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Totem Quebrado | ||||||||
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1 Inicio neste momento o relato de uma ou mais semanas, vividas por mim, de uma loucura intensa. Acredito já ter forças suficientes para conseguir este intento, apesar de encontrar-me ainda em estado de recuperação. Foram momentos terríveis, dos quais acredito, jamais esquecerei. Conto aqui, dentro da minha ótica os fatos ocorridos; ótica esta que pretende hoje, após duas semanas “desvendar” de uma forma retilínea, esses momentos de loucura, de confusão mental intensa; momentos de grande sofrimento e prazer. Momentos tão loucos, tão irreais e ao mesmo tempo tão sinistros, sérios e reais. Como relatar a minha sonolência de vida onde minha consciência desviou-se do seu meio fio caindo nas profundezas daquele mar de idéias tão próximas da desventura do ser doente, porém meu eu sustentado pela fé e pelo meu amor a vida deu-me forças, mesmo surgindo apenas em momentos de crucial perigo, para sustentar-me nas profundezas, sabendo que lá era um habitat provisório, passageiro do meu ser desagregado e mais que isso, soube sempre, desde quando me sintonizei com o grave problema de eu ter perdido o meu eu. Pelo menos aquele conhecido por mim, que a minha vida dali por diante, se eu conseguisse sair do ponto onde eu me encontrava para o meu verdadeiro eu, renovado pelos novos acontecimentos, seria outro, muito diferente do anterior, bem mais cheio de responsabilidades porque eu estava aprendendo muito; algo talvez que somente eu mesma pudesse relatar, porque minha preocupação com a verdade do ser humano sempre foi posta entre as maiores da minha vida, levando dessa maneira toda ela direcionada aos meus estudos; deixando minha vida conjugal ou meus casos amorosos em primeiro plano somente enquanto nutria meu eu, com a vivência do amor enquanto tal, seguindo em regra a filosofia de que seja eterno enquanto dure; já meus filhos não, esses sempre foram para mim minha grande responsabilidade, mais inclusive que os estudos, porém acabo hoje acreditando que eu poderia ter feito mais por eles... A educação como base para uma vida digna e verdadeira sempre foi minha grande meta a alcançar...Na verdade essa é uma verdade da qual acredito ainda mais hoje, a cada dia ela se torna mais consciente, o que realmente procuro é a educação mais apropriada para elevação da alma humana, onde o ser conhecedor de si seja alguém realizado e dono da sua própria vida que é de outros também; aquela educação onde o polimento seja extremo a ponto de não só eu amar o outro tanto quanto a mim mesmo, mas amar-me com educação e respeito assim respeitando o outro sempre...A dificuldade do polimento dentro de uma cultura onde o primitivo não só é exótico esteticamente, mas é vivido como formas de vida cabendo em si a violência como beleza e forma de expressão viável a uma civilização como a nossa. Deus que me perdoe, mas no meu entender isso é pura decadência da alma; minha ira é tanta quando, por exemplo, leio um jornal que minha vontade perde as estribeiras do polimento e torno-me cheia de indignação afetada pelo próprio veneno daquilo que gera a cultura dos desafortunados, então acabo por ser também uma desafortunada igual, por osmose, dentro de uma maldição imposta. Hoje sei que ninguém consegue fugir a regra, depois dos momentos de loucura que passei perto dos meus entes mais queridos, daqueles que eu mais confiava; sei sim, que eles assim como eu são frutos dessa sociedade tão primitiva em que o conceito de igualdade também é tiranicamente imposto como sendo verdadeiro as almas mais nobres; penso também que a maioria forma o consenso que é a adequação exata da moral de determinado povo vivida para a sua própria evolução. Qual do mais primitivo homem cujos vícios fossem demasiadamente grandes gostaria que alguém fosse melhor que ele próprio?Sua força da inveja e do ciúme, entretanto é maior que a do homem realizado e feliz que por sua vez não possui tantos vícios; com certeza nessa briga quem vai ganhar vai ser a inveja assim como todos os vícios morais; está bem que no fim da história quem ganha é sempre o virtuoso...Mas às vezes a história demora pra acabar, então nesse processo de desenvolvimento dessa história o virtuoso aprende que a igualdade em nossa sociedade é um fato e se iguala ou se submete ao homem invejoso, cheio de força venenosa e má índole. O que você acha? Pense nisso, será possível sermos felizes perto de gente invejosa...Acho que não, na verdade nem longe, porque os pensamentos dos invejosos perseguem sempre a fim de evoluírem, de receberem as dádivas do mais virtuoso e por isso justamente são mais fortes no momento da “guerra” por que almejam o ouro que é a virtude do virtuoso, ao contrário do virtuoso, que quer fugir do ser invejoso, a fim de não sofrer o martírio da inveja do outro ser que se diz seu igual ou superior, porque a evolução do invejoso dentro dele diz que deve ser assim; então assim caminha a humanidade...Tudo isso pra dizer que a aprendizagem que eu tive nesses fatídicos dias com meus familiares tenha sido talvez a que mais realizei na minha vida, porque através deles pude sentir mais de perto o ser humano; por isso agradeço por ter recebido de volta minha vida e poder hoje novamente simplesmente ser. 2 Havia seis meses que eu dera a luz a uma linda menina chamada Eva; minha vida desde que engravidei foi direcionada a este fruto que guardava em minhas entranhas. Passei por momentos de intensa solidão, aprendi a viver só, eu e ela, que na verdade éramos uma; Eva nasceu e eu me apeguei a ela com todas as forças do meu amor. Pouco saíamos de casa, a não ser para irmos ao pediatra ou passearmos no quarteirão de casa. Meus filhos mais velhos tratavam-na com muito carinho e a nova empregada também. Eu, entretanto tentava evitar que Eva fosse o centro das atenções, dirigia então a todos o mesmo amor que era dirigido a ela, uma afeição ímpar, assim sentia-me bem, confortável, feliz; evitava, porém pessoas que de alguma maneira modificassem este meu estado de atenção e afeto. Houve alguns momentos durante esse período, em que senti uma certa falta de equilíbrio, em que aquela felicidade tão grande era afetada por algo que vinha do exterior e que eu tentava, mas não sabia evitar, minha testa turvava, meu peito doía profundamente e eu não podia suportar. Recorri então aos exercícios de psicodrama que havia aprendido nas seções abertas de psicodrama que freqüentei durante a gravidez: trancava-me no quarto ou no banheiro e gritava toda minha dor até expurgá-la de meu peito, ou então cantava bem alto uma música qualquer, tentava drenar assim minha dor que era um ódio de nada, um ódio sentido, simplesmente sentido. Voltei a freqüentar o terapeuta que visitei até o quinto ou sexto mês de gravidez e voltei também a ter uma certa paz, transcendia as dores de alguma forma, podia perceber de maneira ainda tênue de onde vinham “aquelas energias" fortes e nocivas. Assim começava a entender aqueles sentimentos que chegavam fora de hora e me deixavam num estado de dor e ódio. No entanto minha vida parecia correr bem, eu estava feliz por Eva e não deixava que nada de ruim pudesse mudar aquele meu estado amoroso d'alma, apesar dos problemas que surgiam e da necessidade dos exercícios de psicodrama. Fui também demitida da faculdade que lecionava por problemas de ordem política; eu estava voltando da licença por causa da gravidez e os alunos estavam em greve por causa da demissão em massa dos professores de humanas, eu por minha vez era também professora de humanas, dava aulas de filosofia, mas somente acompanhei o caso durante as aulas que eu ministrava aos alunos que furavam a greve e iam as aulas assim como eu. Eles me contaram que os professores da área de humanas foram os fundadores do centro acadêmico, que haviam lutado por isso durante o meu período de licença e quando finalmente conseguiram foram demitidos deixando os cargos do recém formado centro aos professores de biomédicas que tinham ideologias opostas. Acredito que eu tenha sido demitida também porque eu como professora de filosofia analisava e argumentava muito sobre a situação da greve e provavelmente alguém viu segundas intenções nas minhas observações e me dedurou; fui também demitida. Nessa mesma época capotei o carro que havia ganhado de meu pai e que não possuía seguro. Foi assim: eu, meu irmão e ex-cunhada fomos pegos de surpresa por uma Kombi quando eu no volante estacionava o carro para entregá-lo a meu irmão que parecia tenso; eu não sabia se pelo modo como eu guiava ou por motivos pessoais relacionados à situação com sua ex-mulher que se encontrava no banco detrás; eu havia prometido para mim mesma que não entregaria mais o volante para ele, que eu mesma iria guiar o meu carro, eu havia acabado de tirá-lo do mecânico, mas percebi que esta minha decisão naquele momento talvez não fosse a ideal “um clima no ar tão desagradável”.De início achei que uma boa música poderia melhorar o astral, mas o clima tenso superava a musica, então para amenizar aquela situação resolvi não levar adiante minha promessa e perguntei a meu irmão se ele preferia guiar, ele me disse que sim e quando eu tentava estacionar no acostamento que se encontrava entre as duas pistas de mãos contrárias, quando tentava cruzar por isso da direita para esquerda indo ao acostamento fui pega de surpresa pela Kombi branca que surgiu sem que eu a visse, de repente, num piscar de olhos nos batendo em cheio; a Brasília recém saída do mecânico deu três cambalhotas, das quais contei uma por uma acreditando que poderia me machucar feio ou até mesmo morrer; mas Graças a Deus nada aconteceu de grave, somente meu irmão se machucou na testa, com um pequeno corte; mas tive perda total do pequeno carro velho, não sobrou nada da tão querida Brasília. Fiquei desse modo a pé e desempregada e agradeci muito a Deus por Eva não estar conosco senão seria com certeza fatal para ela. Em estado de recuperação do parto, cuidava do meu corpo fazendo ginástica; já começava a sentir falta dos amigos, de viver novamente uma vida normal. Os problemas aos poucos se resolveriam, pensava feliz... Nem mesmo o fato de Marco, pai de Eva, não tê-la ainda registrado me abalava, neste momento de minha vida, no íntimo sabia que tudo correria bem, que logo o pai apareceria para registrá-la. Algo, porém começava a me preocupar; minha família, meus pais e irmãos passaram a questionar minha situação, pareciam não estar mais me entendendo, eu tentava fazê-los perceber que tudo estava bem, que tudo iria se arranjar, mas não adiantava, havia muitos senões e na verdade eles pareciam não estar aceitando algo que eu não sabia exatamente o que era, não me tratavam mais como antes e eu preferia não me dar conta, que algo terrível estava realmente prestes a acontecer e que na verdade já estava acontecendo.De início pensei que eles estavam preocupados com minha situação financeira, mas eu não dependia financeiramente deles a não ser do imóvel que eu morava; apesar de ter perdido o emprego eu ainda recebia pensão do meu ex-marido, pai dos meus filhos mais velhos e também estava por receber a bolsa da pós-graduação que eu pretendia dar continuidade aquele mesmo ano, fora a pensão do pai de Eva que logo eu haveria de receber também pois ele havia me prometido antes mesmo dela nascer. Sabia desde já, no meu íntimo que eu os estava perdendo, mas por acreditar fortemente em meu coração sabia também que meus passos eram certos e que eu deveria naquele momento deixar tudo nas mãos de Deus que para mim estava instalado confortavelmente no meu ser feliz. Nada poderia tirar, pensava eu...Aquele transbordante estado d’alma cheio de plenitude e paz que me assolava; nada, nem mesmo aquelas dores insuportáveis que por vezes me afligiam. 3 Às vésperas de Natal viajamos para o litoral eu e meus filhos a São Cristóvão na casa de meus pais, a fim de encontrar-nos com toda família. Foi lá que gradativamente fui tornando-me uma louca mesmo, quase que assassina. Ao chegarmos um ambiente tão natural: muitas árvores, um céu maravilhoso; o mar pequeno limitado de um lado por uma ilha e do outro por uma praia de areia branca e fofa. As ruas sem asfalto do pequeno local remetiam-me a um tempo primitivo e distante; um ambiente rodeado de montanhas altas e verdejantes que contrastavam em vista a um céu de intenso azul. As cigarras e os morcegos noturnos livres para cantarem e voarem respectivamente, tudo isso trazia à tona uma atmosfera mística quase irreal. O bairro de São Cristóvão, onde meus pais moravam chamado Praia dos Sete laços enfeitiçava-me fazendo com que meu amor por Eva transbordasse. Sentia que meu coração vibrava de encantamento, e lá na casa de meus pais sentindo-me à vontade não escondi meu estado d'alma, ao contrário pensei de início que eles poderiam compartilhar comigo deste sentimento pleno que me evadia... Meus pais compraram essa casa quando a filha primogênita separou-se, a fim de distraírem essa irmã e seus filhos. Logo depois acabei eu mesma me separando, em seguida minha irmã do meio e por fim meu irmão mais jovem. Todos os quatros sós, porém com seus filhos, sendo que Eva minha filha mais nova era de um segundo relacionamento do qual eu havia também terminado e estava convalescente. Nossos pais inconformados, principalmente nossa mãe, refugiaram-se na Praia dos Sete Laços, deixando para os filhos e netos três apartamentos na capital. Somente Solange, a irmã do meio possuía condições de manter-se nesse momento em seu próprio apartamento sem a ajuda de meus pais. Nas vésperas de Natal a casa da praia estava cheia. Eu e meus filhos: Laila, Cássio e Eva; Solange, a irmã do meio e sua empregada Alice; Matilde, a irmã mais velha acompanhada de seus filhos Ricardo, Reinaldo, Soraia e Leda, a velha cozinheira Marieta e meus pais. Ainda esperávamos uma tia, primos e nosso irmão e sobrinha. Eu estava feliz, com saudades da família e da praia. Levei comigo meus apetrechos de pintura e entreguei-me àquele mundo natural, ao suposto colo familiar. Dei-me mal, muito mal. De início tudo parecia bem, sentia-me à vontade. Logo que cheguei tentei ponderar com minha mãe e minha irmã mais velha Matilde a possibilidade de eu ocupar com minhas filhas o quarto com cama de casal, isto porque eu estava amamentando Eva e o outro quarto vago estava muito empoeirado e sem camas; isto porque a casa estava em reforma e as acomodações eram realmente precárias. Matilde muito nervosa parecendo ressentida não aceitou de forma alguma e minha mãe quieta assentiu com a cabeça para Matilde; chegamos a discutir, pois eu não via possibilidade de cuidar de Eva tão nova em condições tão precárias; impotente eu acabei concordando e ficando no quarto empoeirado e sem camas, senti-me, no entanto bem, quando acabei de arrumá-lo: acomodei quatro colchões estendidos no chão, um bom ventilador. Tudo estava bem. O quarto com cama de casal ficou então reservado para tia Valéria e seus filhos que logo chegariam a fim de passarem o Natal e o Ano Novo conosco. 