O Poder e a Hegemonia – Apontamentos Sobre a Teoria Marxista
por Néstor Kohan



   De que maneira domina a classe dominante? Essa é uma questão essencial. Todos sabem que o capitalismo é um sistema de poder, exploração e dominação. Não é preciso esclarecer mais nada. Sofre-se na própria carne todos os dias. Mas o que é um tanto mais complexo é decifrar o emaranhado das formas concretas, através das quais o capital se reproduz quotidianamente e se exerce esse poder em cada conjuntura. Quando se trata de resolver esse enigma, aparecem as dores de cabeça. Que não são poucas...

O MODELO POLÍTICO DO MANIFESTO COMUNISTA

Na sua análise do capitalismo, Karl Marx, como um detetive com a sua lupa, tornou visível e trouxe para o terreno da teoria politica aquela terrível realidade que viviam e sofriam os trabalhadores do seu tempo. Toda a sociedade se divide em exploradores e explorados. Toda a história da sociedade não é mais, sentenciou Marx, que a história da luta de classes.
Escravagistas e escravos, patrícios e plebeus, senhores e servos da gleba, burgueses e proletários. Essa polarização classista divide em duas partes o conjunto da história da sociedade.
Ainda que a genealogia da luta de classes tenha milénios atrás de si, Marx não duvidou em identificar dois grandes atores desse drama moderno: a burguesia e o proletariado.
O Estado era, segundo o autor do Manifesto, uma maquinaria de guerra do capital contra o trabalho, dos opressores contra os oprimidos.
Pela sua simplicidade, este modelo de análise política fez história e penetrou no coração de milhares e milhares de militantes em todo o mundo. Não era preciso matar a cabeça para o compreender. Dum lado estavam "eles" e do outro estávamos "nós". Um pólo e outro pólo. Preto no branco. Claro, límpido, transparente.

O MODELO POLÍTICO DO 18 BRUMÁRIO DE LUIS BONAPARTE

Mas, quando Marx se dispôs a analisar uma sociedade pontual, como era o caso da França, que havia sido abalada pelo golpe de Estado de Luis Bonaparte em Dezembro de 1851, após a derrota da insurreição de 1848, elaborou uma análise muito mais complexa. A luta de classes pode ser preto no branco, sim, mas vem acompanhada por uma variada gama de cinzentos, que nas ardentes linhas do Manifesto não apareciam em primeiro plano.
Além destes dois grandes personagens — a burguesia e o proletariado — Marx distingue na formação social francesa toda uma gama de segmentos sociais que integram também a luta de classes. Salienta ainda o fracionamento que a burguesia sofre no processo da luta política. A fração burguesa dedicada aos negócios financeiros e a burguesia industrial são coisas diferentes, adverte Marx. E nenhuma destas duas frações é idêntica à burguesia latifundiária. Entre os diversos fracionamentos das classes fazem-se alianças políticas — onde uma das frações dirige e arrasta o resto. Assim, conclui Marx no 18 Brumário, a luta de classes não é linear e horizontal, mas sim fracionada e transversal.
No 18 Brumário, Marx fala-nos também de Luis Bonaparte, um ditador que encabeça um golpe de Estado e permanece duas décadas à frente do governo francês. Este ditador era uma personagem secundária, rodeada de marginais, que, graças à liderança do Exército, se converte em determinado momento da história de França, numa espécie de "árbitro" dos conflitos sociais. Uma espécie de "juiz equidistante", que vem solucionar e moderar os conflitos. Como este personagem — que Marx detestava — se chamava Luís Bonaparte (sobrinho de Napoleão) a tradição marxista, começando pelo próprio Marx, converteu em categoria teórica essa análise política e transformou-a no conceito de "bonapartismo".
Na sua análise de Luís Bonaparte e da situação francesa daquele período, Marx apresenta elementos fundamentais da sua teoria política.
Por exemplo, Marx sugere que a melhor forma de dominação política da burguesia, a mais eficaz, é "a república parlamentar". Para Marx, república parlamentar não é sinónimo de democracia, como pretende a filosofia política do liberalismo. A república parlamentar não garante "a liberdade"; antes constitui uma forma de dominação. Ao contrário da monarquia ou da ditadura militar (onde apenas um setor da burguesia domina), na república parlamentar é a burguesia no seu conjunto que exerce o domínio através do Estado e das suas instituições "representativas". Segundo Marx, a república parlamentar dilui os interesses peculiares das distintas frações da burguesia, alcançando uma espécie de "média" de todos os interesses da classe dominante no seu conjunto e, deste modo, consegue uma dominação política geral, ou seja: anônima, impessoal e burocrática.
No 18 Brumário, Marx acrescenta ainda que, quando a situação política "transborda", sob a indisciplina e a rebelião popular, a velha maquinaria republicana (com os seus partidos, o seu Parlamento, os seus juízes, a sua imprensa "independente"; em suma: com todas as suas instituições) torna-se insuficiente para manter a dominação. Nesses momentos de crise aguda, os velhos partidos políticos da burguesia deixam de representar essa classe social. Ficam como que "flutuando no ar" e girando no vazio. Emerge, então, outro tipo de liderança política para representar a classe dominante: a burguesia deixa de estar representada pelos liberais, pelos constitucionalistas ou pelos republicanos, para passar a ser representada pelo Exército e pelas Forças Armadas que, deste modo, se constituem como "O Partido da Ordem". O Exército aparece então na arena política, como se... viesse equilibrar a situação catastrófica, embora na realidade... venha garantir a reprodução da dominação política da burguesia. Argentina 1966, 1976. Brasil 1964. Chile 1973, etc...

