou esboçar uma corrida, chutei a lata de lixo do condomínio. Não adiantou nada, só fiz barulho. A vida inteira. Na esquina, os latidos eram distantes. Respirei com calma e me recompus. Caminhei de volta para casa. Percorri algumas quadras, mais esquinas surgiram à minha frente.  

Fechei a porta e girei a chave até a metade. Liguei o rádio. Fiquei olhando para o chão. E então? Tirar os sapatos, desabotoar a camisa, arrancar a calça, as meias, relógio, óculos. Ver um filme pornô? 

Fui direto para a cama. De sapato e tudo. Havia muito asfalto e estradas e noites abafadas lá fora.

   

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João Carlos Dalmagro Júnior.