4 Desde criança, nunca havia percebido o alcance das minhas palavras, o quanto elas ofendiam e maltratavam o coração de todos os meus familiares. Quando solteira, na época em que morava com meus pais, sempre me sentia só, com o coração apertado e a voz sufocada. Nunca era eu mesma, algo me impedia, na verdade eu não podia; por vezes, já na adolescência, quando me sentia demasiadamente reprimida eu era rebelde e mal educada chegando a extremos, minha mãe algumas vezes chamava o médico que era nosso vizinho e que sempre me receitava alguns calmantes, outras vezes, nesses acessos, meu pai me socorria procurando-me acalmar com palavras de consolo dizendo que eu estava certa que eu tinha razão de sentir-me daquela forma e que eu devia me acalmar para o meu próprio bem, até que por fim eu melhorava. Mas nunca me sentia amada verdadeiramente; perto de minha mãe sentia-me mais à vontade pelo menos na infância, envergonhava-me às vezes na presença de meu pai acreditando falar besteiras, sentia-me uma criança boba mesmo. Minha mãe achava-me bonita e isto me dava uma certa segurança. À medida que me tornava moça passei a me entender melhor com meu pai e com minha mãe as coisas mudaram, ela mudou a maneira de me tratar, antes tão dedicada, na verdade ela sentia um certo ciúme de meu pai em relação às filhas moças e não sem uma certa razão, ao meu entender, pois meu pai por nos amar demais, perto da gente parecia não a ver, por este motivo, eu nunca me sentia realmente bem perto deles. Já Solange, a irmã do meio, sempre foi ciumenta e maldosa, mas eu a amava muito mesmo assim. Quando era jovem ela era bela e por isso éramos amigas, pouco mal ela podia me fazer. Ela um ano mais velha que eu, era mais olhada pelos rapazes; eu não me importava com isso, ao contrário sentia-me orgulhosa dela. Andávamos sempre juntas. Algumas vezes eu soube que ela havia feito uma ou outra intriga a favor de suas amigas contra mim em relação a um amigo ou namorado meu, mas eu não ligava muito, já havia me acostumado e afinal ela era a única em casa que me dava uma atenção que eu considerava verdadeira. Às vezes, porém eu reclamava a meu pai da forma maldosa que Solange me tratava, mas ele não me dava muita atenção e me dizia que eu era ainda criança e que ela não fazia nada por mal e uma vez irritado, sem paciência comigo, chegou a me dizer que eu parecia querer ser sempre a vítima assim como minha mãe o que me deixou em prantos, mas acabei concluindo que ele disse isso para me fazer ver o quanto ainda eu devia crescer, para que eu pudesse adquirir forças para resolver os problemas que fossem surgindo na minha vida. Eu sempre considerei meu pai um homem sábio, mas naquela época eu ainda não podia direito perceber o alcance de suas palavras e hoje ressentida ainda com os acontecimentos da praia dos Sete laços, acredito que sempre fui vítima sim; deles. Porque naquela época, sentia-me profundamente desrespeitada, por ser diferente deles, ingênua e tola acreditando que eu podia me entregar e ser eu mesma. Minha irmã mais velha era distante, pouco nos relacionávamos, no entanto eu a amava e a entendia. Depois do fracasso do seu segundo casamento ela se tornou muito dura e fria e nós nos distanciamos pouco a pouco completamente. Meu irmão, por sua vez, sempre foi meu amigo, parecia gostar de mim, nos momentos difíceis ele me apoiava, ele o caçula da casa sempre foi o centro das atenções de todos, inclusive das minhas, até que ele se casasse; depois do seu primeiro casamento tudo se modificou. Na verdade tudo mudou com o passar dos anos, aquele perfil antigo familiar, aquele que eu havia aprendido a conhecer durante os anos de minha infância e adolescência e que por pior que tivessem sido me davam a segurança de ter uma família. Nesses dias que passei em São Cristóvão, na praia dos Sete laços, tudo mudou. Hoje sei bem mais sobre eles, talvez por saber mais sobre mim,... Esses fatídicos dias foram cruciais para que eu pudesse finalmente me libertar das "amarras familiares"; sei a realidade de cada um deles, seus mínimos e mais perversos segredos. Por isso quase enlouqueci, quase não agüentei a barra. Eu, o filtro de todos eles. 5 Nós tínhamos que nos manter num fio muito suave de vida, para que todos vivessem, para que eu não caísse em crise, para que o mundo não acabasse. Uma tragédia vivida por todos nós. A única a expressar essa tragédia num teatro vivo fui eu. Quase morri. Tanta hipocrisia, tanta dor: uma necessidade real de morte. À tarde de Natal se passou, Matilde e Júlio meu irmão, voltaram para São Paulo. Ficou em São Cristóvão na casa de praia; Solange, Eva, Cássio, Laila e alguns sobrinhos, fora eu, meus pais e as funcionárias. Tudo estava bem, o Natal havia passado tranqüilamente. Alice, a empregada de Solange ajudava Marieta com os afazeres na cozinha. Meu pai sempre na biblioteca, com exceção das horas do almoço, lanche e jantar. As crianças maiores brincavam quase todo o dia na praia. Minha mãe pela casa sempre ocupada também com os serviços domésticos. Eu passeava com Eva, conversava com Marieta, às vezes estudava, pintava ou mesmo ficava na biblioteca fazendo companhia a meu pai, evitava, porém Solange que não desgrudava os olhos de mim, sem nada falar.Essa irmã passava por uma fase de recuperação psicológica, há pouco havia tentado se matar: vivia em estado de alcoolismo, porém estava melhor, mas parecia querer comer-me com os olhos, o que me incomodava muito. Eu por minha vez escondia-me dela na cozinha com as empregadas, ou estava entre as crianças: tudo caminhava relativamente bem. Meu pai, por sua vez, parecia preferir a companhia de Solange, acredito que fosse por causa de seu estado, mas isto de alguma forma me retraia, sentia falta da família, então para me alegrar e distrair comecei a pintar, a olhar para beleza da natureza local. Minha mãe parecia estar triste e achei que ela devia estar se sentindo assim como eu; na verdade eu estava bem triste também, um sentimento começava a absorver minha alma lúcida e branda, por motivos que eu não me dava realmente conta. Uma certa tristeza me evadia, e se eu fosse verificar racionalmente o porque, acharia motivos que outrora eu não daria importância, neste momento, entretanto, enchiam-me de uma carência inexplicável. Sentia-me cada vez mais sem espaço dentro da casa de meus pais, do meu suposto colo familiar; minha alegria anterior refugiou-se apertada para algum canto do meu ser. Minha filha Laila parecia atenciosa comigo, nas poucas vezes em que ela estava na casa, apesar de sua pouca idade percebia o meu estado de ânimo, talvez por me conhecer melhor, sabia que eu estava caindo e que eu precisava de ajuda para que não despertasse em mim aquele pensamento abissal, em que a tragédia logo se transformaria em realidade. Ainda menina e linda, Laila, de muita personalidade, não se importava com os olhares maliciosos das tias e muitos menos com as brincadeiras do avô, ao contrário com a voz meiga sabia agradar a todos, inclusive minha mãe que se alegrava também com a sua presença. Cássio, por sua vez, por possuir muita sensibilidade já começava a entristecer-se por mim e fugia do avô que não perdia uma só oportunidade para implicar com ele; eu por minha vez tomava as dores de Cássio e ofendia-me, sem, entretanto nada falar, mas Solange percebendo em mim certa aflição, apoiava meu pai nas brincadeiras a fim de me tirar à tranqüilidade. Acabei então me retraindo, ficava em meu quarto com Eva, sentia-me então num mundo à parte, cheio de amor e felicidade, arrumava o armário, colocava as coisas em ordem, enquanto Eva no chão, entre seus brinquedos brincava tranqüilamente; seus bichinhos de pelúcia espalhados, no colchão, remetiam-me a um passado próximo, relembrava assim nosso canto na capital onde éramos felizes. Saia do quarto então para assistir televisão, pouco conversava a não ser com as empregadas que pareciam sentir-se bem ao meu lado e de Eva. Minha mãe, por sua vez, parecia sentir uma certa irritação toda vez que eu me entretia com meus pincéis e tintas; deixei por isso de lado a pintura... O interessante era que antes de Eva nascer eu suportava essa maneira arisca que minha mãe tinha algumas vezes de me tratar, entretanto naquela situação eu não podia suportar, sentia-me penetrada por um ódio, uma aspereza tão doentia que era impossível me conter; começava a sentir vontade de gritar de desabafar aquele mal estar tão grande adquirido naqueles poucos dias em que estava na praia dos Sete laços. A cozinheira Marieta, tão querida foi embora passar o Ano Novo com os seus chegando em Sete laços tia Valéria, minha tia mais jovem, por parte de mãe, acompanhada por seus quatro filhos, Matilde que retornara da capital a fim de passar o Ano Novo conosco e Júlio nosso irmão caçula que também voltava para festejar o Ano Novo. Leda a filha do segundo relacionamento de Matilde, e Anita filha única de Júlio estavam em Sete laços aos cuidados de minha mãe; as duas um pouco mais velhas que Eva, brincavam juntas e eu algumas vezes tomei conta delas com todo carinho e amor, o mesmo que dispensava a Eva eram transmitidos as duas sobrinhas das quais eu também amava, preocupava-me em cuidar das crianças, alegrava-me em estar com elas e poder participar de suas gracinhas e brincadeiras. 6 Aquelas lembranças... Hoje após duas semanas na capital, acredito já na minha capacidade de ter uma vida normal, fica mais distante a lembrança daqueles dias em que vivi fantasias, vivenciei sonhos, num mundo real, em que meus pés encravados no chão, principalmente o direito, situavam-me perto de mim, porém distante, tão distante. Foi preciso arrastar-me como um verme, andar torta para que eu pudesse viver. Meu pé tão pesado, acorrentado mesmo pela força de uma "raiva"; força essa que minha mãe aconselhava-me a vivenciar dizendo-me que era a força "da direita", da vida; a única que poderia nos fazer viver na realidade e não nos sonhos, a força dos sonhos ao seu ver, essa sim era perigosa. Logo que cheguei na praia dos Sete laços, dentro da casa dos meus pais um pedaço do céu. Eu acordava toda manhã ao som dos pássaros, o céu aberto parecia gerar um clima de paz intensa. Dentro do nosso quarto com Eva e Laila sentia-me leve, um bem estar tão poderoso, tão irreal, tão vivido. Minha mãe na cozinha era simples, eu podia sentir, tão simples quanto a terra e meu pai quieto, sentado na sala era alto, tão alto quanto o céu. Tudo era perfeito, um clima de sublimidade encantava minha alma feliz. Sentia-me bela, feliz e cheia de simplicidade aberta para transmitir tudo o que sentia aos meus entes queridos, podia e tinha certeza disso; transmitir a quem quisesse esse estado de felicidade, de alma. Mas aos poucos comecei a ver coisas terríveis, das quais era necessário lutar para combater, não só não podia transmitir felicidade, como aos poucos ia perdendo a minha própria. As pessoas transfiguravam-se e comecei a vê-las no meu entender, como elas realmente eram. Solange transfigurou-se em Gorgona ou algo parecido, mito lendário, uma bruxa malvada que transformava quem a olhasse diretamente nos olhos em pedra, eu devia evitá-la ao máximo , devia desviar-me do seu olhar assassino, que me cegava e me torturava a mente; Solange atrapalhada era toda estapafúrdia, perseguindo-me como uma caça, traiçoeiramente me surpreendia dirigindo-se a mim com cobranças de todos os tipos. Matilde por sua vez, devia ser a “cabeça”, sábia e extremamente ciumenta e perigosa: não era capaz de olhar-me de frente, sempre curvada olhando para os pés assim escondia suas terríveis intenções, uma bruxa ardilosa que acabava por me reprimir, retirando de mim minha inocência, espontaneidade e alegria; obrigando-me a ser como ela ou submeter-me a sua força de filha primogênita que exercia de certa forma o comando familiar. Começava a perceber onde havia me metido e que de lá seria difícil sair, eu não podia contar com minha mãe que oscilava entre às vezes ser santa e outras o próprio demônio. Nada tinha coerência de acordo com a minha forma de encarar a vida, em que a alegria, a simplicidade, o trabalho natural e espontâneo, a relação amigável e verdadeira entre as pessoas, principalmente entre familiares seria normal; não, não podia ser verdade! No entanto aquela realidade confirmava-se a cada momento.Meu pai não participava diretamente deste contexto fantástico e terrível, sempre estudando, nas poucas vezes, em que se encontrava com todos, a situação mudava, ele era o centro das atenções, contava casos interessantes, conversava muito e era reconfortante saber que pelo menos ele era um ser normal; entretanto no meu delírio em alguns momentos ele se transformou em Zeus, o justo e bom deus dos gregos, nele eu via uma saída possível para os meus infortúnios, eu sabia que devia convencê-lo das minhas convicções, devia mostrar para ele que eu não estava ficando louca como todos pensavam ou gostariam que fosse; haveria meu Deus! Uma saída plausível...Pensava... Afinal Deus não poderia ser tão perverso! Eu que possuía tantas qualidades, pelo menos eu acreditava nisso... Deveria então me agarrar com todas as forças, naquilo que eu acreditava ser verdade, para não desaparecer o meu eu, as minhas próprias convicções, para que eu não me fragmentasse e acabasse de verdade completamente louca; por isso eu, Afrodite, a deusa do amor, com minha força do amor e da beleza iria vencer. Era uma guerra e eu haveria de ganhar para poder sobreviver, que a força de Deus me invadisse e com sua sabedoria eu pudesse vencer a racionalidade de Atena, que no meu delírio trágico era Matilde e que Réia minha mãe pudesse através da sedução do meu amor compreender-me. Apolo, meu irmão também poderia ajudar-me, porque eu sabia que a única grande inimiga de Afrodite, a que nunca seria por ela seduzida era Atena.O maior perigo, entretanto era sua influência em meus pais e nesse momento em Solange que por estar passando por um período ruim não aceitava minha felicidade, meu irmão apesar de me amar sempre foi seu grande aliado. Meus pensamentos turvos e meu pouco conhecimento de mitologia faziam-me viver devaneios e loucuras que o meu ser consciente jamais aceitaria; vivenciava o meu inconsciente retalhado por fantasias e imaginações que surgiam não de uma fonte racional, mas de um campo inexplorado até então por mim, completamente desconhecido, que fluía das circunstâncias absurdas que eu estava vivendo na casa de meus pais. Esqueci-me completamente de Eva, acho que a entreguei para minha mãe, não sei na verdade a quem entreguei minha pequena filha, não tinha mais condições de cuidar dela; momentos existiam de consciência então eu a pegava, mas vinham tremores dentro de mim e uma excitação intensa fazia-me largá-la por medo de machucá-la interiormente, da mesma forma que meu coração sangrava de dor, martírio, excitação intensa. Eu não podia mais tratá-la do mesmo modo que antes, eu quase já não tinha mais controle das minhas atitudes e dos meus pensamentos, um fio tênue de consciência por vezes surgia no meu pensamento e me direcionava, outras vezes me punha a rodopiar frente a meu pai, na sala e não conseguia falar nada; não tomava mais banho e meus cabelos começavam a se encarapuçar na cabeça. Laila uma vez em que me viu nesse estado me colocou na banheira e me banhou acariciando-me a cabeça e me reconfortando. 