NATAL

No natal de 1997, meu pai havia pela primeira vez de fato me procurado. Eu contava vinte anos de idade. Não que em todo esse tempo nós dois nunca havíamos nos falado. Embora por determinado período de nossas vidas um pouco afastados, tivemos um certo relacionamento. Entretanto, ainda nesse certo relacionamento, pretérito mais que perfeito é bem verdade, não me recordava de meu pai ter buscado contato comigo. Sempre a iniciativa partia de mim. E quanto a isso eu nunca me questionei, nem acredito ser necessário hoje o fazer, pois não implicaria em nenhuma mudança importante em minha vida.

         A voz metálica do meu pai ao telefone gelou-me por segundos. Como se o tempo recuasse para quando nós ainda nos falávamos. A barba sumiu da minha cara. As minhas formas tornaram a adolescência. Minha perna fraquejou. Lembro-me inclusive de controlar uma gagueira que me insistia na garganta. Foi com isso que eu pude sentir os anos que haviam transcorrido. A curiosidade dele, ainda que fabricada, pelo que ia na minha vida, eu me obrigando a selecionar os fatos mais indispensáveis e notando que era muito para falar assim de supetão numa simples conversa por telefone, tudo me jogava na cara que eu havia envelhecido. Havia muito tempo me separando do meu pai. Mesmo ali ouvindo a sua voz que não parecia nada nada modificada. Tinha a sensação de ele falar de uma verdadeira máquina do tempo, como se o seu discurso viesse diretamente do passado. E esse tipo de sentimento me era inexorável.

         - Quando nos vemos? Disse-me ele assim à queima-roupa.

         - Talvez em janeiro. Eu acho que já vou estar de férias. Vou ver se descolo um dinheiro emprestado…

         - Faça isso, faça isso. Quando você chegar aqui em Salvador, eu lhe devolvo o dinheiro.

         Salvador. A palavra causou-me um bombardeio de imagens. “Quando você chegar aqui em Salvador”, ele disse. Com tanta naturalidade. Aquele homem não imaginava o que a sua conjectura obrigava a mim. Fazia uns seis anos que eu não punha o pé em Salvador. De repente, eu me lembrei que tinha nascido lá. E também de repente o sotaque começou a brotar das minhas cordas vocais com tanta espontaneidade e domínio que até me espantou. Um sotaque com o qual eu havia lutado por tanto e por tanto para apagar. Que eu já pensava ter subjugado, fechando aqui e ali as vogais, todas elas para não ter a mínima chance de alguma escapar.

         Quando cheguei no Rio de Janeiro, meus primos me criticavam muito na maneira de falar e de vestir. Criticavam o que tinha sobrevivido de Salvador à transposição da fronteira. A minha cultura. As minhas raízes. Como se eu guardasse ainda um pedaço do meu torrão natal dentro de mim próprio. Não obstante as seduções de uma metrópole para quem havia recém-chegado do nordeste, mantinha-se em mim algo por enquanto muito forte do que eu deixara para trás no espaço, somente no espaço.

         Paulatinamente, o que me era orgulho foi se tornando razão de raiva, de ódio. Perscrutava algo defectivo na minha alma. Tinha decerto algum problema muito sério em mim, algum mal, algum elemento pernóstico que causava repulsa perante os meus primos, que tirava inclusive gargalhadas de suas bocas. E no espelho vislumbrava um ser débil, apodrecendo gradualmente, contaminado por uma qualquer que fosse radiação que havia muito invisível. Esmerava-me numa análise, mas nada encontrava. E, quiçá por instinto de sobrevivência, quis deixar de ser o que era, o que servia de circo para o outro, para ser o outro que via em mim o circo engraçado, pois queria passar de origem de riso ao próprio sorridente. Desta forma, transformei-me num outro, o que foi ainda pior. Eu havia abdicado das minhas raízes, legítimas e originais, para me transformar numa coisa deformada, mal construída, um mimetismo muito do mal feito. Que chegava até a enganar bem. Mas que eu sabia bem lá no íntimo que tinha sérios defeitos. Eu só posso ser onde eu nasci. Qualquer tentativa de modificar isso sempre vai levar a um Quasímodo. Hoje eu nem sou de lá, nem tão pouco daqui. Sinto isso igual a uma ácida angústia. Porque eu vejo que demorarei muito ainda para voltar a ser de algum lugar. Se é que voltarei com efeito.

