Uma fazenda de café no tempo do Império

Uma grande fazenda, como a do Sr. S., é um pequeno mundo. Há forjas e oficinas; máquinas para o preparo de mandioca; uma serraria; um moinho de milho, uma moenda de cana e um alambique onde se faz aguardente. Existe, também, um forno de tijolo e uma olaria, onde foi feita a maior parte dos vasos existentes no viveiro. A maquinaria é propulsionada por uma turbina e por uma caldeira que a movimenta, instalações essas que o Sr. S. nos mostra com orgulho perdoável. Da casa das máquinas, ele nos leva ao curral que, sendo embora uma dependência auxiliar, não é absolutamente insignificante; vêem-se ali oitenta bonitos bois, umas trinta mulas, cem porcos, cinqüenta carneiros, além de perus, galinhas, galinhas d'Angola e pombos. Para coroar tudo isto há, também, um zebu, da Índia, comprado pelo Sr. S. em Paris, para experiência.

Grupos pitorescos de lavadeiras reúnem-se em torno da grande tina de pedra em que trabalham. Todas as manhãs ouve-se o barulho de uma máquina que corta as pontas da cana destinada ao gado. Na cozinha são preparadas as rações dos escravos em grandes fornos e caldeirões. Vemos um ferreiro trabalhando na forja; além, está um carpinteiro martelando ou serrando. Não vemos, porém, um s6 negro ocioso, pois mesmo os octogenários se ocupam na fabricação de cestas ou em outros trabalhos leves, e todas as crianças trabalham na fazenda, exceto os bebês, com o restante do pessoal. Somente aos domingos alguns dos trabalhadores mais fracos deixam de trabalhar, entregando-se a uma espécie de recreio.

Os negros são sujeitos a uma fiscalização rígida e o trabalho é regulado como uma máquina. As quatro horas da madrugada todos os escravos são reunidos a fim de entoarem rezas, depois do que se põem em fila para irem trabalhar. As seis horas dão-1hes café; As nove horas almoçam carne-seca, farinha de mandioca, feijão e broa de milho; ao meio dia, tomam uma pequena porção de aguardente; às quatro horas jantam, precisamente como ao almoço, e, como este, é servido ao ar livre, com a menor interrupção possível do trabalho. Às sete horas, os negros cansados retornam em filas para os barracões, ao som de uma corneta. De um tripé, colocado a um lado dos barracões, um fogo brilhante ora clareia, ora escondo os rostos negros, enquanto as labaredas elevam-se, lançando sombras contra o chão. As ferramentas são depositadas em um armazém e fechadas a chave; dois ou três negros aproximam-se, timidamente, do senhor para fazer-1he pedidos; depois disso, entregam-se a trabalhos caseiros ou nas máquinas, até às nove horas; os homens e mulheres são, então, fechados a chave, em compartimentos separados, onde deixam-nos dormir durante sete horas, a fim de que se restaurem para o trabalho do dia seguinte, de quase dezesseis horas ininterruptas. (Alguns senhores tratam seus escravos com mais humanidade; outros porém, são ainda mais rigorosos). Aos domingos há um feriado nominal, pois não dura mais de três ou quatro horas; os dias santos não são celebrados aqui e o próprio Natal passa desapercebido.

O sistema brasileiro de emancipação gradual dos escravos, embora possa ser sábio sob muitos aspectos traz consigo um mal inevitável. Se um homem tem um domínio irrestrito sobre o escravo enquanto este viver, trata-o bem, como o faria com um cavalo; não deseja diminuir o valor de sua propriedade. Mas se o escravo vai se libertando dentro de dez, quinze ou vinte anos, a política a seguir é de tirar dele tanto serviço quanto possível. Um negro jovem, robusto e capaz, mesmo trabalhando em excesso e sendo cruelmente tratado, pode, razoavelmente, durar uns vinte anos. Há senhores humanos que contam com um limite de tempo maior e tratam bem seus escravos, mas a maioria encara o assunto simplesmente pelo prisma comercial. Se um homem for tolo e emprestar um cavalo por cinco anos, só pode esperar que lhe devolvam um pobre animal esgotado. Entretanto, quem abusa dos serviços de um cavalo ou de um escravo, talvez seja com os olhos vendados e não seja cruel por natureza; é possível que tenha a pior das cegueiras : a dos negócios. Já conheci um comerciante respeitável que seria capaz, num dia, de cortar o ordenado de seus empregados e, no outro, de dar mil dó1ares aos pobres.

Nas províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo acham-se espalhadas grandes fazendas, como a que visitamos. Algumas, na realidade, são maiores, abrangendo um milhão, ou mais, de cafeeiros em produção e empregando muitas centenas de escravos. São numerosas as fazendas pequenas, mas muitas delas se acham grandemente endividadas, sendo problemáticos os seus lucros. Uma grande parte dos lucros da cultura do café é absorvida pelos grandes proprietários que, dispondo de duzentos ou trezentos escravos e de dezenas de máquinas que poupam serviço, podem, com facilidade, desbancar os vizinhos mais pobres. O atual sistema tributário do Brasil encoraja os fazendeiros ricos e desanima os pobres. Não há imposto territorial; as melhores terras cafeeiras estão em poder de capitalistas que as conservam durante vários anos sem cultivo. Eventualmente, com a extensão das comunicações internas e com a procura de terras para cultura, conseguem lucros enormes. As terras do Sr. S. foram compradas no mercado livre, há vinte e cinco anos, à razão de dez dólares por acre. O atual sistema apresenta dois grandes males: primeiro, conserva inativos imensos lotes de terras; segundo, torna as terras difíceis de serem obtidas devido a seu alto preço, o que as coloca, portanto, fora do alcance das classes mais pobres.

Um americano pode melhor compreender estes males se refletir sobre os resultados que semelhante sistema teria nos Estados Unidos. Suponhamos que não se tivesse criado o imposto territorial em nossas regiões ocidentais. Todo o país teria sido comprado, por especuladores, com alguns centavos ou dólares por acre. Estes homens teriam ficado de posse de centenas de milhas quadradas; as terras atingiriam um valor fictício; alguns capitalistas conseguiriam fortunas enormes e os imigrantes seriam afastados, não só em virtude dos preços elevados como também pela dificuldade de obterem fazendas. Imensos lotes de terra estariam, ainda, inativos e, em vez de dominar o comércio mundial do trigo, os Estados Unidos estariam, talvez, comprando esse cereal a outros países. Tais resultados seriam a conseqüência legítima de um sistema pelo qual as terras, aumentando sempre de valor, poderiam ser retidas sem limite ou restrição.

Assim raciocinamos, eu e Carlos, ao regressarmos a Entre Rios na grande diligência em que viajávamos. Admiramos a inteligência e o tino do nosso anfitrião; seriamos ingratos se não tivéssemos apreciado a sua hospitalidade espontânea e a sua gentileza. Apesar de tudo, está ficando rico devido a leis injustas e incorretas e a instituições tirânicas; e disso são testemunhas as terras descuidadas de seus vizinhos mais pobres e os rostos sombrios de seus escravos.

(Trata-se de uma reportagem de um sábio americano sobro uma visita que fez ao Brasil.) Smith, Herbert H. Uma Fazenda de Café no Tempo do Império, Ed. do Departamento Nacional do Café, Rio, 1941, pp. 14 - 17.

Bibliografia: Fenelon, Dea Ribeiro 50 textos de história do Brasil. São Paulo Hucitec, 1974.