7 Naqueles dias. Durante todo o dia algo me penetrava, algo ruim que eu não sabia direito de onde vinha, a ponto de me transtornar... E me transformar num monstro...! Pensava então que seria a força da raiva de Matilde: minha intuição fazia-me crer que era Matilde que não suportando minha felicidade, por inveja odiou-me a tal ponto que me transformava num ser monstruoso; Solange por sua vez compartilhava com Matilde do mesmo sentimento; ela não era, entretanto a autora principal. Em meu peito um som boi-bumbá, boi bumbá, tão forte, tão forte! Era preciso gritar com todas as forças do meu ser contra o ódio, contra a maldição que se apoderava de mim. Nas primeiras vezes em que gritei, em que não suportei a dor, fui socorrida por tia Valéria, que ficava tentando tirar "o mal” de mim. Rezava muito e me benzia, mas era em vão, eu por minha vez também tentava rezar, mas a loucura aumentava, e meus pais estagnados me olhavam friamente como se nada estivesse realmente acontecendo, nada falavam, e aos meus olhos acontecia o contrário do que seria normal dentro de uma família cujos entes se amam, minha loucura transformava minhas irmãs que pareciam regogizar-se com toda situação. Minha aparência tornava-se cada vez mais desleixada e eu muito confusa; meu medo aumentava e mais intensa tornava-se aquela força que me assolava; quanto mais eu lutava contra ela, maior ela parecia ficar; perdia o ar, minha alma arrepiada me trazia uma sensação de asco que parecia vir de meu irmão, como algo que interiormente me arrancava pedaços, uma sensação de um nojo tão profundo, um som de quiasco, quiasco... Escutava isso mentalmente e no meu peito um ódio excitado de quero mais, quero mais, quiasco, quiasco, quero mais, quero mais, o próprio demônio em mim pensava. Como suportar? Pedia a Deus força, quase sem fé, apenas um fio tênue de consciência e ajoelhada em meu quarto sobre os colchões estendidos no chão, pedia forças e quase que com o coração seco, não conseguia mais chorar. Uma tragédia vivida pensei, lembrava-me das aulas de filosofia quando estudava a tragédia no “Nascimento da Tragédia” de Nietzsche e então esperanças novas surgiam no meu peito trêmulo, dilacerado. Em alguns breves momentos, porém encontrava-me bem; momentos em que acreditava enfim ter superado aquela força maligna, pois tinha em mim, dentro do meu peito a certeza do meu amor pela vida, pelo mar, pela natureza e pelos meus filhos. Nesses raros momentos encontrava respostas na natureza; corria para o mar atordoada e pedia a Iemanjá que significava para mim a força do mar da qual aprendi a amar; sua simbologia remetia-me a força do amor de Poseidon, de mim mesma e bem dentro do meu ser uma resposta “alta" e “lenta" então por alguns segundos tudo parecia se normalizar. Nesses momentos pensava em meus filhos, principalmente em Eva e sentia-me forte, capaz de suportar as maiores penitências. Acreditava então no fundo de minha alma que deveria mesmo passar por tudo aquilo, que um dia eu ficaria boa e feliz novamente. 8 Logo que meu irmão Júlio retornou a casa em Sete laços contei a ele minha tristeza, desabafei minha situação de forma pitoresca, não possuía muita lucidez, estava emocionalmente abalada e chorava muito, entreguei-me a ele acreditando que ele seria a minha salvação: ele calmamente disse-me que eu devia entender nossos familiares, e que eu devia ter calma... Na verdade sempre tentei compreendê-los e percebo hoje que foi preciso não entendê-los para poder realmente sabê-los e talvez a mim mesma. Sem muito envolvimento deixou-me só e foi para varanda reunir-se com meus pais e irmãs que estavam lá conversando muito, rindo... Pensei que a vida continuava para eles, eu, entretanto estava só sem que nenhum deles se preocupasse comigo, pensava, ao contrário, eles pareciam estar mais felizes do que nunca. Será que eu não existia para eles , seria normal o que estava acontecendo comigo? Porque meu Deus! Porque eu havia ido para lá, Pensava e chorava... Minha liberdade havia me deixado, e não podia dar sequer um passo, meus pés estavam presos, eu estava tornando-me uma louca. Meus pensamentos confundiam-se e uma vertigem tomava conta do meu íntimo. Apesar de tudo, dos meus pensamentos, ou mesmo do que via ou pensava ver, tentei acreditar que os meus primeiros momentos de “loucura” não teriam sido tão terríveis e que tudo poderia voltar ao normal, tentava agir espontaneamente, esperando dar a eles a impressão de que depois da conversa com Júlio, eu havia melhorado, forçava-me a acreditar nas palavras de meu irmão achando que ele poderia realmente me salvar daquela situação detestável; eu sabia, no entanto que sua ex-mulher, exuberante e má, amiga de Matilde, da qual ele havia se separado recentemente, nutria grande inveja e revolta por mim, motivos pelos quais, inclusive não gostava que eu me aproximasse muito de sua filha, parecendo mesmo, no meu modo de ver, nutrir um certo grau de desconfiança a meu respeito; mas na verdade eu seria incapaz de algum ato de maldade com alguma criança, principalmente com uma sobrinha e Júlio apesar de me amar, ou pelo menos sempre ter demonstrado isso, parecia já há algum tempo, acho que desde o nascimento de Eva, desconfiar de mim também, talvez influenciado pelos maus sentimentos de sua ex-mulher, evitando que eu me aproximasse de Anita, mais que isso parecia competir com Eva. Eu também já começava há algum tempo não gostar do modo como ele olhava para Eva, sempre por cima, sem lhe dar uma atenção verdadeira, de tio, como sempre deu a Cássio e Laila; parecia estar querendo provar uma certa superioridade em relação a mim e a Eva ou ao meu amor, de mãe pra filha, não sei, talvez quisesse provar algo pra ele mesmo ou para os outros familiares, ele o caçula da família e também o único homem...Só podia ser isso...Ciúmes do meu amor por Eva...Ele parecia estar representando mesmo, como num teatro; na realidade todos agiam sem a mínima espontaneidade, representavam e mal... Pareciam olhar demais da conta pra Eva, assim como faziam comigo, me olhavam muito, sem amor e atenção, simplesmente me reprimindo, sem nenhum tipo de afeto; meu pai chegou a compará-la a um macaquinho, querendo ao meu ver agradar a maioria, que eram meus irmãos, pois ele sabia que eu o entenderia, como sempre o entendi, eu por minha vez, naquele momento ri da sinceridade de meu pai, acreditei ser uma maneira dele mostrar uma espécie de carinho, meio àquela situação tão formal, cheia de representações... Mas Matilde e Júlio mais que Solange ou outra pessoa qualquer da casa a olhavam de maneira diversa daquela que seria o normal entre tios e sobrinhos que se amam; havia sim algo por detrás que soava no ar, que eu podia perceber, como uma má intenção, algo realmente brutal como um sentimento de guerra que eu traduzia sentindo que eles queriam para eles aquilo que eu dispensava a Eva; o que me maltratava a alma, porque jamais podemos roubar o amor de maneira sincera e verdadeira, podemos sim compartilhar... Então concluía que eles não possuíam coração, porque qual o problema de uma mãe amar muito uma filha, e por isto eles me enlouqueciam, tirando-me daquele estado maternal em que me encontrava, fazendo-me o mal de ser possuída pela invasão de seus maus sentimentos...Jamais eu poderia perdoá-los, aquilo tudo me aterrorizava! Acreditava então estar louca, não era possível que meus amados irmãos estivessem agindo de forma tão estranha; seriam meus olhos. Estaria eu vendo o que não existia. Mas eu via e no fundo acreditava nos meus sentimentos... Pressentindo o pior, sabendo que não teria a quem recorrer, que eu estava só, estrategicamente fiquei a vontade, sabendo que estava lutando contra forças contrárias as minhas, acreditei que o fato de eu ter gritado vivenciando um teatro vivo, era fruto de meu conhecimento em psicodrama e que foi necessário para aliviar-me das pressões externas, e que na verdade estava colaborando com os problemas familiares, por este motivo eu não estava louca, e todos deveriam saber, por isto não me davam atenção... Ao contrário, me ignoravam e se sentiam, pelo menos pareciam, mais dispostos do que nunca. Porque então eles pareciam preferir a minha posição de louca a de filósofa ou terapeuta?Pensava... Deveria explicar para eles, detalhar meus conhecimentos até convencê-los, mas seria difícil, então calada apeguei-me a esta verdade, para poder continuar vivendo sem sucumbir. 9 Foi no ano novo! Foi no ano novo, exatamente à meia noite, no momento em que deveria abraçá-los para festejar a entrada do novo ano: depois de sentir tamanha frieza por parte dos meus pseudo-s familiares (assim que eu já os considerava), as tentativas freqüentes de Júlio e de Matilde apoiados por Solange e minha mãe de simplesmente esquecerem da minha existência, ignorando-me completamente e mostrando a quem quisesse ver a superioridade deles sobre a minha filhinha de apenas seis meses. Pude então perceber claramente a minha posição dentro daquela estrutura familiar que infelizmente era a minha própria; pude ver com clareza tudo o que estava acontecendo e por isto fiquei calada e entreguei-me a eles sem outra alternativa, por mim, por Eva e talvez por meu pai, do qual jamais duvidei de sua sabedoria e amor para comigo e com meus filhos; quanto a Laila e Cássio eu estava tranqüila, eu os havia educado com grande apego a esta família e eles eu sabia estavam bem entre outros jovens e primos. Foi um grito alucinante, tanto quanto a minha dor, dentro do meu peito! Todos correram para me socorrer, principalmente Júlio que depressa me levou para o quarto de meus pais e começou a rezar, minha mãe ao lado com Anita em seu colo o acompanhava. Não me sentia bem, um ambiente cheio de lamento, escuro. A dor já havia passado...No entanto aquela reza, minha mãe não estava lá por mim, aquela criança participando de um ambiente sombrio. Não pude evitar, sai do quarto sem pedir desculpas e senti-me bem por ter gritado, e correndo muito fui para o mar só... Minha ansiedade era grande e já não pensava em Eva ou em Cássio ou mesmo em Laila, queria naquele momento festejar minha loucura, transgredir minha felicidade e sabe Deus matar o que em mim... Entrei no mar só, nadei até onde pude alcançar, quando sai finalmente pude ver minhas irmãs, tia e alguns sobrinhos na areia festejando o ano novo; fizeram de conta que não haviam me visto e ao lembrar-me de Eva corri para casa, vi então meu pai e meu filho aflitos me procurando, pensei feliz... Eles sentiram por mim, não estou completamente só, os abracei com força e lhes desejei feliz ano novo. Minhas irmãs, tia, primos e sobrinhos haviam ido a praia que ficava bem próxima da casa de meus pais, sem se importarem com meu grito de dor festejavam alegres aquele novo ano que despontava. Na infância eu amava muito Valéria, era assim que eu a chamava por ser a tia mais nova, não costumava chamá-la de tia, ela sempre foi bonita e eu tinha por ela uma admiração ímpar, pensava em ser como ela quando crescesse. Sem muita sorte no casamento havia também se divorciado e por isso Matilde a sobrinha mais velha, mais próxima de sua idade lhe acompanhava em tudo; quanto a mim bem mais jovem não havia tanta identificação para sermos amigas inseparáveis, mas eu sabia que ela me amava, seu modo de me olhar era materno. Matilde, por sua vez, sempre desviava o olhar, como se minha presença não lhe agradasse, talvez estivesse envergonhada por meu grito pensei... Não sabia realmente, só sabia que uma esquisitice total tomava conta de todos. Eu estava por demais confusa, já não sabia o que pensar, o que dizer, nem como agir; lembrava-me apenas que eu havia antes de gritar na entrada do novo ano, me entregado a eles, eu e Eva, mas agora tudo tinha mudado, não mais olhavam com ar de superioridade, estavam esquisitos demais, pareciam loucos, na verdade a casa da praia mais parecia um sanatório, todos andavam curvados como Matilde, cabisbaixos; aquela situação passada em que os via se divertirem acabou, somente Solange parecia alegre meio aquela barbaridade que assolava todos, mas com exceção de Solange, meu pai, crianças e jovens todos sempre quietos, falavam muito pouco e baixo, porem aos poucos pude ir percebendo o que cada um pensava telepaticamente. Um fio tênue em minha mente; era necessário respirar lento para que eu não morresse, para que a loucura não fosse despertada. 10 Hoje penso, longe daquela parafernália, sei que tive como tarefa lá na praia dos Sete laços, por obra do acaso, ou do meu próprio destino, desencurvá-los mostrando a eles através da minha loucura, a loucura da própria família. Talvez, acredito, tenha os visto mais do que eles poderiam resistir, ensolarada que estava com o nascimento de minha filha, pelo grande amor que nutria por ela; talvez tenha por isso retirado deles a máscara que os envolvia, e por isso paguei caro. A verdade é que nada foi intencional da minha parte, não queria ofendê-los, simplesmente queria ser eu, algo que nunca tive oportunidade no meu seio familiar. Talvez meus olhos tivessem olhado demais, por minha filha Eva, por minha vontade de trazer a verdade à tona; o amor. Não somente o amor por Deus, mas o amor pela vida. Acreditava na possibilidade de ser artista, na vida assumida como encontros de forças e de aceitação do todo, ou seja, dessas forças reais se relacionando. Havia escrito muito durante a gravidez de Eva, estava praticamente só, em minha companhia tinha Laila e a nova empregada. O pai de Eva havia me abandonado no terceiro mês de gravidez e Cássio há alguns meses havia ido morar com seu pai; ocupava-me com meus estudos da pós-graduação e em registrar o tempo todo pensamento sobre uma possível relação real entre os homens, queria chegar ao ponto exato da relação e acreditei ter chegado. Parecia então que na praia dos Sete laços estava vivenciando de alguma forma tudo o que acreditava em teoria, só que as duas coisas realmente eram muito diferentes: haveria então eu de provar a mim mesma que eu seria capaz de vivenciar minha própria teoria, jamais imaginei ter que me relacionar o tempo todo com forças contrárias as minhas; teoricamente a guerra, a competição faziam parte da vida, não, entretanto da vida da minha família, passei a senti-los como os meus maiores inimigos. Pensava que isto não poderia ser realidade, pelo menos quando éramos mais jovens, antes mesmo do nascimento de Eva, não chegávamos a tanto; o que de diferente haveria ocorrido; de quem seria a culpa? De Matilde? De minha mãe por apoiar Matilde? De Júlio por desconfiar de mim como tia? Da ex-mulher de Júlio, que era amiga de Matilde e que me odiava? O que havia eu feito de tão injustificável para ser execrada? Talvez eu os estivesse vendo melhor, na verdade eu os via... Era necessário lutar, e eu haveria de aprender com a força de meu amor por Eva, por Laila e Cássio; por mim mesma e também por que não, por eles.Porque enquanto procurava o ponto de ligação dos seres, não pensei na possibilidade do outro não aceitar o encontro, havia partido do princípio que o amor venceria, mas a verdade é que houve a força contrária utilizada como a não aceitação, muito estranho... Quem poderia não aceitar o básico para uma vida feliz, quem evitaria o contato com o amor? Dentro, entretanto de minha ótica pude constatar, quando procurei o ponto de contato entre mim e eles, entre cada um deles, entre nos todos, que todos apesar de não aceitarem o amor como básico, acredito que por pura falta de vivência e conhecimento deste, possuíam grande inteligência e muito orgulho, menos Marieta, a cozinheira; as crianças espontâneas e verdadeiras, os jovens cheios de sensualidade e vida. Neles pude somente desencorajar a covardia, o medo de ser o que se é realmente. Porque nos meus estudos preocupei-me com aquilo atinente as reações de prazer na vida, aos prazeres reais e sublimes da vida, das quais todos se mostram como são, trocando intensas forças: os jovens são exemplos disso, brigam e se amam e numa reciprocidade vivem tranqüilos, cheios de esperança vivem venturosamente.O importante é saber que nunca estamos prontos... Pensava. Só assim estaremos prontos realmente para aceitarmos as novidades que a vida nos oferece no decorrer do tempo, da nossa história de vida. Posso falar com certeza que foi a minha teoria que me salvou. Meio a tanta confusão, meio aquela tremenda loucura houve momentos em que me tornei professora, eu comigo mesma, eu professora de mim, então acabava encontrando por fim o fio da sanidade; sabia em meu íntimo, lá bem no fundo, um fundo quase apagado que eu não estava louca, que era somente uma questão de tempo para que tudo se normalizasse. Sentia-me então mais confiante e tentava relacionar-me com meus familiares de uma maneira sincera, entregava-me a eles por pura falta de opção, sempre havia sido assim, a caçula das mulheres, obediente e ingênua, sempre sufocada e reprimida por falta de opção... 