         “Quando você chegar aqui em Salvador”, ele disse. Com tanta naturalidade. De dezembro a janeiro foi um pulo. Eu já estava no ônibus, em Itajimirim ou Itamaraju, tanto faz, e a tal frase me martelando os ouvidos. Como estará fulano? E sicrano? E beltrano? Certamente, todos trabalhando, todos casados, todos com filhos. Todos de um forma como não eram antes, como eu não era antes. Todos que não serão os mesmos e que nem adianta procurar para reviver os velhos tempos, pois com certeza não vão querer fazer as mesmas coisas. Não vão querer sentar a uma mesa de bar e beber até cair, pois têm que chegar cedo no emprego no dia seguinte. E também não vão querer passar o dia inteiro tocando guitarra comigo, por causa da esposa que é ciumenta e quer o marido todo o tempo. Então, eu já me perguntava, para que tudo isso, meu Deus? Para que voltar lá, se não vou encontrar nada? E até o meu pai vai estar diferente, mais velho, mais barrigudo, mais amargo. Eu não vou olhá-lo como um herói, mas como um sujeito derrotado pela vida, que passa os dias desperdiçando o seu talento, corroído por nem sei mais quantos mil cigarros e copos de whisky.

         Minha viagem foi um tormento. A chegada foi um tormento. Todos os momentos foram infinitos tormentos. Era um tempo que não passava. Era um limbo temporal, em que eu não sabia exatamente se estava na Salvador de 1998 ou na Salvador de outrora. Meu pai estava lá no portão de desembarque, esperando-me. A barba muito mais embranquecida. A barriga de fato maior. Porém eu o achei mais magro. E comecei achar que o seu ventre estufado era uma espécie de simbologia, de metáfora viva, como se houvesse algum pintor ou mesmo escritor que construísse tudo aquilo por trás, sentado pachorrentamente e mexendo os seus cordelinhos por sobre alguma página ou tela.

         A casa em que eu havia crescido estava, conforme já podia esperar, completamente distinta. As paredes, que antes eram despidas de tinta com o reboco apenas, haviam sido pintadas. Os desenhos que fizera em minha infância, os buracos na parede para prender as prateleiras do meu quarto, as marcas de pés malcriados e revoltados, tudo havia sumido, arbitrariamente sumido. O quintal onde eu passara tantas tardes colhendo frutas e comendo-as nos próprios galhos das árvores tinha sido quase coberto. O cachorro com o qual eu muito brinquei, envelhecido. Não dava sequer um quinto de carreira. Embaixo da escada, uma espécie de buraco que eu fazia em meu tempo de esconderijo tinha sido tapado. Então eu me desesperei, porque não havia mais onde eu me esconder. E, logo em seguida, lembrei-me de que não havia mais necessidade de me esconder. Eu já estava muito grande e podia enfrentar os fantasmas de frente. Não só os enfrentar, bem como os vencer. Só que eu não conseguia os vencer. Afirmava de mim para mim que era um total absurdo meu pai ter apagado as minhas marcas daquele lugar. E ainda por cima ele vinha com aquele discurso a casa é sua, pode sair e chegar à hora que você bem quiser. Eu dizia para mim que isso era o seu sarcasmo. Ao mesmo tempo, os seu olhos deitavam uma umidade que queria ser lágrima e que por orgulho idiota não se resolvia quanto à uma identidade. Se corria como lágrimas enfim, ou se ficava como um sintoma de irritação, um cisco qualquer que agredia a visão.