LÉNINE: TEÓRICO DA HEGEMONIA

Durante o século XX, diversos pensadores revolucionários tentaram ampliar a reflexão de Marx. Não com um interêsse puramente erudito, ainda menos "acadêmico", mas antes apostando na luta política dos trabalhadores. Tinham em mente o que todo o revolucionário deve ter: o poder.
Entre muitos outros, Lénine, um dos mais brilhantes, pelas suas contribuições teóricas e sobretudo pela sua ação política, investigou profundamente as fontes do pensamento de Marx sobre a dominação e o poder.
Num mesmo movimento, Lénine conjugou os dois modelos políticos que Marx manejava, o do Manifesto, e o do 18 Brumário. Contra o que poderia supor-se, numa análise superficial ou desprevenida, aqueles não eram contraditórios entre si.
No Manifesto, Marx assinalou os grandes atores estruturais, os principais contendentes da luta de classes contemporânea que se enfrentariam a longo prazo. No 18 Brumário, trazia para o terreno prático essa teoria geral. O estrutural conjugava-se com o conjuntural. A longa duração da história, com o tempo curto da politica. A estratégia com a táctica. O lógico com o histórico.
Por isso, Lénine pode definir o marxismo, enquanto método, como "a análise concreta da situação concreta". Esse tipo de análise pressupunha conjugar o geral de uma sociedade capitalista com o particular, o gênero com a espécie, o comum a todas as sociedades capitalistas com o específico de cada uma.
O conceito teórico a que Lénine apelou para dar conta dessa operação de Marx foi o da "formação econômico-social". Uma sociedade pontual — suponhamos a França de 1851, a Rússia de 1905 ou a Argentina de 2003 — tem algo de comum que compartilha com todas as sociedades capitalistas. E, ao mesmo tempo, tem algo de específico e irrepetível.
Como se produz a luta de classes numa formação econômico-social? Através de alianças entre frações de classes sociais. Cada aliança constitui uma "força social". (Quando Lénine emprega o termo de "aliança" não está a pensar numa aliança meramente eleitoral, como a da UCR e do FREPASO [dois partidos políticos burgueses argentinos], mas sim numa aliança em termos de interesses sociais e experiências políticas). No interior de cada força social, existe uma fração de classe que dirige política e culturalmente o resto. Para o conseguir, esse segmento social deve poder generalizar os seus próprios valores, a sua própria cultura, o seu próprio programa político, ao conjunto da força social. Em suma, deve poder conseguir que o conjunto da força social interiorize e adote como própria a estratégia, os valores e o programa político da fração dirigente.
A todo esse complexo processo, através do qual se exerce a direção da força social na confrontação política da luta de classes, Lénine denomina "hegemonia".
A dominação política, então, não se exerce unicamente com a violência e a repressão do Estado. Também se consegue através da direção política e da consumação da hegemonia.