11 Eu era Nietzsche... Esta loucura vivida por mim na praia dos Sete laços, chegou ao ápice quando achei que eu fosse o grande pensador Nietzsche, ele que eu tanto amava, cujos livros eram lidos, relidos! Trechos de seus fragmentos copiados em minha agenda; na praia dos Sete laços acabei doando meu corpo à personalidade deste pensador do final do século passado; tantas respostas poderiam ser dadas para esta situação; por exemplo: o espiritismo diria que eu poderia por mediunidade estar possuída ou pelo espírito do próprio pensador, ou talvez por algum outro que se passasse por ele; não sei realmente o que se passou comigo, sei apenas que em meu íntimo eu era Nietzsche, acreditava realmente ser Nietzsche carregando em mim uma dor quase insuportável, um medo da vida e dos homens, um poder dentro de mim maior que o humano, capaz de morrer ou matar pela veracidade dos meus pensamentos, da felicidade de toda humanidade. Tornava-me Nietzsche e confiava com voz austera a meu pai meus pensamentos sombrios, meu pai escutava-me e respeitava-me. Em um certo momento de loucura, em que dizia a meu pai que eu era Nietzsche, que me deixasse ir embora da praia dos Sete laços, que eu sabia exatamente o que estava fazendo e que ninguém no mundo haveria de novamente prender-me ou levar-me a um sanatório, minha mãe surgiu entre nós como uma louca, com olhos esbugalhados encarando-me e dizendo-me, que se eu era Nietzsche ela era Hitler, que ela era o Anti-Cristo, ou melhor, que ela era Deus. Nietzsche então estupefato (que era eu), louco esticou-se todo e gritou cheio de prazer e entusiasmo:- --Saias de perto de mim mulher venenosa! Tu tens muito veneno pro meu gosto! Saias, saias e retorcendo-se, com olhos exaltados esperou a resposta... Hitler com olhos esbugalhados respondeu: ---Não tenho medo de você e de ninguém, eu sou Hitler! E Nietzsche:- - Tu me amas, eu sei que tu me amas... E Hitler (minha mãe) saiu do quarto; mais calmo Nietzsche então perguntou a meu pai -- E tu quem és? Meu pai nada respondeu e Nietzsche disse rindo alto e dançando:- --Tu és uma bailarina, uma bela bailarina. Meu pai olhou-me com ternura. Sai então do quarto, extremamente ansiosa e pensei que tudo não havia passado de um teatro psicodramático.Fui para o quarto arrumar minhas malas para finalmente ir embora, afinal acreditei tê-los convencido que estava bem. E acredito hoje que este tenha sido o auge de minha confusão psíquica. Levei minhas malas prontas para sala.Consegui! Pensei, finalmente consegui provar que sou sã.Vou me embora. Acreditei realmente ter convencido meu pai de que eu estava bem; ele deitado em sua cama parecia estressado, querendo descansar sem, no entanto conseguir; neste momento Solange o chamou e os dois saíram. Eu por minha vez estava pronta para voltar para o meu lar, onde a felicidade me esperava, estava ansiosa e cheia de mim e com Eva nos braços preparava-me enfim para partir. Quando meu pai surgiu na sala gritando furioso:- -Você não vai para lugar nenhum! Solange e minha mãe ou Hitler. Já não sabia o que pensar! Atrás dele gritavam: -ela não vai, não vai! Eu horrorizada gritei: -Eu vou pai, eu estou bem! e Solange atrás dele percebendo que ele vacilava gritou:--Não pai, ela está louca! Desesperadamente retruquei: -Eu vou, eu vou, por favor, deixe-me ir...Chorando. Meu pai então me agarrou completamente irado: -Não! Você não vai. Entre seus braços senti-me um pássaro grande, branco que bateu as asas em vão.Todos saíram da sala após o ultimato de meu pai e eu fiquei só, paralisada, pronta a morrer. Fui então para o meu quarto, liguei o ventilador sobre mim. Não sabia onde estava Eva, não sabia mais nada, pedia a Deus uma solução, sentia medo, muito medo de minha mãe. Pensava...Meu pai havia me deixado ir embora, eu tinha tanta certeza disso, porque então mudou de idéia? Via Solange atrás dele gritando!Ela é louca, é louca, é louca pai! Minha mãe...Olhando para mim.Você vai ficar, vai ficar. Lembrei... Eu sou Hitler...Hitler! Uma vertigem...Ai meu Deus, pensei... Vou morrer, não suporto mais ficar aqui... Quero morrer, ir embora... Pensava e chorava baixinho para ninguém escutar. Sentia que estava num manicômio, no meio de muitos loucos, outros loucos, loucos perigosos, mais loucos que eu própria.O que eu poderia fazer, como me salvar? Pensei em Deus estarrecida! De repente tive uma idéia, tão simples: iria tornar-me igual a elas, as minhas irmãs e assim minha mãe me amaria, e com muito jeito teria a permissão para ir embora...Consegui então relaxar e dei um tempo levantei, troquei de roupa, soltei os cabelos, pintei os lábios e fui para sala; todos me olhavam de esguelha, inclusive Valéria. Meu pai havia saído com Solange novamente.Eu temia por ele, por seu coração e sabia que naquele momento Solange deveria estar lhe envenenando, falando sobre a minha má sorte! Deus!Pensei, eu precisava ser fria, deveria confiar em Valéria ela que sempre me olhou com olhos de que estou com você e não abro...Por vezes procurava-me em meu quarto para falar que me amava... Com certeza ela poderia me ajudar, acreditei nisso por alguns instantes e prossegui com meu plano: no entanto fui primeiro até o clube, ao lado da casa de meus pais, tentei fazer uma ligação para Aruama, cidade onde possivelmente estaria meu ex-marido, talvez pensei... Quem sabe ele me ajudasse possuidor que é de tanta força e malicia, minha mãe e irmãs sempre o respeitaram tanto, sempre mais do que a mim; quem sabe ele as seduzisse por mim e me levasse de volta ao meu lar... Mas um, porém... Ele deveria provavelmente estar com sua noiva que por sua vez me odiava, sem dúvida, não...Pensava...Não daria certo. Mesmo assim iria tentar... Mas não havia ficha telefônica no clube. Voltei para casa, uma quadra do clube, rebolando, olhando de esguelha, jogando os cabelos para trás, sabia que me parecia nesse momento com a ex-mulher de Júlio.Tornei-me uma mulher venenosa e extremamente sensual. Sem pensar em Eva e minha nova vida, entrei na varanda da casa de meus pais, sentei aos pés de minha mãe e a olhei com paixão, com olhos de mulher perigosa, disse então a ela que todos eles tinham razão, que eu achava que seria bom mesmo que eu ficasse lá mais um tempo, que lá estava tão bom...Fazia carinho nela e ela me correspondia. Acreditei, pensei...Deu certo meu Deus! Continuamos a conversar e minha mãe ensinava-me com suas palavras e gestos a ser mulher, a largar a filosofia (meu estudo e profissão) dizendo que só me traria problemas na vida. Ela conseguiu convencer-me e eu sentia-me feliz pela família que Deus havia me dado! Matilde e Valéria aproximaram-se de nós, sentaram-se ao nosso redor, começaram a se acariciar tirando cravo das costas uma da outra, num clima de amor e veneno; riram e eu ri também, sem saber do que. Os sobrinhos, primos, filhos vieram aos poucos se chegando a nós e sentaram-se na varanda ao nosso lado, e então eu percebi que eu também era uma mulher venenosa.Olhei com malícia para todos e nada de mal aconteceu, ao contrário, todos pareciam gostar mais de mim.Entendi! Pensei: todos agem por meu pai, perguntei por ele; ele estava no quarto deitado, fui então até lá me aproximando com suavidade porque vi nele a bailarina tão bela, tão delicada; acariciei suas mãos, lhe dei um pouco de minha malícia recém aprendida, do meu veneno e lhe agradeci por ser meu pai, por não ter me deixado ir embora e ele me correspondeu com felicidade e alívio dizendo-me:- -obrigada por você ter compreendido. Deitei-me ao seu lado, e minha mãe não se importou. Algo aconteceu, eu mudei, as pessoas mudaram pensei com malícia e fui para sala rebolando, jogando os cabelos para trás, olhando de esguelha e minha mãe olhou-me com raiva. Acho...Pensei, passei dos limites, deve haver uma medida certa.Qual será? Na verdade não queria ser a sofredora como Matilde, minha irmã mais velha que sempre foi tão aceita e amada; muito menos pensei ainda, insegura e vulgar como a “bruxa” da Solange. Como devo meu Deus, como devo ser para agrada-los, a todos, para poder ir embora daqui e ser eu mesma! Irei seduzi-los, continuei pensando...Na medida deles, até quanto eu possa suportar. Com minha sensibilidade perceberei quando deverei parar. O tempo passou... Anoiteceu; a casa acalmou-se. Todos haviam saído. Fiquei só com Marieta e Eva. Levei Eva para dormir e nesse momento senti no peito um forte sentimento de amor e medo, cantei baixinho para minha filha boi da cara preta, rodopiei no quarto com ela no colo e lhe transmiti todo meu sentimento. Acreditei realmente que eu havia aprendido algo, algo de novo em meu peito. 12 Voltei à sala e logo meus pais chegaram meio estranhos; na verdade nada havia mudado, eu ainda era uma louca para eles. Deixei-os na sala e fui para o quarto tentar dormir também, e junto com Eva, em mim, no meu peito um sentimento muito conhecido da minha infância.Reagi! Antes chorava só, escondia-me quando esse sentimento inexplicável surgia, uma mistura de medo e ansiedade, dessa vez levantei e fui para sala reclamar da minha enorme dor de cabeça. Minha mãe deu-me algumas gotas de novalgina, deitei-me no sofá com a cabeça apoiada em seu colo, ela me acariciou os cabelos com medo, meu pai por sua vez, sentado a nossa frente contava casos estupendos “demais” ao meu peito ainda ressentido, nesse estado eu mal conseguia lhe escutar. Assim como me sentia preferia minha mãe que nesse momento eu amava e compreendia, talvez por estar dando-me um pouco de atenção. Realmente... Pensava... que saco meu pai! Mas minha mãe só podia ser em relação a ele, meu pai. Algo entre eles que eu percebia dessa maneira: meu pai era um cachorro bravo, mas se portava assim por causa da forma com que minha mãe interagia com ele...Então a minha mãe era a louca, porque ela transformava a bailarina doce num cachorro bravo, mas mesmo assim eu a amava e a compreendia naquele momento. Na minha cabeça um eco, o que é, o que é, o que é? Um clima perigoso rondava a sala. Escutei minha tia Valéria, que também estava presente no local, falar na orelha de Matilde: –Ela se entregou e vai perseguir a noite toda. Fiquei com medo, quem vai perseguir? Eu perseguirei? Ou minha mãe me perseguirá? E acreditando ser sobre mim pensei: E daí que eu tenha me entregado a meus pais? O que havia de errado, porque eu não poderia me entregar?Confiar? Levantei e dispersei meus pensamentos enquanto minha mãe foi para varanda, ela estava muito pálida e parecia também muito tensa conversando com Valéria. Meu pai na sala assistia à televisão.Algo estranho ocorreu então aos meus sentidos, o noticiário parecia responder às perguntas que eu pensava. Nesse instante o noticiário falava sobre um cachorro louco de extrema periculosidade e explicava com detalhes como ele deveria ser tratado caso o encontrassem. Minha mãe, nesse momento era o cachorro louco e eu acreditava que todos nós sabíamos: eu, Matilde, Valéria, meu pai, inclusive os jovens, os três filhos de Valéria e a filha... Os filhos de Valéria: Alan bonito e meigo, o primogênito Carlos e o caçula Paulinho jogavam baralho com Matilde na sala de jantar que dava pra sala de televisão onde estava meu pai. Todos pareciam estar atentos ao noticiário sobre o cachorro louco, no perigo que estávamos correndo. Em minha mente a loucura era a própria realidade. Com medo do perigo que todos nós estávamos correndo percebi que minha mãe agora na cozinha sentia-se ameaçada devido a sua grande perspicácia, inclusive porque eu pude perceber, com minha extrema habilidade perceptiva, (nesse momento era assim que eu me sentia, como se eu fosse a mulher maravilha, com uma sensibilidade além da conta...) que ela olhava para Matilde desconfiada, à filha querida que sempre foi sua cúmplice. Eu, esgueirando a vista de um lado a outro conversava telepaticamente com todos tentando escapulir das investidas de minha mãe, pois afinal ela era o cachorro louco. E o assunto era como deveríamos agir para enfrenta-la e acalma-la. Todos juntos contra minha mãe. Lembrei-me de Hitler e tudo em meu pensamento parecia se encaixar; lembrei-me de Anita e a vi como num filme: ela a neta preferida de minha mãe com dois anos arrastar o pé direito ao andar, parecia na verdade carregar um certo peso, pois não tinha nenhum tipo de problema nas pernas nem no pé; pensei que talvez pudesse ser o peso da direita que minha mãe me falava que deveria ser vivenciado. Essa neta, a filha de Júlio que sempre foi muito ligado a minha mãe assim como Matilde. Pena deles! Acreditei...Tão confinados as verdades de Hitler. Não poderia nesse momento ir alem e analisar melhor os fatos, minha loucura concluía isso. Pensava na forma de amor que havia aprendido com minha mãe e sentia um agarrar no peito, um matar a todo instante aquilo ou aquele que não fizesse as coisas direito, ou melhor, que ela não