         Para mim, o contexto em sua imensidão troçava da minha cara. Meu pai, minha casa, até a minha memória. Nas ruas eu já havia esquecido de muita coisa. Os nomes das ruas. Os nomes dos ônibus. Os nomes dos bairros. Sempre os nomes. E eu chegava a ter a impressão no início que eram só os nomes, que, se alguém me dissesse esses malditos nomes, iria me lembrar do resto, porque devia existir ainda um resquício de lembrança na merda da minha cabeça. Mas eu perguntava aqui, perguntava ali. Os nomes vinham da boca de um bicheiro, ou de um jornaleiro, ou de um cobrador, enfim, de qualquer um que não fosse eu, pois estava a querer respostas, como se não fosse, nunca tivesse sido dali, e os lugares permaneciam muito obscuros. A Liberdade? Ah! A Liberdade, um corredor apagado na minha memória que ia de algum ponto a outro, talvez esse, talvez outro, talvez um terceiro, todos eles sem nome, sem forma, sem cheiro, sem música, sem nada, completamente degenerados.

         Minha volta era um tormento. Era alguma brincadeira de um pincel ou de uma pena desgraçada comigo. Eu haveria de ser personagem numa trama muito bem amarrada, tão bem amarrada que eu achava que era real, que não conseguia em momento algum ver que não era real. Entrava dia, saía dia, a semana atravessava. Eu não suportava mais um segundo sequer. Não suportava continuar um segundo sequer no meu berço. Em casa, recebia tratamento de visita. Na rua, era abordado como um turista, um turista desses da vida interessados em descer e subir naquele estúpido Elevador Lacerda que desaponta a maior parte dos alienígenas, ou passar uma tarde em Itapoã, para compreender melhor a poesia de Vinícius, ou até comer acarajé com vatapá e caruru e consumir o restante dos dias com desarranjo no banheiro do hotel.

         “Quando você chegar aqui em Salvador”, ele disse. Com tanta naturalidade. Porque nunca poderia imaginar que Salvador havia se perdido para sempre. Que eu nunca mais poderia retornar à Salvador. Como não se pode adentrar em nenhuma hipótese o rio que se observa, como também não se pode sonhar um mesmo sonho duas vezes de forma idêntica. Assim, eu sentia da maneira mais desconfortável que nunca teria podido reencontrar qualquer coisa que houvesse deixado naquela cidade por mais minha que fosse, porém vir ali como um dos estrangeiros que festejam a cada poeira tocada e descobrir mais uma vez, como uma criança nua e virgem, aquele país para quem sabe um dia, caso eu quisesse sofrer tudo de novo, crescer, amadurecer, envelhecer, criando novas raízes, para na hora chegada poder aí sim servir de adubo com justiça à minha adorável terra perdida.

 

 

LATA D’ÁGUA É NA CABEÇA

E já nem mesmo o corpo meninava tanto pra me separar da lata d’água. Sede de seca é muito mais desgraçada. Não tinha passo dado que eu pagasse caída no chão com os braços feitos em cruz. Só lamentos. Ligasse ele ao menos pro meu não viver? Indiferência que fere provém do esquecimento. Ele próprio se ignorava. Mulié, criança dá é como em árvore frutífera! Meu sofrer era passatempo de reclamação.

         O no berço ainda assim nunca desabitado. Ainda que depois da morte das Dores. Conservava a lata d’água no lugarzinho dela. Nhá das Dores, me arruma essa lata d’água pra mim pegá uma ruma d’água lá no poço? Pode não, fia. Magoasse comigo fosse quem fosse. Fazia não era de perversidade. Seca braba, com remédio só pelo carregar água mesmo. Mas a lata, meu mim. Meu sofrimento ali dentro aumentava. Aumentava. Aumentava com a enchente dos olhos. Ironia. Debruçava os anseios na borda, na margem da lata. E a água me devolvia os olhos. Meus olhos. Meus? Os das Dores! Nossa filha, agora só minha, quando nasceu, nasci também. E por gratidão do favor de me retrazer no mundo, chamou-se a filha igual a mãe. Dia tudo de felicidade. A menina cresceu de botar inveja no tempo. Cresci em mim junto com ela. Mas a vida quis recompensa pra tamanha alegria. Cobrasse de mim? A vida é pessoa ingrata com olho gordo. Pagamento veio aos poucos, lento como o arrastar dos anos. Minha filha fez que um dia pegou birra de não falar. Mania de mula quando empaca no meio da estrada. Ficava com os olhos obrigando adivinhação de tantos mistérios. Eu sem entender o que era naquela cabecinha. Depois, zangou mesmo foi com o de comer. E foi que foi que definhava dia-a-dia. Das Dores queria era só ficar consigo, desfiando pensamento. Quietinha no seu canto, carecia de mais nada não. Ela era o só dela.

