A CRISE DO SISTEMA FEUDAL

A economia medieval, em franco desenvolvimento nos séculos XI, XII e XIII, sofreu sérios abalos no decorrer do século XIV, mostrando que o sistema feudal encontrara os limites máximos de sua expansão. A crise que então se abateu sobre a Europa pode ser explicada a partir de um conjunto de fatores cujo resultado, em longo prazo, foi a superação do feudalismo.

Por volta de fins do século XIII a produtividade agrícola já dava claros sinais de declínio, prenunciando uma possível falta de alimentos, devido ao esgotamento dos solos, enquanto a população continuava apresentando tendências de crescimento. A exploração predatória e extensiva dos domínios, que caracterizara a agricultura feudal, fazia com que o aumento da produção se desse, em sua maior parte, com a anexação de novas áreas (que não estava mais ocorrendo) e não com a melhoria das técnicas de cultivo.

No inicio do século XIV, a Europa foi assolada por intensas chuvas (1315 a 1317) que arrasaram os campos e as colheitas. Como conseqüência, a fome voltou a perturbar os camponeses, favorecendo o alastramento de epidemias e trazendo a mortalidade da população. "Nos campos ingleses, ele passou de 40 mortos por cada mil habitantes, para 100 por mil. Na cidade belga de Ypres, uma das mais importantes da Europa, pelo menos 10% da população morreu no curto espaço de seis meses em 1316". (Franco JR. Hilário. 0 Feudalismo, São Paulo, Brasiliense, 1984, p. 80).

De 1348 a 1350, a peste negra desceu sobre a Europa, trazida da região do Mar Negro por comerciantes genoveses, eliminando de 25 a 35%' da população. Muitas aldeias desapareceram provisória ou definitivamente. Cidades tiveram sua população dizimada, como Toulouse na França, que de 30000 habitantes em 1348, contava com apenas 24000 em 1385; Florença, de 110 000 antes da peste, ficou reduzida a 50000.

A peste atingiu indiscriminadamente campo e cidade, pobres e ricos homens e mulheres adultos e crianças, sendo explicada, pelos cronistas medievais, como sendo castigo de Deus.

"Chegara-se ao ano de 1348 da fecunda Encarnação do filho de Deus, quando a cidade de Florença, nobre entre as mais famosas da Itália, foi presa de mortal epidemia. Que a peste fosse obra das influências austrais ou resultado das nossas iniqüidades, e que
Deus, na sua justa cólera, a tivesse precipitado sobre os homens como punição dos nossos crimes o certo i que ela se declarara alguns anos antes em terras do Oriente, onde provocara a perda de enorme quantidade de vidas humanas. Depois, sem parar, avançando cada vez
mais, propagara-se, para nossa desgraça, para Ocidente. ( ... )

Proibiu-se a entrada na cidade a todos os doentes e multiplicaram-se as prescrições de higiene. Recorreu-se, mil vezes e não apenas uma, às suplicas e orações que são de uso nas procissões e as de outro gênero, com que os devotos se desobrigam perante Deus. Nada pode nada. Desde os dias primaveris do ano que referi, o horrível flagelo começou, de maneira surpreendente, a manifestar sua dolorosa devastação."

(BOCCACIO, Citado por WOLFF, Philippe. Outono da Idade Media ou Primavera dos, Novos, Tempos? Lisboa Edições 70, 1988 p.25/26

Os senhores feudais viram seus rendimentos declinarem devido à falta de trabalhadores e ao despovoamento dos campos. Procuraram então, de todas as maneiras, superar as dificuldades. Por um lado, reforçaram a exploração sobre os camponeses, aumentando as corvéias e demais impostos, para suprir as necessidades de ostentação e consumo, dando origem à "segunda servidão". Por outro, principalmente nas regiões mais urbanizadas, os nobres passaram a arrendar suas terras, substituindo a corvéia por Pagamento em dinheiro e dando maior autonomia aos camponeses, alterando bastante as relações de produção.

"Depois da acima dita pestilência, muitos edifícios, grandes e pequenos, caíram em ruínas nas cidades, vilas e aldeias, por falta de habitantes, de maneira que muitas aldeias e lugarejos se tornaram desertos, sem uma casa ter sido abandonada neles, mas tendo morrido todos os que ai viviam; e i provável que muitas dessas aldeias nunca mais fossem habitadas".

Nobres e senhores do reino que tinham foreiros faziam abati mentes da renda, a fim de que os foreiros se não fossem embora, devido à falta de servidores e geral carestia, uns de metade da renda outros mais, outros menos, alguns por dois anos, alguns por três, 1 alguns por um ano, segundo o que combinassem com eles. Desta maneira aqueles que recebiam dos seus foreiros um dia de trabalho ao longo do ano, como é de costume com os vilãos, tinham de lhes dar mais lazeres e perdoar tais trabalhos, e outros libertá-los por completo ou dar-lhes um foro mais fácil por uma renda menor, para que as casas se não arruinassem por completo e a terra não permanecesse inteiramente por cultivar em toda parte."

