Histórias  e  Contos

          

            Existem várias maneiras de apresentar a história, os hábitos, os costumes, as tradições, a economia, os transportes e a cultura geral de um povo, numa determinada época. As histórias contadas sobre determinados fatos que são passadas de boca em boca, de geração a geração, traduzem uma maneira simples de apresentar e compreender a história de um povo. Por isso, em nosso trabalho reservamos um capítulo para publicarmos o resgate, antes que desapareça no tempo, um conjunto de histórias desde a chegada de nossos imigrantes até nossa infância nas décadas de 1950 e 1960. Para ilustrar a seguir apresentaremos algumas das muitas histórias que resgatamos.                  

O feitiço que saiu pela culatra

          Tio-avô Giácomo Busatta, que casou com tia-avó Luiggia Durlo, em 1904 morando em Jaguari, quando era jovem deveria ser um “galã”, conquistador de corações das moças de sua  redondeza. Depois de idoso não perdeu seu capricho e seu charme, pois sempre gostava de andar muito limpo e arrumado. Suas botas que sempre usou, estavam sempre brilhando.

Na foto Giácomo Busatta, não mais tão jovem, não deixa de exibir seu charme e suas brilhosas botas.

Quando jovem ainda solteiro, numa certa ocasião precisava fazer uma viagem a cavalo e tinha uma moça que gostava muito dele. Ela disse a ele que antes de viajar passasse pela casa dela. Ele foi e ela lhe deu um pacote, dizendo que o conteúdo era para ele usar durante a viagem. Com grande expectativa, logo no início da viagem, ele abriu o misterioso pacote e viu que eram 10 cigarros de palha (popularmente conhecido por palheiro), feitos do jeito que ele gostava de fumar. Ficou muito contente e  pegou um para fumar. Mas, antes ele abriu o cigarro, para espalhar melhor o fumo que continha dentro. Ficou surpreso, quando notou que continha fios de cabelos entre o fumo. Jogou fora o cigarro. Depois abriu o segundo, também havia fios de cabelos. Foi abrindo um por um e todos continham fios de cabelos. Ficou triste, porque teve que jogar tudo fora.

Um dia contou o que lhe acontecera a uma pessoa que entendia de feitiços e ela lhe falou que a moça tinha colocado os fios de cabelos dela nos cigarros, para que ele fumando iria se apaixonar por ela e se casariam.

Nonito, como era carinhosamente chamado, costumava contar essa história para seus netos e afirmava que depois dessa nunca mais quis ver a referida moça.

 Agora só para concluir, fica um grande mistério no ar: quem era a tal moça? Até dá para suspeitar que era a tal “Dama do Cemitério”, quando solteira, personagem de muitas histórias na região.

A história nos foi contada pela neta da tia-avó Luiggia Durlo e Giacomo Busatta, Ildair Mara Busatta (Lili), que reside em Erechim.

 

Casamento a moda antiga

 

          A família do tio Benjamin Della Flora morava na Fontana Freda, há uma boa distância da família Durlo. Seu casamento com a tia Genoveva Durlo se realizaria na sede Jaguari, há uns 7 km somados a mais uns 4 ou 5 que separavam as famílias.

Foto do casamento de um tio da colega Marlene Stüker, de núcleo de imigração interior de São Pedro do Sul que casou em 1937.

            Tudo começou de madrugada, na comunidade Fontana Freda, quando os convidados do noivo celavam seu bom cavalo.

Aos poucos os cavalarianos iam se encontrando na casa da família do noivo. À medida que percorriam o caminho até a casa da noiva, novos cavalarianos se juntavam ao cortejo do noivo.

            Ao chegar na casa da noiva, da família Durlo, outros cavalarianos aguardavam para um saboroso e reforçado café da manhã, que incluía os pratos típicos dos imigrantes italianos: pão, queijo, salame, ossocolo, vinho para aqueles que não apreciavam o café, o leite ou o chá. Incluía ainda, doces e a tradicional “sopa”, preparada especialmente para reforçar a dieta dos noivos, então denominada de “brodo dos noivos”.