         Manhã veio pra dar cabo das tristezas. Agora, passava aos braços ásperos da agonia. Das Dores tinha sumido. Nem rastro de esperança. O fato achou-se como a morte. Meu lamento pela filha que veio de mim e foi pra onde nem sei que foi. Eu também sumi.

         Ocupação? Devoção ao chorar. Ter chorado as águas pra satisfazer toda esta gente. Nhá das Dores, me arruma um tanto dessa água pra matá a minha sede? Pode não, fia. A água servia só pra refletir. Mirasse nela a mãe mais carcomida a cada momento? Mais cheia a lata, passados da vida. Lá ia junto de derramar, a imagem bem mais próxima da origem. Pelos olhos, acabar por dentro. Restava nada pouco agora que continuasse pelo que era antes.

         Maria das Dores ajoelhada no chão em prece, rogava ao ser que primeiro lhe acudisse uma oração só por ela compreensível. Regava há muito a lata d’água com o seu pranto, sem fraquejar um único instante. Não havia velhice tal que a dissuadisse de perder-se em si própria.

Mas a lata um dia se encheu de todo. E, desta forma, transbordou. Alagou o pequeno quarto da filha das Dores, inundou a casa, tomou completamente a cidade. Aquele foi o verdadeiro dilúvio antevisto por Noé. Sozinha, Maria enfrentava em vão as correntezas dos seus desatinos. A lata d’água, origem de grandiosas torrentes, não poderia mais, ela solitária das demais, conter a força do que existiu um dia e ousava manter-se em continuar. Veio um vizinho. Veio outro também. Vieram todos com suas latas de propriedade cada um, para somar uma empresa já, de início, vitoriosa.

O povo ia crescendo na comunhão. A água foi-se indo. Contradição do destino foi observar nas pessoas o regozijo do aproveito de toda aquela água. Por ventura, a seca bestializava mesmo os seres? Não, era pura satisfação de eles se derrotarem a si próprios, auxiliando Maria das Dores.

Lata d’água na cabeça, lá se foi a prisão do eu no eu, a opressão do passado insurgido na fraqueza de apenas estar. Lata d’água na cabeça, Maria das Dores voltou para casa, bem como todos os outros, e encontrou coisa nova de, com efeito, se admirar. Ajoelhou pela última vez ao pé do berço e pôs-se a chorar. Um choro que todos desta vez puderam deleitar. E a oração também não se fez mais como que somente por ela. Pois a filha das Dores, ressurgida no milagre sem medo de nós, retomava o leito resistente à intemperança dos destinos, num sono extático que nem o tempo com a sua foice inexorável poderá sequer tanger.

 

 

A CASA

 

Quando o transporte parou, desci eu única, sozinha. Durante toda a viagem, satisfez-me por completo somente a companhia dos cavalos. Pedi-lhes, ao partirmos, que me levassem para onde eles achassem que eu deveria ir. Agora, havíamos chegado. Senti uma poderosa agonia revirar os mais obscuros pontos da minha mente. Sentia muito medo. Medo da casa. Medo de mim. Mas medo também da chuva que cantarolava irritantes melodias.

A chuva sempre desejou revelar minhas formas. No colégio, eu era a menina que encantava a todos. Faziam-se disputas por beijos nunca concedidos pela minha boca em vão procurada. Guardava-me. Quanto deixei de ser? Por apenas vaidade de ter-me a mim própria. Afastava-os. Detinha-me. Desprezava-os, sim. E a chuva reconduzia-nos até mim. Não possuía a necessária força para vencê-la. Eu: espetáculo tão aguardado por eles. As gotas penetrando pela minha carne, descobrindo a minha armadura de não permitir ser tida. A chuva sempre me derrotou.