considerasse direito. Nesse momento senti falta de Marieta (a cozinheira) que estava de viagem para Minas, perto dela tudo para mim estaria melhor, pois eu nutria por ela um alto grau de confiança; ela que amava tanto minha mãe, que trabalhava há vinte anos em sua casa e que ultimamente já não sabia direito onde estavam as coisas, rodopiava pela cozinha, entrava nos ambientes da casa onde estavam todos sem saber direito porque e depois acabava se lembrando entre os risos dos presentes que deveria ter levado o café e que havia esquecido; chorona, reclamava muito, mas não conseguia sair da casa de meus pais. Para mim ela era autêntica demais, uma companheira desde quando eu era criança; todos sentiam muito carinho por ela. Mas minha mãe que parecia sentir-se perseguida deu-nos boa noite e foi para seu quarto.Todos assentiram com a cabeça sem, entretanto lhe darem muita confiança, afinal todos nós estávamos atentos ao perigo do cachorro louco. Ela foi para seu quarto, mas logo voltou, sentou-se a mesa na minha frente e olhou-me com ar de conivência como querendo me dizer: deixa essa gente toda comigo. Começamos a jogar baralho eu, ela e Paulo caçulinha de Valéria. Eu estupefata mal podia respirar, minha mãe jogava surpreendentemente bem. Tentei seguir seus olhos, sentir em mim sua inteligência já que na minha loucura tudo parecia possível. Pôxa! Era demais. Quanto eu aprendi e quase tombei. Eu não podia agüentar. Larguei as cartas. Matilde que jogava com Valéria ao lado, na mesma mesa, estava ao contrário do que era seu costume, muito à vontade com ares de independência e apoiada por Valéria não deu a mínima atenção a nossa mãe, um certo desprezo no ar, ou mesmo um certo deboche, bem típico dela, quando está de bom humor. |Nesse momento absoluto de tensão, onde nossa mãe percebia uma situação ameaçadora, um ameaçador choro irrompeu na sala, vindo do quarto onde dormia Leda, filha caçula de Matilde. Essa irmã tremendo, espantada levantou-se rapidamente pegou sua filha e a entregou para Hitler e ele disse:- É preciso que ela vomite e enfiou os dedos na garganta da menina para que ela vomitasse. Matilde estremecida voltou a ser a filha fiel de sempre com ares de sofredora. Meu pai logo se levantou e foi dormir; eu bem depressa segui seus passos e também fui me deitar. Durante a noite tive pesadelos com brinquedos e brincadeiras que me assustavam. De madrugada acordei com os passos de Valeria no corredor; depois escutei a porta do banheiro fechar e novamente se abrir. Uma inquietação na casa, um clima de ansiedade no ar; eu por minha vez assombrada com os pesadelos que me assaltaram pulei da cama e fui ter com Valeria, pensei...Já que ela estava acordada seria bom encontra-la e trocar com ela algumas poucas palavras, mas qual não foi minha surpresa que ao me levantar tudo estava calmo, não havia ninguém andando na casa e tão pouco havia alguém no banheiro ou algum sinal de que por lá havia acabado de sair alguém.Um tanto atordoada fui ao quarto de Valéria para tirar a limpo, talvez ela estivesse acordada; meti a mão na maçaneta e a porta estava trancada então forcei a maçaneta e gritei: -Valéria, Valéria. Ninguém respondeu; lembrei-me que Valéria havia dito à Matilde que alguém perseguiria aquela noite, um medo terrível tomou conta de mim fazendo-me gritar mais alto: - Valéria, Valéria! Mas não houve respostas então deduzi que Valéria estava amedrontada também, mas comigo e que mesmo acordada não estava me respondendo. Decepcionada corri ao quarto de meus pais e chamei meu pai.Ele estava acordado e tranqüilamente disse-me que eu não devia ter medo dos brinquedos e eu não pude entender como ele soube dos meus pesadelos. Ele dizia quase dormindo:- São apenas brinquedos, brincadeiras. Você tem medo disso?E eu agoniada lembrei de minha mãe, que era ela quem brincava me assustando nos pesadelos e pensei que meu pai deveria saber algo mais do que eu poderia supor sobre a sua mulher, mas mesmo assim confusa e amedrontada pedi para ficar lá com eles um pouquinho. Alguns minutos foram o suficiente para que eu voltasse ao meu quarto junto com Eva e Laila que ressonavam transmitindo-me uma certa paz, tranquei a porta do quarto assim como Valéria e dormi segurando meus pés. 13 No dia seguinte, na casa, um clima de quartel. Eu estava num quartel, tinha certeza disso. Hai Hitler! Uma força poderosa tomou conta do meu peito direito. Todos na casa andavam como se estivessem andando num quartel. Um quebrar bem lá dentro do peito direito doía e gritava Hai Hitler! Ordem! Tudo deveria estar no seu devido lugar, mas eu não sabia qual realmente era o lugar em que tudo deveria estar, então feito alucinada eu procurava em minha mente algo que me aliviasse daquela tensão. Minha mãe levantou-se da cama e todos da casa estavam tensos. É ela pensei...Que está nos controlando com sua força da direita, ela é Hitler meu Deus, minha mãe foi Hitler na outra encarnação, mas então eu fui Nietzsche. Hitler...Continuei pensando, completamente, absurdamente estupefata... Leu Nietzsche, mas não o compreendeu, utilizou-se de sua filosofia de forma egoísta, retirando dela somente o que queria que fosse e não o que realmente era. Meu Deus, mas eu sei que Hitler amou Nietzsche, mas eu estou louco, sentindo e vendo coisas absurdas. Sentia-me um homem. 14 Antes, bem antes de eu me tornar Nietzsche e minha mãe Hitler, antes que meu pai fosse a bailarina, minha mãe, às vezes era santa e outras o próprio demônio. Pensei mesmo ter visto, várias vezes, ela fazer milagres. Um dia me senti muito mal, como se eu tivesse sido invadida por uma força sobrenatural em que já não sabia mais quem eu era, em que pensava ter perdido completamente a minha individualidade. Nesses momentos eu agia como se fosse Matilde criança, representava como num teatro, para minha mãe e ela sabia... Percebia que “eu era Matilde”, pelo menos eu acreditava que ela soubesse, pois ela me tratava com um amor diferente daquele que ela me dedicava normalmente; nem maior, nem menor simplesmente diferente; às vezes ela me dava algum remédio e me dizia:- Toma tudo até o fim; mata!Na realidade eu sabia que estava curando minha irmã, que cresceu tão seca, tão dependente emocionalmente da nossa mãe; sempre atrás da mãe, porque na verdade ela não podia expressar seus sentimentos verdadeiros, por se sentir reprimida e por isso sofria. Era dessa forma que eu a sentia nesses momentos em que acreditei ter vivenciado situações doentias de sua personalidade, ainda em desenvolvimento, mas que estava no meu entender bem viva dentro dela ainda. Ela que foi a única filha amamentada até mais de um ano, com todo amor, por nossa mãe, que talvez se tivesse sabido lidar com a dependência dela na infância teria agido de maneira diferente, libertando a primogênita de seus laços maternos, dando-lhe a liberdade de poder ser só. Pode ser também que minha análise não seja coerente e que analisando assim eu esteja tirando de Matilde aquilo que é seu em “essência” e culpando erroneamente nossa mãe.Porque sempre foi, de verdade, uma dependência mútua, uma pela outra; somente pensei que minha mãe por ser a mãe deveria saber mais. Matilde sempre escondendo seu verdadeiro eu, usando máscaras e tentando mostrar uma segurança tão distante da realidade dela, também sempre foi incapaz de chorar. Tratou-me com tanta indiferença na praia dos Sete laços que beirou o sadismo... Num determinado dia eu a puxei para meu quarto e a sós com ela abri meu coração, lhe pedi piedade, amor e ela secamente respondeu-me que nada poderia fazer por mim e me vendo chorar desesperadamente olhou-me friamente nos olhos e disse-me:- E eu que nem sei mais chorar. E saiu do quarto me deixando em prantos sozinha, logo mais na sala lá estava ela aos risos conversando com minha mãe e Valeria e quando olhei nos seus olhos ela rapidamente desviou o olhar para minha mãe com cumplicidade. Minha mãe era capaz de me tornar sã quando ela assim o desejasse; o que queria dizer que dependia do desejo de minha mãe para que eu pudesse ser Jennifer, ou seja, eu mesma. Por isto acreditava que ela era capaz de fazer milagres, tamanha era minha confusão mental, pois dependia do seu querer a minha recuperação. Mas o pior é que ela não desejava minha sanidade, talvez porque eu não lhe suprisse, algo seu, interiormente, que necessitava e por isso preferisse Matilde criança, assim ela poderia recuperar sua filha querida esquecendo-se um pouco da presença da filha caçula cheia de si e de felicidade transbordante. Pôxa vida, mas e eu? Às vezes ela me fazia lembrar que eu era Jennifer, quando me tratava como tal, quando ela precisava de um descanso, então eu sentia-me bem normal e saia para praia, para o clube; sai enfim da prisão. Essa minha teoria se concretizava cada vez mais à medida que percebia que Matilde estava melhor, bem melhor que antes. Todos ganharam muito com a minha loucura, e o pior é que sabia disso, mas não podia evitar que os acontecimentos se dessem dessa maneira com minha completa submissão e entrega. Jamais me entregarei a eles novamente. Foi uma grande lição. É lógico também que de tudo se tira um pouco e eu tirei para mim nessas experiências tudo que pude para o meu crescimento... 15 Júlio em minha mente era o quiasco... Quiasco, e no meu peito uma dor raspada, apertada que me tirava o ar quando ele me olhava com olhos penetrantes que pareciam me dizer eu vi! Viu. O que ele viu? E percebia um “som mental” quiasco, quiasco e aquela dor tão forte que penetrava meu peito materno que somente queria amar Eva e viver pleno de paz; mas o quiasco também era um invasor que não pedia licença para penetrar naquele meu mundinho tão particular. Solange, por sua vez, em seu estado normal, quer dizer entre haspas não é? Porque na verdade ela nunca esteve num estado normal; a filha mais bonita de meu pai, pelo menos ele a achava. A paixão de meu pai por ela era recíproca e por todos nós também porque no fundo o que sempre nos moveu foram às paixões. Era normal para nosso pai toda e qualquer paixão, só vivia em estado de paixão e nos ensinava a sermos assim também. Afinal, ele, o homem tão maravilhoso de lindos olhos azuis, de inteligência de gênio era nosso pai e por isso o nosso exemplo, amor e guia. Nossa mãe nesse contexto poderia ser a bruxa que maltratava com seus ciúmes apaixonado toda harmonia de amor que nosso pai nos ensinava, com sentimentos sublimes de grande efeito colateral aos corações fracos, nos surpreendendo a cada dia. Mas é óbvio que essa forma apaixonada de ser de meu pai tinha a ver de certa maneira com a paixão que minha mãe nutria por ele. Bom, meu pai amava Solange, ele sempre a achou linda e também desinibida e carinhosa; mas pra Solange não deve ter sido fácil carregar esse “fardo” (da filha mais bela), principalmente quando os anos vão se passando e nossa beleza também. Fora isto, a mulher para nosso pai seria a intocável, de fortaleza sem igual cujo poder paterno ficaria a deriva, deixando o homem que ele simbolizava no sentido mesmo universal da palavra, subjugado a seus pés, frente ao comando da mulher fatal. O que poderia restar então para Solange senão ser o que ela hoje é vivendo tão longe de si mesma e dos seus reais sentimentos, principalmente dos mais nobres, pois se é vergonhoso ser humilde onde o orgulho de ser a mais bela filha é o traço mais forte de seu caráter, independente do que se possa mudar exteriormente nela, o interior parece lutar para que essa pseudoverdade determine suas palavras e seus atos. Eu, por minha vez, a caçula das mulheres, sempre fui a humilde por excelência, a boazinha, bobinha, amada sem ímpar. Sempre fui amada como menina e por isso não cresci interiormente como mulher, sentindo-me, no entanto bonita, mas sem a menor possibilidade de me tornar uma mulher autêntica, independente. Sempre buscando em mim o amor pleno e estável que me reconfortaria de toda aquela balbúrdia de sentimentos e emoções vividas na infância e no início da juventude enquanto morava com todos eles, das quais eu não poderia ainda compreender. À medida que crescia meu pai puxava-me pela cabeça, ou seja, pelo intelecto; talvez ele detectasse já em mim a minha tendência natural... E hoje sou uma intelectual crescida, mas meu coração infantil é cheio de mimos e sei chorar. Orgulho-me de ser o que sou e da família que tenho, no entanto eu ainda sentindo-me como criança, quero crescer só. Utilizei meus conhecimentos de filosofia, psicologia e arte, para me expressar dentro da minha família que pareceu a mim na praia dos Sete laços completamente estranha. Na verdade o que houve talvez tenha sido à falta de aceitação de uns para com os outros. Parecia que fugíamos a todo instante de nós mesmos; buscando sempre um prazer maior que poderia estar no outro, e neste caso estava em mim, e eles para conseguirem o meu prazer foram capazes de tudo, esquecendo inclusive que a base da felicidade está no amor que compreende o outro e o vê e o aceita como ele é, ou não aceita até, mas de forma coerente e verdadeira e principalmente esqueceram-se de mim nesta tentativa de roubarem a minha felicidade recém despertada pelo nascimento de Eva, esqueceram-se da minha luta pela vida, do quanto naquele momento eu necessitava deles, do quanto eles eram importantes para mim. A luta pela sobrevivência sem o niilismo nietzschiano em que as forças em questão são os grandes prazeres e as histórias de seus autores na vida cheias de guerras e amores. Talvez este problema seja universal e não só da minha família. Porque todos os problemas, por pior que possam parecer, eu sei lá bem dentro da minha consciência, bem ainda escondido dela, que sempre acabam dando certo, de uma ou outra forma, como num jogo de xadrez, que quando termina, independente de quem ganhou o fim dos problemas enfrentados durante o jogo terminam, os jogadores cresceram em mais uma vivência e experiência e a esperança de um novo jogo em que o perdedor pode se transformar em ganhador faz o mesmo sobreviver sem danos.Então graças à inteligência e sensibilidade de todos na nossa família, eu sei, ou assim espero, tudo no final das contas acabará um dia dando certo. Mesmo eu saindo derrotada, prestes a parir um mundo novo onde minha família já não possa mais fazer parte diretamente; em que daí pra frente tudo, acredito hoje, será mais fácil na minha vida tamanha desilusão frente àquilo que era a coisa mais importante da minha vida: eles. 16 No início, quando eu ainda estava bem, lá na praia dos Sete Laços, saia o dia todo com Eva; nadávamos muito; eu pintava enquanto curtia a natureza. Estava sempre com minha filhinha e as empregadas ou com as crianças e também com os jovens cheios de vida. Mas dei mesmo com os burros n’água quando tentei me relacionar com os adultos da família. E as coisas pioraram mesmo pra valer quando Matilde retornou a casa de nossos pais para o Ano Novo, eu conversava com ela e ela simplesmente não me respondia e acontecia o mesmo quando eu me dirigia a minha mãe, ela também não me respondia. Doença crônica pensei... Disse