GRAMSCI E AS RELAÇÕES DE PODER

Apropriando-se e retomando essa amplíssima bagagem de reflexões, análises e modelos de pensamento político, Antonio Gramsci tentou pensar a hegemonia em sociedades capitalistas complexas. Não só para aquelas onde a burguesia domina através de uma ditadura feroz, mas também para aquelas onde os segmentos hegemônicos das classes dominantes recorrem à forma mais eficaz de dominação política: a república parlamentar (que, insistimos, não é sinónimo de "democracia", apesar do que nos dizem os meios de comunicação do sistema).
O principal objeto de reflexão que tirou o sono de Gramsci, desde a sua juventude até à maturidade, é o problema do poder. Ao analisar o problema do poder, Gramsci introduziu uma das grandes inovações na teoria e na filosofia política do século XX. Mais de quatro décadas antes de Michel Foucault formular a sua conhecida — e academicamente celebrada — tese, segundo a qual o poder não reside no aparelho de Estado, não é uma coisa mas sim relações, Antonio Gramsci — com menor reconhecimento acadêmico — havia chegado a uma conclusão análoga.
O italiano, retomando as reflexões de Lénine sobre as condições de uma "situação revolucionária", redigiu uma das passagens fundamentais dos Cadernos do Cárcere (Caderno N°13, 1932-1934): "Análise de situação e relações de força".
Aí, Gramsci demarca-se do marxismo catastrofista, segundo o qual da crise econômica do capitalismo surgiria, como por artes mágicas, a revolução socialista. O capitalismo jamais cai por si mesmo, pensa Gramsci. É preciso derrubá-lo! Para isso, é necessário um sujeito organizado que intervenha, que seja ativo, que não espere passivamente a crise, como quem espera que caia um fruto maduro de uma árvore. Como pode intervir o sujeito? Politicamente. Mas a intervenção política não se realiza "no ar", mas sim a partir de determinadas relações de poder e de forças, porque o poder não se trata de uma coisa, mas de relações.
A modificação das relações de força deve partir de uma situação "econômica objetiva" mas nunca deter-se aí. Se não consegue passar ao plano político geral, onde se transcende o imediatismo econômico corporativista — passagem que Gramsci denomina "catarse" — toda a tentativa revolucionária se encaminha para o fracasso. Foi esse o principal ensinamento que Gramsci extraiu da derrota dos conselhos operários de Turim em 1920.