A casa estava ali. Cobrou-me em um só instante por todo o passado, por todas as dores, por todas as coisas que nunca se contentaram com o haver existido. Cada peso do imperioso concreto esmagava a minha débil alma. As janelas hermeticamente fechadas abriam-me para dentro. A sala vazia e apagada. O meu próprio caminhar não movendo. Se avançava, por entre as amarguradas paredes – você não nos vinha a muito – nada mais. Estancasse desamparada, toda eu. Esvoaçadas cortinas tentavam um abraço. Fingimento de mãe quando o filho já nem se foi ainda.

No porão, reencontrei as velhas correntes sorrindo suas lembranças. Ferro de insípido gosto. Era como que as marcas houvessem se desintegrado para aquelas sádicas serpentes. Os punhos não negavam o encontro, porém desacreditavam da necessidade de mais uma vez cederem ao capricho de eu me tornar contra mim. Quisera fosse diferente. O corpo era só para me castigar. E as lágrimas borravam o único que eu conseguia enxergar com a máxima luta subsistida na memória. Cá fora, alegrava com o intento. No profundo, morria.

O metal foi ao chão. Libertou-me. Elo por elo, diante elo, produziu música bastante finita. Vencia, enfim. Inanimadas, as algemas retomaram suas formas convencionais. Suspirei aliviada. Pelos vinte degraus matematicamente retangulares, conduzi-me, com destreza extrema, para o andar principal. Os cômodos, os quartos, o pavimento em sua amplidão. Aquilo se normalizava. Quiçá não se modificara em momento algum. Pura ilusão minha. Os arcos das portas sobejavam de sobriedade. As fechaduras, embora trancadas, ofereciam gentilmente as chaves dependuradas nos trincos. Pilastras, azulejos, as torneiras dos banheiros e da cozinha permaneciam paradas onde sempre estiveram. Troçavam das minhas outrora alucinações.

Apartando-me de uma casa de grandes dimensões, dois andares, portas várias e janelas gradeadas, com um jardim portentoso, cruzei a chuva. Apenas, gotejava linearmente. Pingos grossos, por demais incisivos. Todavia, pingos. Apreciei deleitada a sensação gelada que água me imprimiu. Molhava-me. Ao notarem a minha presença, pelo barulho na grama coberta de folhas secas da amendoeira, os cavalos relincharam. Acariciei-os, e logo silenciaram. Galgado o banco da charrete, tomei as rédeas nas mãos rijas, desfiz o nó, que há muito me aprisionava os cabelos longos e estimados, e guiei os animais pelas sombras inofensivas do caminho.

 

O MONTE DO ALPINISTA

 

         Galgada mais uma laboriosa reentrância daquele monte que se erguia para o além do humano, o alpinista descontraiu a face num sorriso de sobejante regozijo. Agora, faltava muito menos para o ápice. Olhando o abaixo, nenhuma sensação de temor, contrariamente a um comum mortal, lhe sugeriu a desistência. Não, porque era um alpinista. Um homem já de há muito intimizado com as alturas, com a vitória sobre os obstáculos e desafios que lhe impôs a perigosa atividade. O corpo, tal qual a mente e o espírito, fora bem preparado ao longo dos anos. Não possuía mãos, mas garras. Seus músculos eram as ligas do metal princípio sustentáculo da máquina poderosa. Todo destinado a ser aquilo e aquele que não houve ainda.

         Uma vez no sopé, disse a si próprio sim, conseguirei. E depois da árdua luta, estava quase a atingir. A felicidade já reinava naquele ser. Existiam duas razões para tanto, tão intrinsecamente ligadas, que pareciam apenas uma. Ele, porém, sabia com destreza distinguir cada qual de cada qual. No brilho de um olho, era o primeiro a chegar ali, no inacessível lugar. As pálpebras, em se abaixarem e levantarem, intensificaram o fulgor doentio e mostraram-lhe que outros alpinistas em infinitas gerações, mesmo num futuro demasiado distante, desde já, encontravam uma passagem aberta, o caminho traçado. Mas a dádiva deixada aos descendentes retomava a intensidade de sua realização pessoal: sim, ele era o primeiro.