a elas brincando que não conhecia essa nova moda de relacionamento, que então passaria a agir assim também e que não responderia mais nada quando alguém viesse me perguntar algo. Matilde não gostou da brincadeira e emburrou feio sem, no entanto falar nada. Eu dei de costas, mas meu bom humor começou a acabar assim como minha consciência de mim mesma. Talvez penso hoje, que Matilde seja mesmo ruim, a pior de todos; foi ela quem fez minha mãe me aprisionar, a palavra certa para aquilo que eu sentia seria acorrentada; assim eu me sentia; meu corpo possuído, controlado, não me deixando escapatória por se mais forte que eu; a inveja de Matilde por minha felicidade foi muito grande e eu não tive força suficiente para suportá-la sã; para continuar a ser feliz. Nessa situação minha compreensão fundamentada no amor pela vida sucumbiu frente aos ciúmes dessa irmã, ao seu orgulho sem fundamento em que sua condição de primogênita gritava mais alto dentro dela; ninguém nesta família poderia ultrapassar seus limites de entendimento e aceitação, e no meu entender tão egocêntricos! Eu posso inclusive entende-la e amá-la hoje, apesar do ressentimento profundo que me atingiu, mas não poderia jamais aceitar sua filosofia de vida como sendo a minha. No entanto em nossa família ninguém está muito preocupado em acertar na vida realmente, naquele sentido mesmo do qual procurei tanto durante a gravidez de Eva; do ponto de relacionamento entre os seres, uma vida real cheia de comprometimento, consigo e com o outro. Penso também que as coisas são como são e tudo está certo como está por motivos na maioria das vezes invisíveis aos nossos olhos. Assim me tranqüilizo acreditando que neste grande palco da vida cada um representa o seu papel e que todos somos parte do todo em que o bem e o mal fazem parte, e que tudo simplesmente é; assim fujo da tragédia e por momentos uma onda de amor, simplesmente uma onda de amor passando sobre mim, acalentando minha liberdade momentânea, após aqueles malditos dias. Todos meus familiares são sãos, porque na verdade ainda não existe sanidade verdadeira entre os homens. Assim penso... A raça humana ainda luta pela sobrevivência. Porque não acredito que Matilde tivesse consciência daquilo que realmente eu estava passando, nem desejou tanto. O que ela gostaria, acredito, é que eu fosse embora da casa da praia o mais breve possível, mas deu no que deu e então ela se aproveitou da situação.Foi isso, acabou competindo comigo e ganhando quando na verdade eu somente me entregava a família; mas hoje estou aqui, consegui sobreviver. Sei também que saindo da vulgaridade, ou seja, saindo da realidade dos sentimentos corriqueiros cotidianos em que a carência da falta de plenitude ainda grita em nossos peitos, posso perceber toda situação de uma outra forma, com outras palavras: que Matilde não tem culpa de ser o que ela é, que cada um é o que é, ou aquilo que pode ou consegue ser; ela com certeza deu o máximo dela para acertar dentro de sua própria ótica e filosofia de vida. Ela foi artífice de seus atos o que gerou e gerará conseqüências exatamente proporcionais. Quanto a mim peço a Deus para que um dia eu possa perdoa-la; para ela, talvez, se sinta vingada e feliz por algo que eu jamais poderei entender. Como seria bom... Pensava naqueles dias, inesquecíveis, na casa de meus pais...Se ela se transformasse naquela irmã que eu amava tanto quando eu ainda era uma criança. Em meu íntimo sabia que poderia dar muito de mim por ela, ou melhor, já estava dando; está bem que não houve outra alternativa. Nesse nosso jogo, como num jogo de xadrez, eu fui desbancada, o meu amor perdeu frente ao ódio do tirano adversário; mas no meu entendimento tanto o ganhador como o perdedor trocam entre eles, forças humanas e o que vale simplesmente é a troca vivenciada do ser consigo estando com o outro, vendo o outro e vendo a si. Bem, eu podia crer que não foi o fato de ter praticamente enlouquecido, que me faria rever ou descordar da minha “obra prima”, que acreditei ter escrito durante a gravidez de Eva; pelo menos ainda me restava essa única alternativa para continuar vivendo sem perder o breve fio da minha consciência: idealizar um mundo melhor e acreditar que ele poderia ser vivido realmente. Quanto ao “quiasco” sentido: o eu vi tão silencioso e invasor de Júlio. O asco frente à realidade nua e crua de tudo o que ele podia enxergar e ver. Um nojo da vida ou talvez se saiba lá do que, talvez de uma verdade que o seu bom senso não pudesse mudar, mas também não pudesse aceitar.Um olhar penetrante cheio de sangue e dor; era assim que eu via meu irmão. Somente a sensação e não o raciocínio; somente a dor. Uma determinada noite eu vi um verme nojento rastejando pela sala, então gritei e chamei minha mãe: _ Olha mãe esse verme nojento aqui na sala! Ufa...quiasco... Toda cheia de repudio e nojo eu mostrava a minha mãe a verdade nua e crua do eu vi de Júlio... O pior daquele piolho de cobra...Qual não foi minha surpresa ouvi-la calmamente me dizer: _ Deixa filha, até amanhã ele já foi embora, deve ter passado por debaixo da porta... Nesse momento uma luz se ascendeu em minha consciência. Meu nojo perdeu, frente à grandiosidade de minha genitora...Como ela poderia suportar o quiasco assim como Julio! Que capacidade meu Deus! Que capacidade! Eu a amava, na verdade eu sempre a amei. Ela era capaz. Pensava...Se for preciso morrer por sua felicidade, morrerei sem pestanejar; ela é grande. Sempre me ensinou a todo instante possível como as coisas são.Foi capaz de segurar o meu nojo daquele verme rastejante, quando tornei a olhar o piolho de cobra ele já não era tão perturbador para mim. 17 Todos nós lá na praia dos Sete Laços em alguns momentos soubemos daquela verdade estonteante: conversávamos telepaticamente o que quiséssemos; todos sempre prontos a participar daquela angustiante roda giratória sem fim em que um perguntava mentalmente ao outro algo, e esse outro respondia perguntando a outro, que dava continuidade perguntando a outro, que respondia e assim por deante. Júlio perguntava em mim e eu respondia em meu pai que perguntava a minha mãe, que recorria a Matilde que chamava Valéria que falava com Solange que recorria a meu pai que vinha a mim. Isso sempre num fio constante, telepaticamente.Marieta também participava ativamente dessas nossas conversas... Logo que chegou de Minas percebeu algumas diferenças nos hábitos da casa. Alice a empregada de Solange, que não saiu da praia dos Sete Laços fazia já parte de nossa brincadeira desde o início. Tudo acontecia intuitivamente; até a mosca que sobrevoava meu rosto era um alerta para eu não dormir; uma atmosfera densa, pesada mesmo percorria toda casa.Meu pai parou de ficar o dia todo na biblioteca; minha mãe também deixou de se dedicar tanto aos afazeres domésticos, andava muito, ia para o centro da cidade com Valeria e Matilde; Solange sempre na praia sozinha ou com Renata. As crianças brincavam ora em casa, ora na praia também. Eu sempre em casa, jamais saia, deitada ora na rede, ora estava na sala, ou na cozinha, sempre a me ocupar com alguma coisa qualquer. Meu pai possuía grandes poderes; estávamos no Olimpo, ele era Zeus que necessitava do calor e da atenção de todos para sobreviver e comandar. Todos dependíamos dele, da sua satisfação e felicidade. Matilde sabiamente resolvia grandes problemas para que mantivéssemos a harmonia tão frágil; resolvia então os ciúmes que Solange nutria por mim de maneira que resolvidos os conflitos pudéssemos satisfazer mentalmente meu pai. Soube então naqueles momentos que seu poder podia ser utilizado a meu favor quando ela quisesse; mas ela não queria; na verdade aquela atmosfera noética, suprema era de fidelidade a Zeus. Solange como Górgona, a bruxa lendária, perigosa e maléfica que me odiava e queria me matar e por sinal algumas vezes quase conseguia. Eu podia sentir claramente seus poderes de vilã. Uma fumaça preta me invadia todo o corpo e eu me tornava muito feia; seu olhar parecia querer roubar o meu eu, minha essência e transformar-me na própria falta, sem nada, oca e disforme. Um perigo mortal, eu precisava ter cuidado para não olhar nos seus olhos. Eu também era uma deusa, a deusa do amor e da concórdia, tinha por finalidade sempre estabelecer a paz. Eu respeitava a todos e todos se respeitavam mutuamente, num jogo intenso de forças poderosas. Toda nossa família descendente de Zeus. Meus filhos e sobrinhos todos descendentes do grande e poderoso deus. Haviam também aqueles preferidos, cada mãe protegia e lutava pelos seus filhos. Solange lutava a favor dos dela, mas também amava os meus. Por isso, dentro de seu limite de autoridade dava e tirava poderes, de acordo com seu senso parco em justiça que fazia pesar na balança àquilo que considerava ser do seu próprio interesse, interesses, ao meu ver, fúteis, sem profundidade, sem finalidade útil e real na maioria.Não se preocupava com a harmonia, ao contrário, parecia não estar participando conscientemente do fio telepático que nos unia. 18 Hoje após três semanas, as lembranças tornam-se distantes, muitas coisas aconteceram aqui na metrópole, nesse meio tempo. Ainda sinto medo, às vezes uma ansiedade exagerada, mas consigo controlar-me; tenho por isso certeza de que estou bem, somente não quero por enquanto pensar na possibilidade de um dia voltar a praia dos Sete laços... Lembro-me da noite dos vampiros. Foi depois de uma crise de loucura, de um dia muito agitado. Acordei num quartel, sentia-me espiada; eu corria realmente perigo, minha mãe vigiava-me a qualquer distância, ela sabia tudo que acontecia nos quatro cantos da casa e eu não podia pensar na possibilidade de estar só, eu comigo, como fazia quando meditava no meu apartamento em São Paulo, pois ela estaria lá, sempre lá a me vigiar e perseguir. Nesse dia eu acordei zonza e confusa, inclusive já havia parado de tomar os remédios que o Dr. Ciro, psiquiatra da cidade havia me recomendado, atendendo ao pedido de meu pai, para que eu pudesse me acalmar.Mas talvez por seqüela dos remédios, eu não conseguia por mais que tentasse coordenar minhas idéias; não havia em minha consciência um ritmo linear, natural, que me fizesse tomar atitudes corriqueiras e cotidianas; eu zanzava pela casa, simplesmente zanzava feito Marieta, perdida, sem direção nem sentido; somente sentia um clima de suspeita no ar que rondava a todos, mas o mais incrível é que nós todos estávamos entrelaçados uns aos outros, todos ligados em algo superior de interesse comum, sem alternativas para uma outra vivência grupal senão aquela da qual eu vivenciava e acreditava na participação de todos. Eu podia sentir, sabia na verdade que todos da casa estavam amedrontados, e alguns tentavam me ajudar com discrição. Eu, por minha vez temia minha mãe, tinha naquele momento a certeza de que ela era capaz de “matar” se tudo não corresse do modo “certo”. O que significava que se as coisas não corressem do “modo certo”, ela poderia sofrer graves conseqüências da minha loucura, e eu acreditava nisso com todas as minhas forças. Eu sabia também que eu não estava louca, mas lá, naquela situação e circunstâncias eu cumpria esse papel, como uma atriz num palco, e isso somente eu parecia saber. Algo muito grave acontecia na nossa casa da praia. Todos andavam bem devagar. Valéria dava-me a todo o momento dicas de como eu deveria fazer para agir “certo”, como eles; para que eu me tornasse “normal”, ou seja, para que eu não perdesse de vez minha identidade dentro da família e de mim mesma. Eu também sabia que deveria me precaver dos intrusos, Solange, por exemplo, torcia a favor da minha loucura e Cássio sem ter muita consciência do que acontecia me confundia mentalmente ainda mais quando tentava defender a tia me colocando na condição de vilã frente às investidas grosseiras de Solange.Eu sentia-me triste por ele, culpada, gostaria que ele me deixasse em paz. Minha mãe parecia também não haver percebido com exatidão o que acontecia; parecia sim sofrer muito, lavava a roupa ou se ocupava com outro trabalho qualquer e me culpava em pensamentos. Eu sabia disso, por isso eu também perigava morrer, cair na loucura completa. Pensava...Na verdade minha mãe é a louca, mas ela culpa a mim nesse momento tentando escapar da verdade, que ela no fundo sabe, mas agora ela não poderia aceitar esse fato, nem eu suportaria vê-la sucumbir, eu deverei agüentar a culpa. A casa estava numa completa bagunça, todos os cantos estavam bagunçados, o que mostrava como todos nós estávamos desorientados frente aos fatos que se davam na casa da Praia dos Sete laços, apesar de todos acharem que estavam agindo do modo certo e que somente eu estava descontrolada. Progressivamente a casa foi se tornando desse jeito.Meu quarto que antes estava sempre arrumado, agora era completa desordem: aquele meu canto antes de refúgio foi descoberto, penetrado mesmo pela desordem, pela falta de equilíbrio de todos. Mas todos se seguravam como se nada estivesse acontecendo. Então naquele momento tomando a dianteira pensei...Que era preciso estabelecer uma certa ordem, tornar aquele quartel frio numa casa aconchegante, numa casa digna de nós. De uma família normal sem Hitlers, Nietzsches ou bailarinas. Comecei então estrategicamente a limpar meu quarto, bem devagar porque tudo era perigoso e nada poderia ser feito contra as ordens de minha mãe. Eu havia me entregado desde o momento em que lá cheguei, na verdade eu estava mesmo aberta para o mundo com o nascimento de Eva e por isso deixei meu coração e meu corpo entregues também a eles naqueles dias, fora Eva que eu já nem mais via, nem mais percebia seu ser. Tudo lá na casa da praia, ou melhor, minha própria sanidade, dependia da sanidade da maioria, não havia outra maneira, as coisas haviam caminhado daquela forma, e eu sabia lá no meu íntimo quase que apagado que eu iria conseguir resolver aquela trama cheia de percalços, da qual eu havia mentalmente me envolvido. Imaginei que estava num castelo e que eu era a Cinderela e por isso tinha o dever de trabalhar muito, limpar tudo, mas com cuidado porque minhas irmãs eram perigosas porque não possuíam por mim um amor verdadeiro e minha “suposta” mãe também que apesar de nada falar, por sua forma de agir tornara-se a madrasta da Cinderela. Eu sabia que vivia um teatro e que seria necessário ir em frente, pois era verdadeiramente vital para que eu pudesse encontrar uma saída plausível...Que eu botasse ordem no pedaço bem devagar, que ninguém percebesse, para que eu não fosse alvo de nada, que eu passasse por todos como nada. Só assim eu poderia ser eu, a Jennifer, mas eu sabia no meu íntimo que eu só poderia ser Jennifer, eu mesma, longe daquela casa e de todos que talvez sem perceberem me acorrentavam. Ela ou eu mesma, ou seja, Jennifer...Pensava...Nos tornamos o alvo das atenções, uma atenção desprovida de amor, ao contrário, cheia de ódio e inveja das minhas pseudoirmãs e através delas da minha mãe também, que havia se transformado nessas circunstâncias na madrasta