            A saída foi emocionante, conta-nos tio Benjamin, os noivos puxando a dianteira de um grupo de 30 a 40 cavalarianos que de quando em vez, para animar a turma alguém soltava um foguete ou uns tiros de revólver. Para trás, ficava a mãe da noiva, a nona Rosa, triste e desolada com saudade da filha que se desgarrava da família, se consolando com seu filho menor ainda criança, o tio Nêne (Guilherme).

            Em Jaguari (antigo Barracão dos Imigrantes), os zelosos veículos cavalares foram estacionados nos fundos da Igreja Matriz, onde havia um grande pátio para a guarda dos cavalos.

            Após o casamento com muitos fogos, a caravana se dirigiu para Fontana Freda, na residência da família Della Flora, do pai do noivo, onde um gostoso almoço aguardava os cavalarianos e muitos outros convidados que os aguardavam no local. Segundo depoimento do noivo, hoje com mais de 93 anos de idade, o tio Benjamin, a chegada em casa foi inesquecível: “foi um foguetório, se confundiam, os tiros de foguetes, os de revólveres e os de espingardas, até as famosos taquaris esquentaram seus canos. A festa se prolongou pelo resto do dia fechando à noite com um baile”.

            Questionado sobre a lua-de-mel, afirmou-nos que não se sabia na época o que era a tal de lua-de-mel. O jovem casal ficou morando durante um ano com a família do pai, o Vitório Della Flora, um vovô muito legal, de boas lembranças, de quando éramos crianças, o qual gostava de jogar três sete saboreando uma meia de caninha paga pela dupla de perdedores. Era a pessoa que mais entendia e comandava o feitio do famoso risoto italiano da Fontna Freda,  nos enormes panelões pretos das tradicionais festas da Capela Santo Antônio e da Gruta N. Sra. de Lurdes da Fontana Freda. Mais tarde o jovem casal  foi morar na casa de nossos pais João e Thereza, enquanto esses foram morar com nosso avô materno Gaetano Pillan, que havia enviuvado.

 

Conversa de pé orelha

Foto do casamento dos tios Ernesto e Florinda. Assunta Durlo encontra-se entre as 4 cianças sentadas a direita.

            Contou-nos a prima Assunta Bolzan Durlo, que reside em Ernesto Alves, embora criança ainda lembra do casamento do tio Ernesto Durlo com a tia Florinda Damian, ocorrido em 1937. Ela não esqueceu da chegada dos noivos e da comitiva que os acompanhavam. Ao voltarem da Igreja depois de receberem o sagrado Sacramento do Matrimônio, todos a cavalo, quando chegaram a casa da família do noivo, ou seja, na casa dos nonos Giuseppe Durlo e Rosa Bolzan, a noiva foi recebida pela sogra (nona Rosa), que colocou uma cadeira para ela descer do cavalo, pegou-a pelo braço, a levou para um quarto e fechou a porta.

Todos os convidados e familiares esperavam do lado de fora e elas fechadas no quarto, permaneceram conversando por um bom tempo, mas ninguém sabia de que se tratava.

O povo dizia que era o hábito na época, a sogra dar sábios conselhos para a nora sobre a vida de casado. Somente após essa conversa a noiva se juntava ao noivo para receber as felicitações e festejar com os convidados.

           Medo do cajado

  Era comum quando eventualmente o crisma ocorria na comunidade de Fontana Freda, na época era feita para crianças pequenas, antes da 1ª comunhão. O Crisma era feito para crianças, porque raramente o Bispo da Diocese de Santa Maria, podia atender tantas comunidades. Os irmãos mais velhos costumavam contar coisas negativas, o que o Bispo fazia durante o ritual religioso nas crianças que estavam sendo crismadas. Na nossa época diziam que o Bispo dava três tapas no rosto do crismando. Lembro que a gente tremia perante a autoridade eclesiástica. Diziam que devíamos beijar o anel do “Vesco”, no dialeto vêneto, como era de costume, outros diziam que a curva do cajado do Bispo servia para pegar os crismandos pelo pescoço, puxar para que ele desse os três tapinhas.

 O mais curioso, foi no dia em que nosso irmão Domingos foi crismado, quando o menino se aproximava do Bispo, olhou para o cajado, tremeu as pernas, observou a lateral da Igreja, viu a porta aberta e cravou o pé em direção a casa antes que o Bispo o pegasse.

