O BARRO NAS
MÃOS
(a Leo Frohwein)
Ontem,
Ontem eu fui ao seu túmulo.
Fui visitá-lo.
Parece que
Nem mesmo o tempo
Consegue passar.
Não há limo em sua lápide.
O chão ainda está nu.
Por isso,
Por isso, senti um certo alívio.
Podia haver algum engano.
Talvez eu que estivesse no lugar errado.
Por instantes,
Eu cheguei a até pensar
Que tudo, tudo.
Um pesadelo.
Talvez se eu voltasse
Para casa correndo,
Assim bem rápido,
Ainda pudesse encontrar
Você sentado na poltrona,
Cochilando de chinelas.
Mas o seu nome estava lá.
O seu nome estava,
Estava cravado naquela
Tábua desgraçada de pedra.
E tinha até gente,
Gente chorando por você,
Gente gritando o seu nome,
Gente sofrendo,
Gente,
Enfim,
Tanta gente, todas as gentes,
Menos você.
Então, coloquei um ramo de flores
Sobre o seu túmulo.
Mas o vento as soprou, levando embora.
E depois coloquei um poeminha que eu fiz
Sobre o seu túmulo.
Mas o vento soprou de novo, levando embora.
E, finalmente,
Não admitindo,
Não aceitando a derrota da memória,
Peguei uma pedra do chão,
Suja de barro,
Limpei-a com bastante cuidado.
Pronto.
Finquei-a, vitoriosa, na lápide.
Penso que até hoje
Ela deva estar lá.
Desafiando a insaciedade do vento.
O problema
É que também até hoje
O barro da pedra
Não deixa as minhas mãos.
E não há água
Que torne a purificá-las,
A fazê-las inocentes,
Como antes eram.
RETRATO DA
MINHA VÓ FAZENDO TAPEÇARIA
(a Gitel Frohwein)
Minha Vó
fazendo tapeçaria ali bem no meio de nós
Disseminando
história, voz e agulha se entretecendo.
Na bancada,
uma foto dos antigamente,
Ela e mais
nove irmãos, uma paisagem amarelecida.
Minha Vó
engraçadamente e a tela no colo
A tecerem
os casos e contarem-se pontos.
O desejo
dela só de um quadro
Na parede
do seu passado,
A foto
emoldurada para todos nós também.
Mas a foto
que nunca queria se transportar em tela.
Minha Vó:
os dedos carcomidos pela idade,
Todos
doídos apenas no resistir ao tempo,
Uma toda
própria história que doloria os dedos.
Mas ainda
assim, pessoa de insistência mágica.
Eis que um
céu da agulha da minha Vó,
Assim mesmo
à queima roupa, ela depois desagradada.
Avó, porque
desfez o céu, Vó?
É para
trocar de lã, sol muito forte, não me lembro
De um desse
em minha vida.
Horas a
fio, o dedo marcado pela arte,
Eis agora
um lago da agulha escorrendo pela tela.
Ela depois
desagradada.
Avó, e
porque desfez o lago, Vó?
É para
trocar de lã, água muito fria desse lago, não me lembro
De uma
dessa em minha vida.
Horas a
fio, eis uma ventania a balançar
Os galhos
das árvores, ela depois desagradada.
Avó, e
porque desfez o vento, ó Vó?
É para
trocar de lã, vento muito arisco, não me lembro
De um desse
em minha vida.
Mas Vó,
porque a senhora desfaz
Tanto isso
é só lã, Vó! É só a tela, não é?
Não tem
problema, é porque assim eu exercito os dedos.
Que a dor
maior fica para mais tarde.
DÉBEIS
ALICERCES
Há algo em
mim totalmente danificado.
Que sempre
me faz estar
Em
constante
Melancólico.
Um galho
podre
A
deteriorar os demais na copa sadia da árvore,
Ou mesmo um
fungo instalado na raiz.
E por mais
que volte atrás,
Que
redesenhe a minha trajetória,
Preencha
muitas das lacunas,
Refaça por
completo a minha história,
Sempre e
sempre torno a estar
De volta da
mesma forma igual.
Quiçá em
meus recuos
Não possa
tocar
No que há
de realmente
Sintomático.
Tal como se
o meu poder,
A minha
lembrança,
Só fosse
até certo ponto de mim
E não
alcançasse além ou antes,
Mas eu
acabasse
Toda a vez
me contentando
Com as
minhas limitações,
Julgando
ter encontrado
Aquilo que
é digno de reparo
E voltasse
a remodelar
Uma criação
sobre débeis alicerces.
MEMÓRIA DAS
COISAS
“Aí o homem sério entrou e disse:
bom dia.
Aí outro homem sério respondeu: bom
dia.
Aí a mulher séria respondeu: bom
dia.
Aí a menininha no chão respondeu:
bom dia.
Aí todos riram de uma vez
Menos as duas cadeiras, a mesa, o
jarro, as flores
as paredes, o relógio, a lâmpada, o
retrato, os livros
o mata-borrão, os sapatos, as
gravatas, as camisas, os lenços.”
(GULLAR, Ferreira. Ocorrência)
Não é
porque as coisas
Não falem
ou não escrevam
Que elas
sejam privadas de memória.
Na verdade,
elas são a própria memória em si,
Fósseis
perfeitos e inexoráveis,
A pedra que
está sempre
A
tropeçar-nos nos lugares
Para onde
nos dirijamos.
E o
silêncio das coisas,
Esse
silêncio milenar,
Esse silêncio
profético,
Somente se
faz por prenúncio,
Por uma
premunição resignada
Que muito
profundamente
Já sabe de
antemão
Que um dia,
dia cada vez mais próximo,
Nossa
lembrança se extinguirá por completo,
Quando nos
tornarmos tão senis,
De forma
aos signos, todos os signos,
Só poderem
evocar puros e simples
Sons
(grunhidos) de nossas gargantas.
Viveremos
então num imenso
Museu ou
parque arqueológico,
Local
repositório de uma história muda.
E cada
objeto será como uma fruta,
Que, ao
invés de sumo ou suco,
Oferecerá
de seu interior
Infinitas
recordações
Para
animais letárgicos
Que
julgarão tudo muito novidade
E
recomeçarão a ser exatamente o que foram
Há muito,
Antes de
seu esquecimento.
A ARTE DE
PENSAR SOBRE A PEDRA
Da pedra, o
coração
é um algo
que se oferece
e diz que
não.
O cerne da
pedra:
mais
sagrado
que o
próprio Deus,
que seria
mais sagrado,
se não se
permitisse
ser
nomeado.
O cerne da
pedra:
lugar onde
a mente
não
freqüenta, não visita,
embora a
língua
ainda
insista.
O cerne da
pedra:
indolente,
indiferente,
incutido
e por isso
mesmo
não aceitar
título.