da Cinderela. Essa era minha realidade, uma situação em que eu não tinha mais forças, mas dentro do meu peito uma ansiedade maior que a minha falta de força; seria preciso ser escrava...Pensava... Cinderela e arranjar aliados para conseguir superar a loucura que parecia ter abraçado todos nós, pois a loucura era da família, agora da rejeição dela por Jennifer; rejeitando a família Jennifer existia bem quietinha, muda, o que se expressava era a loucura da falta da forma de não poder ser ela mesma.Na verdade eu deveria alcançar o nada, ser nada para me salvar das garras doentias da inveja e dos ciúmes, talvez da própria humanidade, aqui representada pela minha família... Logo encontrei aliados. A primeira foi tia Valéria; senti por ela uma amizade profunda. Ela já possuía por sua vez olhos de louca, seus olhos estavam mesmos arregalados e assustados, não se arrumava mais nem ia a praia ou a outro lugar qualquer. Mas ainda possuía um fio de consciência e eu podia confiar nela, sabia disso. Junto comigo passou a arrumar a casa bem devagar, me dava toques de como devia ser, de como eu devia agir para não despertar a curiosidade ou atenção dos demais. Marieta também parecia me ajudar com cautela. Senti-me mais forte quando meu pai também pareceu perceber a situação e sutilmente trocou comigo olhares de conivência. Minha filha Eva jogada ao acaso, nas mãos de todos estava bem, era bem tratada; Laila parecia tranqüila, em meu íntimo sentia seu apoio; saia normalmente com as amigas, sempre de bom humor e confiante e Cássio já não me importunava mais. Os filhos de Valéria me faziam companhia, e me apoiavam em alguns momentos difíceis; quando, por exemplo, minha mãe aproximava-se arisca para me atacar com olhares ou mesmo mortificada em si ou ainda com palavras. Matilde e Solange aproveitavam a praia como nunca, cheias de energia sem me darem a menor atenção, indiferentes a mim.Minha tristeza e loucura a alegravam, ao contrário da minha felicidade que era alvo de crítica e mau humor por parte delas. Mas acredito ter errado, pisado na bola, pois nessa brincadeira de Cinderela acabei por chamar a atenção de minha mãe; logo percebi que algo de errado havia acontecido quando senti no meu peito uma dor muito forte, igual a uma facada, seguida de uma falta de ar absurdamente sufocante. Eu sabia que meus pais e tia estavam sofrendo e eu, a louca, a culpada de tudo, precisava resolver este enorme problema em que havia me metido. Procurei então por minha mãe para lhe dar um pouco de amor, achando que poderia acalmá-la como às vezes acontecia e indo ao seu encontro olhei para seus pés com carinho, pois sabia do enorme complexo que ela tinha pelas varizes adquiridas durante a minha gravidez, mas ele estava preste a morrer e nada naquele momento mudaria aquela situação. Em meu peito direito um quebrar forte, Hai Hitler, mata!Pensei...Minha mãe é louca, ela quer me matar, sentindo tão profundamente aquela dor que me assolava o peito...Irei até o fim. Não há remédio senão endoidar de vez, morrer se for preciso! Gritei, um grito de dor profunda, toda minha dor: daquela casa, daquela gente que sofria por mim ou por sei lá o que. Por minha mãe não ter paz, por meu pai não ter mais forças, pelos olhos de Valéria. _ minha culpa! Gritei._ Quero ir já para o manicômio. Internem-me vamos; eu sou louca. Ontem fui Nietzsche e hoje sou Hitler. Hai Hitler, Hai. Gritava em continência com toda força da alma de minha mãe. Ela me olhava estupefata; era ela a louca e eu a representava naquele momento, a sua loucura. Gritei com toda força do seu ódio. Meu pai calmo segurava-me fortemente querendo me conter; esperneei como uma criança mimada e gritei até drenar o meu ódio, a minha dor gerada por aquelas malditas circunstâncias. Minha mãe sem se dar conta da minha aflição que era a dela própria voltou para a cozinha me dando as costas e eu pensei... Matando em mim a dor dela, que eu compreendia e que me penalizava. Pensava que ela teria sido realmente Hitler, que nunca tivera o amor de uma mãe, ela, tão dolorida; que era brilhante, surpreendentemente inteligente. Ninguém, eu sabia, poderia supera-la e, no entanto ela era tão triste, faltava-lhe o amor materno, de compreensão jamais tida para ela apesar de minha avó materna ter sido enquanto viva tão dedicada a família de oito filhos. Gritei tão fundo e joguei para o alto a mesa de mármore que ela gostava tanto. Provava assim minha loucura.E Pensava...Que agora eles me levariam a sério, pelo menos na minha loucura, já que a Jennifer sempre foi café com leite nessa família, que sempre foi literalmente usada por todos por sua ingenuidade e entrega que se esqueçam da Jennifer e saibam que aqui... Gritava eu, dentro desse palco da minha vida..._Está uma louca que precisa ser internada. Não me larguem a sós nesse momento, não me matem, me internem, eu preciso da ajuda por vocês. Fui para rua pulando e gritando: _ Eu sou louca, eu sou louca, olhem-me...E me rasgando gritava com todas as forças do meu ser: _Eu sou louca. Minha filha Laila e meu pai foram atrás de mim, na calçada da casa e tentaram me acalmar. Acabei por fim me acalmando e comigo parece que todos. Minha mãe por sua vez continuava a fazer o almoço como se nada estivesse realmente acontecendo. Nesse momento Valéria conversou seriamente comigo, com ares de professora, na frente de todos, me aconselhando a manter a calma, tentando mostrar segurança, e eu lhe respeitei. Ela a única mulher, adulta e familiar digna de respeito, que carregava em si um pouco de amor. A mesa para o almoço foi colocada por Marieta. Sentei-me em uma das cabeceiras; olhei para a mesa e vi a mesa repleta de asnos; minha mãe era o próprio boi Zebu. Toda comida cheirava a macumba, o frango inclusive me pareceu nojento, todos eram nojentos, a mesa era nojenta e eu como num ritual engoli o asco, o quiasco da verdade nua e crua daquele momento; todo meu asco engolido em pequenas garfadas de comida. Olhei em linha reta e percebi o perigo, tudo se cruzava, mata! E eu matava, trocava, quebrava a cada momento. Lembrei-me de Marieta riscando o chão em cruz quando caia uma faca ou garfo e quando eu lhe perguntei porque fazia isso ela me respondeu que era preciso, que minha mãe havia lhe ensinado, na verdade eu mesmo havia feito isso algumas vezes sem saber porque. Mas naquele momento na praia dos Sete laços, todos juntos matavam, trocavam e quebravam em cruz, e faziam de conta que tudo estava normal, como se nada estivesse acontecendo. A casa estava um lixo, lutávamos contra uma força maior que a nossa, era a do próprio boi zebu, minha mãe era. Tudo era perigoso: uma correria mental de todos em função do mata! Pratos com restos de comida no chão da cozinha, como se Marieta e Alice não estivessem mais dando conta do recado. E um pensamento tênue, sem fim na cabeça de todos, uma corrente de pensamentos interligados e doentios. Eu sentia-me suja, meus cabelos engordurados e minha pele seca. Corri ao banheiro e tentei tomar um banho sem, entretanto conseguir; Laila me socorreu levando-me à suíte de meus pais e me deu banho na banheira, cuja água suja que lá deixei era verde, da cor da mata. Vesti então uma roupa branca e lembro ter visto ao meu redor uma luz tão branca, capaz de matar aquele clima de penumbra e morte que nos rodeava. Fui para sala e sentei-me ao lado de meu pai, logo recomecei a rodopiar feito um pião e a falar coisas sem nexo. Meu pai quieto somente assentia com a cabeça. 19 Quantas lembranças...Desconexas lembranças. Eu, por minha vez, já não mais me agachava como antes em função de uma força maior que a minha, na verdade sempre todos agachavam muito, de cabeça baixa trabalhando feitos formiguinhas, sem parar. Uma força que me fazia lembrar da ex-mulher de Júlio, quando ela freqüentava nossa família, ela sempre se agachava dando a impressão que estava fazendo força, como se estivesse mesmo pronta a parir, ou como se estivesse segurando algo muito pesado entre as pernas. Meu pai por sua vez não suportava “a maldita” diferente de Júlio que parecia amá-la muito, sem se dar conta que a mulher freqüentava magia negra e que era traiçoeira etc e tal. Minha mãe a tratava muita bem; o que eu não conseguia entender direito porque nossa mãe que sempre foi submissa a meu pai, referente a algumas coisas não o era principalmente naquilo que dissesse respeito a Júlio, devido seu grande amor por ele, não o colocava na balança da justiça de meu pai, pois para ela o filho tinha razão sempre, lembrando-me inclusive do mito grego que Zeus matara Cronos seu pai apoiado por Reia sua mãe, o que me deixa pensar que Young estivesse certo quando falou do inconsciente coletivo enunciado pelas origens; bom aí já seria uma outra discussão que eu não gostaria de levar a cabo neste momento de minha vida em que relembro e relato os fatos, em que muros de medo se ergueram a minha frente, naqueles dias fatídicos, que passei na praia dos Sete laços. Na verdade nossa mãe sempre tratou a ex-mulher de Julio bem melhor que a mim e que a Solange também, com todo apoio de Matilde que era amiga íntima da cunhada, diferente de meu pai, que apesar de ter tido uma educação muito enérgica, cheia de moralismos acabou se tornando liberal, talvez por ter sido um grande jurista, um burguês mesmo intelectual, quase que sem resquícios daquela educação machista, em que a mulher era um ser inferior comparada ao homem; pelo menos tratava as filhas como iguais ou mesmo como superiores a ele; já em relação à maioria das outras mulheres inclusive a nora e minha mãe as consideravam inferiores, cheias de instintos e pouca capacidade de reflexão; assim referia-se, por exemplo, a minha mãe, quando ele presenciava atitudes irracionais, que poderiam ao seu ver refletir negativamente nas filhas queridas, podendo prejudica-las emocionalmente; quanto à nora para ele não havia nada que a salvasse, suas atitudes lhe pareciam interesseiras e nela não havia nada de natural e verdadeiro, o que com o tempo confirmou-nos ser a mais pura verdade quando descobrimos sua verdadeira personalidade. Minha mãe, entretanto e Matilde também continuaram a trata-la muito bem, mesmo depois da separação de Júlio; o que me fazia ficar com uma pulga atrás da orelha e a desconfiar também de minha mãe e Matilde, mas acabava por acreditar que a tratavam assim por meu irmão que continuava a respeita-la, mesmo depois que as máscaras da mulher caíram ao chão deixando seu rosto nu mostrando seu real caráter, o de uma mulher sem escrúpulos; talvez pensava... Júlio agisse assim pela filha Anita, para que ela não sofresse tanto quanto ele. Nosso pai sempre a tratou com certo deboche e ao meu ver com muita coerência frente à realidade dos fatos. Ele por sua vez nunca foi perfeito possuía alguns defeitos que eram vistos com transparência, por exemplo, nunca soube agradar uma mulher como um verdadeiro cavalheiro, ao contrário esquecia-se freqüentemente de detalhes que faziam minha mãe sofrer; nós filhos sabíamos do sofrimento de nossa mãe por que ela sempre reclamava, contava-nos histórias passadas em que ele a havia machucado por alguma falta de atenção a pequenos ou grandes detalhes; como por exemplo, uma vez em que ele a esqueceu grávida dentro do ônibus e acabou dando por sua falta quando já caminhava pela calçada, voltou rapidamente e a encontrou entalada na porta do ônibus sendo ajudada pelo motorista. Essa história nós (filhos) escutávamos pelo menos uma vez cada tres mêses, entre outras tantas...De um ano para cá nosso pai passou a dar mais atenção para ela; passou mesmo a admira-la muito, talvez desde que mudaram para praia dos Sete Laços; eles pareciam felizes, nunca se largavam, mas juntos agora reclamavam dos filhos; claro que as reclamações eram direcionadas principalmente a Solange e a mim porque minha mãe jamais admitiu que se falasse algo sobre Matilde e Júlio, e a tudo que direta ou indiretamente lhes pertencia, sendo assim eu a caçula que sempre amei Solange, que fui mais educada por ela do que por meus pais porque sempre me largaram a sua mercê, acabava levando por mim e por ela; quando, minha mãe reclamava dela, eu era sua advogada nunca admitindo que Solange fosse tão errada quanto minha mãe gostaria de provar, já meu pai oscilava entre minha opinião e a de minha mãe acredito que ele tentasse ponderar as atitudes de Solange para diminuir o seu próprio sofrimento; Matilde, entretanto era pior que minha mãe, colocando Solange abaixo do pó da rua. Eu por minha vez nunca gostei dessa forma que Matilde agia pelas costas, mas também jamais fui capaz de entrega-la a Solange, tentando por panos quentes; entretanto hoje, quando sou eu a vítima, Solange se agarra com unhas e dentes a minha mãe e Matilde contra mim e ainda piora a situação quando cheia de inveja envenena meu pai. Esta traição é por demais grande e penso que talvez eu não consiga nunca mais amá-la da mesma forma que antes. Por vezes penso também, pôxa...Que ela tem o direito de agora que eu sou para eles motivo de infortúnio, que ocupei de vez o seu posto, de obter um pouco mais de carinho de minha mãe e Matilde, afinal sempre foi ela a maldita, apesar de sempre ter amado muito Matilde, e sair dessa pra melhor dentro do “suposto” colo familiar não deixa de ser uma situação atraente para ela. Eu, por minha vez, também sofria por minha mãe e por meu pai quando sentia dó deles. Perguntava-me se era normal aquilo tudo quando via minha mãe em crise tomando atitudes excessivas, como por exemplo, quando naquele dia nefasto em que tentou se atirar pela janela, ou quando eu ainda criança a vi com uma faca na mão, querendo mata-lo; dia em que desesperada saí correndo a procura de socorro e chamei minha avó paterna que apesar de ser dona da casa onde morávamos morava nos fundos com meu avô; minha avó correu comigo para casa grande e quase bateu na nora, gritando muito; minha mãe me olhou e eu chorei de dó dela.Corri então para o meu quarto que era também dos meus irmãos e pensei muito... O que havia de errado com meus pais E sempre foi assim, talvez muita paixão. Porque hoje eles estão tão juntos, meu pai céu e minha mãe terra. Lembro-me certo dia na casa dos Sete laços em que meu pai estava sentado no sofá da sala olhando pro nada, um olhar vago, até mesmo vazio e Marieta entrando na sala olhou para ele e foi rapidamente para cozinha dizendo para Alice que ela deveria esquentar o patrão e que Alice se apressasse e fizesse um café e logo então trouxe um café a meu pai e conversou um pouco com ele. Tive nesse momento um insight, pressenti que era necessário que minha mãe fosse tão quente, no sentido mesmo dela ser furiosa para que meu pai vivesse quente, senão ele esfriava e morria. Marieta que era acostumada com os dois, afinal depois de 20 anos trabalhando para eles, agia de acordo com os costumes da casa geralmente controlados por minha mãe. Um outro dia também aconteceu de eu ficar boquiaberta quando minha mãe falava com Marieta enquanto segurava a máquina de lavar que parecia querer voar, dizia que era para segurar o coração