Seu padrinho, o tio Guilherme saiu correndo atrás do menino. Com muito esforço conseguiu alcançar e trazer o fujão de volta.

Entre outras, o saudável menino também devia ter peso na consciência ao ver a autoridade eclesiástica, pois quando ia a Escola na Fontana Freda, quase diariamente nossa mãe mandava pelo guloso menino, um litro de leite para a família da tia Luisa Durlo casada com Eugênio Sperandei, que moravam no caminho da Escola. Ele porém, costumava esconder o tal litro de leite no meio dos capins, próximos a bananais da tia e na volta saboreava com os amigos bananas madurinhas com o leite destinado às crianças da tia.  

 

            A disputa pela gateada

          No fim dos anos 40, era tradicional a ida à missa na cidade de Jaguari aos domingos pela manhã. Bem cedo se reuniam, especialmente os jovens com seus cavalos, para mais do que um ato religioso dominical. Geralmente na região se reunia em torno de uns 30 a 40 cavalarianos.  

Foto da Lelia Durlo a cavalo, na casa do tio Guilherme Durlo, com tia Solene, 5 décadas após.

            Nossa família só tinha a égua gateada, mas que era muito disputada pelos primeiros filhos, o José e a Lélia. Até então, tudo na santa paz, pois os dois se revezavam a cada domingo.

Segundo versão dos mais antigos, os dois jovens protagonistas passaram a ter suas paqueras e os dois queriam ir todos os Domingos para a “missa”, pois não se contentavam quinzenalmente. Certo Domingo era a vez do José e o coração da Lélia devia ter batido mais forte que resolveu aprontar uma. Ela madrugou, sem que o José percebesse, se arrumou, celou a gateada às escondidas. Logo estava montada e quando o José percebeu, saiu correndo, a tempo tomou as rédeas e retirou o freio deixando o animal à solta, sem qualquer controle da ansiosa e egoísta amazona.

Dizem que foi uma choradeira, nossos pais acordaram com aquela confusão e tiveram que intervir, decidindo que nenhum dos dois iria e assim encerrou-se um Domingo fracassado para ambos.  

 

O 1° embarque no vapor

 

 

               Em fevereiro de 1959, foi a minha primeira viagem para fora de Jaguari com destino a longíqua Santa Maria, a 126 km. Foi uma aventura para esse guri de 8 ou 9 anos, que não esqueci os detalhes até hoje. Fui acompanhar o casal de noivos, nossa irmã Rosa e Dalírio Sporquio, os quais foram levar nossa irmã Inês, para ficar algum tempo com nosso irmão José e a Elda, que lá residiam, pois estava para nascer seu primogênito, o João Alberto, primeiro neto da nossa família.

Foto da Estação Ferroviária de Jaguari (F.Cleto 25/7/06)
Foto do personagem da história, Cleto Durlo, 4 anos após o fato.. 

A aventura começou ainda no escuro da manhã de verão, portanto ainda muito cedo, pegando os 2 cavalos e selando-os. Partimos os três (eu, a Inês e a Rosa) e mais o pai que retornaria com os cavalos. Uns a pé, outros a cavalo com as bagagens, ora se revezando. Passamos no caminho pela casa do Dalírio, que já nos esperava e rumamos em direção ao antigo Barracão (cidade de Jaguari).

Os cavalos, como era de costume, ficaram na Associação Rural, na entrada da cidade, em local específico para o estacionamento dos veículos (cavalos, bois, carretas, charretes...), para os associados poderem fazer suas compras e depois retornar tranqüilamente para casa. Assim, nosso pai fez suas compras e depois retornou para casa com os dois veículos cavalares. Nós quatro o casal de noivos, a Inês e eu, fomos até o armazém de nosso primo Hermes Tadiello, onde deixamos nossas bagagens, pois se localizava próximo da Estação Ferroviária. Fomos até a Estação para comprar as passagens, duas inteiras e duas meias, de 2ª categoria (bancos de madeira). Retornamos ao Hermes, para o almoço que se constituiu em algumas coisas (salame, queijo, ossocolo...), levados de casa para economizar e adquirimos no armazém uma lata de sardinha em conserva, pão sovado e refrigerante.