(KENDALL, E. K. Source-Book of English History, New York, 1908, 49 Ed. p. 102/106. Citado por MONTEIRO, Hamilton M. 0 Feudalismo: economia e sociedade, São Paulo, Ática 1986, p. 77/78.)


Outros proprietários de terra buscaram uma saída através da especialização da agricultura (vinhas, plantas tintoriais) Na Inglaterra, adotou-se a prática de cercamento dos campos e transformação dos mansos em pastagens, com expulsão dos camponeses, que reagiam derrubando as cercas, recuperando a terra para o cultivo. "Não deixam terreno para amanho; cercam-nos todos de valados para os converter em pastagens; deitam as casas abaixo; arrasam as cidades, não deixando nada de pé, a não ser a Igreja, para ser transformada em curral de ovelhas". (SLICHER VAN BATH, B. H. História Agrária da Europa Ocidental. Lisboa, Editorial Presença, 1984, p. 168.)

A mortalidade trazida pelas chuvas, fome e peste negra foi ainda ampliada pela longa guerra entre os reis de Inglaterra e França, que entre combates e tréguas, durou mais de um século (1337/1453): a Guerra dos Cem Anos.

A Guerra dos Cem Anos surgiu porque o rei de França, Felipe IV, anexou a região de Bordéus domínio feudal do rei da Inglaterra, de onde provinha grande parte dos vinhos que os ingleses bebiam. Deveu-se também às ambições da França e da Inglaterra em dominarem a região de Flandres, rica por seu comércio e produção de tecidos.

Entre batalhas vendidas ora por ingleses ora por franceses e períodos de trégua, a guerra aumentou as dificuldades da nobreza e agravou a situação de miséria dos servos.

0 recrudescimento da exploração feudal sobre os servos contribuiu para as revoltas camponesas que grassaram na Europa do século XIV, nas quais milhares deles foram mortos. Elas consistiam em súbitas explosões de resistência feroz; duravam pouco e, em regra, estavam mal organizadas. Logo que os lideres morriam ou eram feitos prisioneiros, a resistência apagava-se novamente com a mesma rapidez com que tinha começado a arder." (SLICHER VAN BATH, B. H., op. cit. p. 192.)

As revoltas mais conhecidas foram a "jaquerie" ocorrida em 1358, ao norte de Paris e a liderada por Wat Tyler, nos arredores de Londres. Os camponeses reclamavam da vida dura no campo, dizendo que "a condição de bestas era mais feliz que a nossa, pois não são obrigadas a trabalhar mais do que sua força lhes permite" (Guillaume Carle) ou ainda: "Por que razões são mais poderosos aqueles a quem chamamos senhores? Por que nos mantêm na servidão? E se viemos todos nós de um pai e de uma mãe, Adão e Eva, como podem eles dizer ou mostrar que são melhores?" (John Ball, 1381). Manifestavam também sua insatisfação através da sabotagem da produção, do pagamento de taxas em atraso ou de fugas para as cidades, onde se empregavam nas manufaturas.

A crise geral do sistema feudal provocou também revoltas urbanas:

"Em 1381 o povo de Gand revoltou-se contra o seu senhor, o conde da Flandres. Marcharam em grande número para Bruges, tomaram a cidade, depuseram o conde, roubaram e mataram todos os seus oficiais e procederam da mesma maneira em relação a todas as outras cidades flamengas."
(The Diary of Buonaccorso Pitti. Citado por MONTEIRO, H. M., op. cit. p. 81.)

 

A conjuntura de epidemias, de aumento brutal da mortalidade e de superexploração camponesa que caracterizou a Europa do século XIV trazendo crise, foi sendo superada no decorrer do século XV, que viu a retomada do crescimento populacional, agrícola e comercial. No campo, os senhores feudais, substituindo as corvéias por salários, rompiam com o sistema senhorial de produção. Nas cidades, o revigoramento do mercado era favorecido pela ascensão dos preços das manufaturas.

Finalmente vencida pelos franceses, a Guerra dos Cem Anos fez emergir o sentimento nacional na França e na Inglaterra, favorecendo, 1 nos dois países, a consolidação territorial e a retomada do poder político pelos reis. Os monarcas contaram com as dificuldades da nobreza e com o apoio econômico da burguesia para recuperar e fortalecer sua autoridade.

A recuperação demográfica, o progresso técnico a expansão marítima pelo Oceano Atlântico, o Renascimento cultural e artístico um cristianismo reelaborado proposto por Lutero e Calvino através da Reforma Protestante, eis como a civilização européia reagiu às dificuldades e avançou nos séculos XV e XVI no caminho do progresso que a levaria a se impor ao mundo.

Autores: Fábio Costa Pedro e Olga M. A. Fonseca Coulon.
História: Pré-História, Antiguidade e Feudalismo, 1989

 

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