GRAMSCI E A HEGEMONIA

É nessa especificidade política que se coloca o problema de alcançar a hegemonia, outro dos fios condutores na sua obra. Ao refletir sobre a hegemonia, Gramsci adverte que a homogeneidade da consciência própria e a desagregação do inimigo se realiza precisamente no terreno da batalha cultural. É esta a sua incrível atualidade para operar nas condições abertas pelo capitalismo tardio! Gramsci embrenha-se na reflexão sobre a cultura, não para tentar legitimar a governabilidade consensual do capitalismo, mas para o derrubar.
Que é, então, para Gramsci, a hegemonia? Não é um sistema formal fechado, absolutamente homogêneo e articulado (estes sistemas nunca ocorrem na realidade prática, só no papel, por isso são tão cômodos, fáceis, abstratos e esmiuçados, mas nunca explicam os acontecimentos numa sociedade particular determinada). A hegemonia, pelo contrário, é um processo que expressa a consciência e os valores organizados praticamente por significados específicos e dominantes, num processo social vivido de maneira contraditória, incompleta e até muitas vezes difusa. Numa palavra, a hegemonia de um grupo social equivale à cultura que esse grupo conseguiu generalizar para outros segmentos sociais. A hegemonia é idêntica à cultura, mas é algo mais que a cultura porque, além de tudo, inclui necessariamente uma distribuição específica de poder, de hierarquia e de influência. Como direção política e cultural sobre os segmentos sociais "aliados" influenciados por ela, a hegemonia também pressupõe violência e coerção sobre os inimigos. Não é apenas consenso (como habitualmente se pensa numa análise trivial social-democrata do pensamento de Gramsci). Por último, a hegemonia nunca é aceite de forma passiva, está sujeita à luta, à confrontação, a toda uma série de "safanões". Por isso quem a exerce, tem de a renovar continuamente, reelaborar, defender e modificar, procurando neutralizar o adversário, incorporando as suas reivindicações, embora desembaraçadas de toda a sua perigosidade.
Se a hegemonia não é um sistema formal fechado, as suas articulações internas são elásticas e deixam a possibilidade de operar sobre ele por outro lado, a partir da crítica ao sistema, da contra-hegemonia (à qual a hegemonia permanentemente se vê obrigada a resistir). Se, por outro lado, a hegemonia fosse absolutamente determinante — excluindo toda a contradição e toda a tensão — seria impensável qualquer mudança na sociedade.
Assim, ao refletir analiticamente sobre as relações de poder e de forças que caracterizam uma situação, Gramsci parte duma relação "econômica objetiva", para passar em seguida à dimensão especificamente política e cultural onde se constrói a hegemonia.
A conclusão a que Gramsci chega nos Cadernos do Cárcere , visualizando as relações de forças no seu conjunto, é a seguinte: "Pode assim dizer-se que todos estes elementos são a manifestação concreta das flutuações de conjuntura do conjunto das relações sociais de força, em cujo terreno tem lugar a sua passagem a relações políticas de força para culminar na relação militar decisiva".
Portanto, no pensamento de Gramsci "economia", "política-cultura" e "guerra" são três momentos internos de uma mesma totalidade social. Não se podem separar. São graus e níveis diferentes de uma mesma relação de poder, que pode resolver-se, tanto num sentido reacionário (mantendo o atual tipo de sociedade) como num sentido progressivo, através de uma revolução.
Nem mesmo os especialistas, apesar de grandes conhecedores da obra do italiano, entreviram as consequências que se deduziam desta concepção do poder e da política. Ao fazer levianamente a separação entre a cristalização econômica por um lado — designando-a por "estrutura" — e a institucionalização política por outro — chamando-lhe "superestrutura" — não se deram conta que, concebendo o poder em termos relacionais, se podiam resolver grande parte das evidências que o marxismo "ortodoxo" tinha deixado sem resposta clara. Fundamentalmente, no que se refere à leitura de O Capital , de Karl Marx.

O INIMIGO TOMA A INICIATIVA: A REVOLUÇÃO PASSIVA

Grande parte das reflexões dos marxistas sobre a luta de classes, giraram em torno da necessidade de os trabalhadores e o povo assumirem a iniciativa política.
Mas o que acontece quando a iniciativa é tomada pelos nossos inimigos? Que fazer quando os segmentos hegemônicos da burguesia tentam, com medidas "progressistas", pôr-se à cabeça das mudanças, a fim de desarmar, dividir e neutralizar os mais intransigentes e radicais?
Para pensar esses momentos difíceis, que tanto se assemelham à situação atualmente vivida na Argentina [Dezembro de 2003], Gramsci elaborou uma categoria: a "revolução passiva". Tomou-a de historiadores italianos, mas deu-lhe outro significado.
A revolução passiva é para Gramsci uma "revolução-restauração", ou seja uma transformação a partir de cima, pela qual os poderosos modificam lentamente as relações de força para neutralizar os seus inimigos de baixo.
Através da revolução passiva, os segmentos politicamente hegemônicos da classe dominante e dirigente tentam "meter no bolso" (a expressão é de Gramsci) os seus adversários e opositores políticos, incorporando parte das suas reivindicações, embora despojadas de todo o perigo revolucionário.
Como enfrentar essa iniciativa? De que maneira podemos desmontar essa estratégia burguesa? Tem de ser dada pelo movimento popular, preparado e partidário comunista; organizando e dando um caráter consciente ao movimento espontâneo das massas.
É relativamente fácil identificar os nossos inimigos quando eles adotam um programa político de choque ou repressivo (pensemos em Videla ou em Menem...). A questão complica-se quando certos setores do poder aplicam medidas "progressistas". Nesses momentos, torna-se mais complexo e delicado navegar no tormentoso oceano da luta de classes em que muitas vezes prevalece na cena política os contra-revolucionários, oportunistas e revisionistas no comando para abortar a revolução...