Em torno de 13:00 horas, quando já encontrávamos na Estação começamos ouvir ao longe, a tradicional buzina e seu ronco barulhento. A expectativa era grande, gerando uma curiosidade misturada com angústia, pois nunca havia viajado: nem visto de perto aquele negro monstro, expelindo espessa fumaça preta.

Até aquele momento ouvíamos e enxergávamos a espessa fumaça no ar. Repentinamente na primeira curva surgiu aquele monstro preto, soltando uma fumaceira danada, parecendo uma grande cobra fumegante. Era o tal trem a vapor, que parou na estação.

Bate sino, toca buzina, bate sino, toca buzina, toca um apito estridente e bate o sino outra vez. Vagarosamente o monstro que havia nos engolido ao embarcarmos, se move em direção a Santa Maria, local ainda desconhecido para nós. Anda trechos e pára, a enorme cobra preta devora mais gente, anda e pára na caixa d’água para matar a sede daquele monstro preto e enfumaçado. Anda e pára com freqüência nas diversas estações ao longo do caminho, Taquarinchim, Caixa D’água, Vila Mata, Vila Clara, Toropi, Guassopi, sei lá não me lembro direito de todas as estações que paramos, São Pedro do Sul e outras. Na Estação Davi Canabarro, o monstro vai para frente, dá umas batidas muito fortes, vai para trás, quando já era noite e não entendia o que se passava. De súbito nos assustamos, estávamos voltando? Será que é aqui o fim da viagem? Era a troca de trilhos no entroncamento ferroviário que conduz aos municípios de Cacequi, Rosário do Sul e a fronteira oeste como São Gabriel, ... Uruguaiana...

Depois de passar pela Boca do Monte, ao longe se visualizava aquele aglomerado de vaga-lumes, era a cidade de Santa Maria.

Finalmente em torno de 23:00 horas, chegamos a Estação Central da Cidade, centro-ferroviário do Rio Grande do Sul, tão famosa na época, por esse transporte e pelo seu progresso. Antes de sermos despejados para fora do monstro, se ouvia uma gritaria de homens e rapazes. Parecia um bando de malucos. Uns queriam carregar as bagagens para ganhar uns trocados, outros queriam levar as bagagens dos passageiros para seus veículos de aluguel (automóveis, carroças, cavalos = táxi). Todos queriam ganhar seu pão de cada dia.

O José e a Elda moravam na Vila Caramelo, na outra extremidade da cidade, da Estação onde nos encontrávamos. Já existia ônibus urbano, mas não se sabia onde pegar e  provavelmente não existia mais naquele horário. O jovem noivo Dalírio, resolveu fazer charme para a noiva, escolheu um lindo Ford rabo de peixe, que nos conduziu até o Patronato. E para economizar descemos antes do destino final, tendo que caminhar um trecho a pé e carregando nossa bagagem, uns 20 minutos até a casa do José, naquela escuridão e já próximo da meia noite.

Nos dias que passamos em Santa Maria, tivemos oportunidade de ir ao cinema no Patronato, onde rodava um filme sobre terremoto e  fizemos outros passeios. Porém, nosso tio Ernesto Durlo, que morava próximo me adotou: me levava passear pelo centro de Santa Maria, me dava balas, picolé e até sorvete. Eu gostava muito de tomar o ônibus urbano, o Expresso Medianeira, afinal era bem mais confortável do que o trem a vapor.

Da janela da casa do tio Ernesto, à noite eu gostava de ver as propagandas noturnas bem iluminadas, bem visíveis no alto dos edifícios. Chamava-me atenção em especial a do refrigerante Cirilinha, que era o mais saboroso quando criança, tomada geralmente em dia de festa religiosa. Aparecia a garrafa, depois um copo e por último a garrafa enchia o copo.

Depois de vários dias em Santa Maria, retornamos para Jaguari, no mesmo estilo da ida, porém não mais quatro, pois a Inês havia permanecido em Santa Maria. Para não fugir da tradição, nosso pai nos esperava na Estação Ferroviária de Jaguari e com os dois veículos cavalares estacionados  na Associação Rural, no outro lado da cidade, saída para o Marmeleiro e Fontana Freda.

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