         Algumas poucas rochas ainda o separavam do termo da missão. Nada de insuperável para o conduzir ao abandono do intento. Mesmo o corpo pesado. Enquanto a audácia o impelia, a carcaça repuxava. Era o preço do desvario. Embora notasse a insistência da tensão, em momento algum o fato o incomodou. Ao se entregar à escalada, a carga foi paulatinamente aumentando de existência. Fosse ele a origem do sobrecarrego, ou algo que trouxesse na mochila? Com efeito, e nem poderia. Sentia-se cada vez mais livre, cada vez mais leve. O fardo, na realidade, era a estátua, a qual carregava consigo. Uma promessa que fizera aos duvidosos de sua empresa. Vocês hão de ver daqui debaixo minha estátua figurar lá no cume do monte.

         E este, enfim, rendeu-se inteiramente à toda força do alpinista. Não havia dor. Não havia cansaço. Não havia sequer um suor a lhe banhar o rosto. Não havia, entretanto, a satisfação maquinalmente projetada. Estupefacto, o homem mirava à sua frente uma pequena aldeia, com moradias esparsas. Fazendo-se presente, o espanto saltitou do seu semblante e foi vagarosamente tomando abrigo no desconhecido povo, que já se aproximava. Por um rápido instante, dissolveu-se o frágil limiar entre os conceitos de invasor e invadido. O alpinista era ultrajado pelo simples fato de habitarem o monte que explorara, isto é, seu por merecimento. Aquilo era o resultado único do combate que travara. Possuía o monte, então. Não, qualquer outro que não fosse ele. A comunidade, todavia, superou o alarme e tentou com ineficácia uma comunicação.

         Decepcionado, o alpinista quis somente fincar a estátua no solo e retornar para de onde viera. A missão parcialmente havia se cumprido, não restava coisa alguma a ser feita agora, a não ser ir adiante e concluir o que prometera. Tomou, então, o monumento nos braços fortes e o arrastou até a margem do despenhadeiro. Com as próprias mãos, cavou um buraco, um tanto raso, pois a terra era muito consistente e resistia ao seu contato. Erigiu a figura, que, por seu turno, nem se manteve em pé por um efêmero piscar de olhos, desabando com o mesmo ímpeto com que fora arrastada na escalada do monte. Por três vezes tentou ainda o herói reerguer seu orgulho sobre o chão. Por três vezes, o mesmo chão renegou-o com ira. Merda! Essa terra torpe abdica da minha glória! Indignado, valeu-se da pá e da picareta estrategicamente guardadas por entre os pertences e retomou a escavação. Nem o velho aldeão lhe informando que ali se encontrava o cemitério, a casa dos mortos, foi o bastante para dissuadi-lo. Não era lugar disso.

         - Os mortos são nossos guardiães. Protegem a entrada de nossa vila há milênios.

         O alpinista riu-se das amenidades. Se os mortos estão mortos é porque já são mortos. E removia sozinho o túmulo que se revelava aos seus braços enlameados de um barro de intensa vermelhidão, quando finalmente reluziu a taciturna estátua. Estava sacralizada, desafiando o pequeno mundo manifesto perante a enormidade do monte. Agora, ninguém não mais a tombaria. Zombeteiramente, ainda se certificou  com um empurrão impresso à criação. Intacta. Os vilões calavam-se, silenciados pelo pavor de suas débeis almas. Um que se insurgisse contra o novo marco!

         De volta, as ovações foram as anfitriãs do destemido herói. Banquetes, festas e discursos de condecoração. Quero o tratamento mais solícito para este alpinista. Ele é o nosso homem. Os que o criticaram anteriormente se redimiam com apertos de mão em reconhecimento do sucesso. Não era só o tempo presente que lhe cortejava as façanhas. O poder se perpetuara. Dali para frente, pois, todos se curvariam com a máxima humildade possível sob a grandiosa estátua que somava a imutável dureza das rochas às suas dimensões. E todos, assim, passaram a denominar o monte tal como o Monte do Alpinista.