dele (de meu pai) e desesperada repetia: _ Segura, segura o coração do Leopoldo. E eu observava as duas penduradas na máquina velha que queria sair correndo e minha mãe: _Segura forte, não deixa, olha o coração dele!Cuidado! Até que a máquina milagrosamente ficou normal e passou a bater regularmente então minha mãe e Marieta se afastaram da máquina como se tivessem finalmente cumprido a imensa tarefa de acalmarem o coração de meu pai. Meio a minha loucura, mais tarde revelou-se, ficando muito claro para mim que nosso pai era capaz de alcançar níveis estupendos de abstração. Possuidor de extrema racionalidade, mas também de um coração fraco, já tivera alguns enfartos e no íntimo era um nenezão, muito mimado pela minha avó, continuava entre tapas e beijos sendo mimado pela minha mãe e por todos da família apesar dos contra. Com certeza nossa mãe sempre ansiou por seus olhos azuis que parecem exprimir o céu, e haja ansiedade pra se chegar lá. Certa tarde lá na praia, um tio, irmão de minha mãe foi visitar-nos; eu ainda sentia-me bem; eu estava no jardim esboçando uma pintura na tela e pela porta aberta da sala eu podia escuta-los e vê-los; meu pai conversava com meu tio. Houve um momento que meu pai sumiu, seus olhos pairavam no céu. Observei bem seus olhos e lembrei-me dos olhos de Solange, imaginei que ele poderia estar pensando nela, algo de idêntico entre os dois no olhar. Os olhos de meu pai ficaram gravados em mim então fui mais além, sentei-me no jardim e olhei o céu. O céu estava baixo e forte. Um céu tão forte, denso e baixo. Percebi então que meu pai alcançava grandes alturas. Nos dois dias seguintes continuei a ver o céu baixo e eu amei muito meu pai por isso. Na verdade não queria separar-me dele para poder continuar a ver o céu baixo, afinal era tão bom. Acredito que Solange sentisse o mesmo e minha mãe também; só que minha mãe como mulher dele tinha a obrigação de mantê-lo sempre junto dela olhando o céu. Talvez quando ela percebia que ele olhava o céu por outros olhos que não fossem os seus sofria. Sempre arisca puxando para si seu homem. Houve bons momentos em que tive a sensação que meu corpo queimava com um fogo que ardia vindo das montanhas refletido na casa da praia tão forte, insuportavelmente forte. Todos pareciam viver esta mesma sensação que vinha da união de meus pais, para eles tudo parecia ser normal. Acredito que seja essa a vida deles dois só. Um arder eterno. Talvez entre eles não exista mais sexo, o que exista seja esse queimar que se expande. Um casal maravilhoso, digno de uma filha louca. Entendo, no entanto que eu invadi o mundo deles, sem as suas devidas permissões, por isso era necessário eu me afastar e eu tinha plena consciência disso apesar de também ter sido envolvida naquela teia de fatos, sentimentos e sensações...Até onde seria eu? Pensava então na unidade, em Deus e finalmente no ponto, livro que acabara de escrever e que ainda era o centro da minha vida. Tudo aquilo que eu sentia e via me fascinava e ao mesmo tempo me inspirava medo, medo do desconhecido, mas era preciso saber, entender, ir até as últimas conseqüências. 20 Na mesma tarde do dia em que tive uma grande crise de loucura, que sai na rua gritando, minha mãe e minha tia levaram-me para dentro de um táxi; eu não sabia para onde íamos, pensei que elas estavam me levando para um médico ou talvez para um manicômio, uma clínica qualquer de doentes mentais, mas não, elas levavam-me para um centro espírita não sei se era de umbanda, acho que sim; acreditavam que eu estivesse com algum tipo de encosto espiritual. Chegamos lá no tal centro. Sentei-me calada no banco gelado de cimento e ficamos esperando sermos atendidas: minha mãe, eu e minha tia; enquanto esperávamos eu aprendia muito, pelo menos acreditava que através da minha visão alterada pela loucura eu aprendia algo sobrenatural.Logo que lá entrei num pequeno quintal, bem simples vi um bode amarrado, e quando eu o olhei firmemente interessada pelo inesperado, pois não imaginava encontrar lá um bode, ele começou a berrar: o moço que o puxava pela corda que estava amarrada no seu pescoço dizia: _Essa vai ser difícil. Eu, dura como um pau, tensa, acreditei e achei que o berro do bode tivesse a ver com o fato de eu tê-lo olhado demais e ele sentindo-se invadido assim como eu me sentia, por exemplo, quando minha mãe ou Solange me olhavam desse modo, gritou! Achei então que por isso o dono do bode havia percebido tudo e por isso disse que eu iria ser difícil, como se o meu encosto, que todos pensavam existir, fosse um ossinho duro de roer, difícil de ser tirado de mim e que eu realmente deveria ser tratada...Pensava sentada e quieta; num outro momento, sentia-me pesada, olhava para os pés e era difícil ficar na mesma altura de todos, procurava-me encolher tentando diminuir meu tamanho que era absurdamente grande; isso tudo me esgotava e eu continuava a ser o centro das atenções. Não sabia como eu devia agir pra me relacionar com aquelas pessoas que estavam lá esperando como nós; minha mãe por sua vez conversava com os presentes, mas não me largava um só instante, ela estava dentro de mim. Meu pé estava preso, podia sentir isso, sabia que eu estava presa nela, na minha mãe que por sua vez trazia dentro de si Matilde...Nós três estropiadas, que éramos uma, que não éramos ninguém. Eu mal podia falar, mesmo assim, nessa prisão, tentei me expressar, afinal estava lá para ser ajudada e acreditava ou pelo menos tinha esperança de poder melhorar. Levantei-me à frente de minha mãe, soltei meus sentidos e quase penetrei nela, quase cai sobre ela com a perna direita esticada para traz, presa. Eu era uma bailarina, eu era minha irmã Matilde, extremamente tímida, presa a minha mãe nas entranhas. Eu era jovem, pelo menos assim me sentia: devia ter uns 12 ou 13 anos. Disse a minha mãe que eu era a bailarina, que eu era Matilde, então ela assentindo com a cabeça permitiu que eu continuasse. Estiquei minhas pernas e quase cai em espacarte, rodopiei com o corpo para direita e não pude parar: era preciso rodopiar, rodopiar sem parar. Valéria que me observava com atenção nesse momento disse-me: _ Chega Jennifer! A bailarina agora não! Parei sentindo-me presa ainda. Tinha medo de desagradar minha mãe, ela provavelmente estava passando vergonha, minha tia havia avisado-me para parar. Eu precisava controlar-me. Na minha cabeça um pião que rodava e rodava; lembrei-me nesse momento, da filha mais jovem de Matilde que às vezes punha-se a rodopiar voltas e mais voltas sucessivamente. Fui então finalmente chamada para ser atendida por um homem vestido de branco que me pôs sentada e em seguida sentou-se em frente a mim pronto a ler búzios, na sala pequena e abafada com cheiro de incenso, achei uma loucura que eu naquele estado fosse levada àquele homem para que ele me lesse búzios, quem sabe numa outra situação eu até gostasse, mas pelo amor de Deus pensei... Pouco pude falar, disse-lhe apressadamente, num desabafo, como se vomitasse as palavras pra mim tão dissonantes e soltas naquele espaço tão sem sentido e amedrontada sem respirar falei que eu era filósofa, artista plástica e que eu estava há algum tempo com meus pais na praia dos Sete laços e que eu queria voltar pra minha casa na capital urgentemente e que ele deveria me ajudar. Ele pareceu me entender, olhando-me firmemente largou os búzios.Chamei então minha mãe, que estava á porta, como que lhe pedindo socorro, pois não suportava tamanha tensão que se assolava sobre meu eu afobado e ela me devorando com os olhos entrou na pequena sala e ficou em pé atrás de mim falando que já não sabia o que fazer... Ele então tentou acalma-la dizendo-lhe que eu deveria voltar para minha casa na metrópole que seria muito bom pra mim. Ela estava furiosa e eu tinha muito medo. Sai e a deixei só com o tal homem de branco.Lá fora tinha um gato que dormia duro com as pernas para cima. Minha mãe que saiu logo atrás de mim apontou-me o gato; eu gelei e um grande frio percorreu minha barriga porque nesse mesmo momento vi como uma lembrança viva Anita, filha de Júlio repetindo Eva, Eva, Eva; como se houvesse intrinsecamente àquela situação uma ameaça e que o gato duro apontado por minha mãe furiosa e a lembrança de Anita repetindo obsessivamente o nome de Eva pudessem me coagir, me tornar impotente frente ao meu medo de Eva ser atacada de alguma forma; assim me submetiam tiranicamente para que eu fosse instrumento deles e não Jennifer, dona de si, filósofa e feliz; nesse instante a imagem de Eva surgiu em meus pensamentos, eu tinha muito medo que ela sofresse conseqüências por tudo que nós estávamos vivenciando lá naqueles dias na casa da praia; olhei novamente para o gato duro pensando que ele poderia estar morto, mas ele sorrateiramente espreguiçou-se e levantou dengoso; em meu coração senti que Eva estava bem. Fui rapidamente para o quintal, onde estava o bode e lá vi surgir meu pai com Júlio que acabava de retornar e que vinha ao nosso encontro muito preocupado e ansioso, a fim de saber das últimas novidades a meu respeito, sobre meu estado. Em minha cabeça, em meus pensamentos já havia apelidado Júlio de Quiasco: o único filho homem de minha mãe, aquele que sempre engoliu o nojo, aquele que aprendeu a levar facadas. De imediato senti-me melhor, sustentei-me firmemente em pé lembrando-me do homem de branco. Mas em sua ansiedade eu vi Júlio empolado, orgulhoso como um galo e suas palavras para mim não tinham sentido, pois eu o ouvia como um galo cantador: _Co-có-ró-có-có. O que? Por que? O quê! Sem piscar, atento, curioso, exaltado. Sempre na mira. Fomos embora daquele lugar. Vivenciávamos juntos um tênue pensamento novamente: aquele fio de linha telepático...Estávamos melhor, Júlio um pouco menos ansioso dirigia o carro de meu pai. Meu pai, minha mãe, Valéria e Júlio estavam presentes comigo dentro do automóvel de volta a casa da praia. Num ar de respeito mútuo, naquela atmosfera tênue pairava no ar um “deixa que agora eu seguro” vindo da segurança ansiosa de Quiasco.Todos pareciam acreditar, preocupados, que estavam resolvendo um problema extremamente difícil: eu. E eu preocupada em resolver um problema extremamente difícil e peculiar: eles... Chovia muito forte quando chegamos na praia dos Sete laços, em casa e já era noite.Consegui finalmente relaxar, deitei no quarto de minha tia, na cama de casal, fechei a porta e descansei alguns minutos. Levantei para ver se Eva estava bem; não me lembrava com quem ela havia ficado na casa enquanto estávamos fora; conversei um pouco com minha tia e ela disse-me para ficar sossegada que tudo corria tranqüilamente. Deitei novamente e fui assombrada por um vulto vampiresco: era o vulto de minha tia. Levantei-me rapidamente saindo do quarto, amedrontada e comecei a reparar em Valéria; na mesa do lanche ao lado de meu pai e minha mãe ela saia-se muito bem, com um olhar profundo que sabia das coisas ela se portava entre eles como uma mulher. Eu a imitava tentando aprender...Um ar vampiresco percorria o castelo, que era nossa casa. Solange já havia ido embora para capital juntamente com meu filho Cássio, o primogênito de Valéria e Matilde também, e isto sem dúvida facilitava a atmosfera que era úmida, verde escura e tranqüila. Quiasco logo percebeu que estávamos diferentes e aquietou-se entre nós participando do ambiente noturno e vampiresco, como num teatro, ele simplesmente entrou no palco atuando majestosamente. De início quando chegou na casa, falava alto e tentava movimentar o ambiente, mas bem rápido percebeu que era preciso o fio telepático da relação familiar calmo e horizontal para que todos ficassem bem. Minha filha Laila também era uma pequena vampira, o filho de Valéria também um pequeno vampiro.Meu pai e minha mãe calmos. Tudo tão calmo, tão verde, tão úmido. Minha mãe avisou-me que Eva iria dormir com ela, eu deixei apesar de sentir ainda medo de minha mãe; não sabia bem do que, afinal tudo estava diferente, mas no meu íntimo sabia que aquela tranqüilidade aparente guardava dentro de si algo que não era do meu Deus interior, aquele palco verde cheio de ares vampirescos não era na verdade o meu mundo e o de Eva aquele no qual estávamos acostumadas a viver na capital, sim...Pensava...Tudo era teatro, estávamos num palco, mas esse palco era o palco das nossas vidas; uma realidade irreal para minhas convicções de filósofa. Bem, mas tudo parecia estar melhor, Matilde e Solange não estavam mais lá e eu haveria de me conter, de não ter mais crises. O nosso quarto, meu, de Laila e Eva havia sido inundado pelas águas da chuva que penetravam pelo lustre, então dormiríamos no escritório de meu pai em colchões provisoriamente espalhados pelo chão. Eu e Laila nos acomodamos aos colchões a fim de dormirmos; Laila com sono não queria conversar apesar da minha insistência. O clima verde escuro e vampiresco me amedrontavam. Eu sabia que todos tinham habilidades especiais, podiam sumir quando quisessem; inclusive eu possuía essa habilidade ou mesmo, podíamos virar morcegos. Minha imaginação vivia tudo isso de forma intensa, se quisesse eu podia passar desapercebida: era só pensar...Sou um morcego. Em segundos então me imaginava voando, talvez um pássaro preto. Aprendi essa habilidade de virar pássaro ou morcego lá no quintal, onde o bode berrou quando eu o olhei atentamente, lá no centro onde o homem de branco nos atendeu, foi num momento de emergência em que aprendi a voar ou sumir; quando a situação apertava, quando meu medo tomava proporções demasiadas grandes eu imaginava que sumia e ninguém podia me ver e parecia dar certo, depois de muitas tentativas vãs eu havia conseguido, então para me distrair “sumida” que estava, voava alto na figura de um pássaro preto. Mas à noite no escritório escuro e verde sentia medo, não um medo absurdo como no centro, não estava sendo ameaçada diretamente por ninguém numa situação sem escolha; ao contrário, meu medo era suave, mas constante. Temia Júlio, ele estava muito ansioso, apesar dele estar mais calmo do que quando chegou com nosso pai em São Cristóvão, mas sua ansiedade ainda me mortificava, meu coração dava saltos. Eu sabia o quanto ele era ligado a minha mãe e minha mãe a todos e eu também temia minha mãe. Gritei em pânico e olhei desesperada para Laila que estava ao meu lado, ela não se abalou absolutamente, continuou a dormir profundamente; meu irmão correu ao escritório em meu socorro e minha mãe andando rápido pela casa não se importou com meu grito assustado; eu podia ouvir seus passos pesados por toda a casa. Júlio foi dormir comigo e com Laila no escritório apertado de meu pai. A noite toda eu fiquei de alerta, não podia realmente dormir, sentia-me responsável pelo bom andamento da casa, devia sim protege-la. Talvez pensei...Que eu estivesse a tal ponto desagregada do meu eu que eu estivesse sentindo meu irmão, aquilo que ele sentia por mim naquele momento, mas eu estava realmente mais calma com Júlio por perto...Pensava então mais solta no que havia aprendido naqueles dias absurdos na casa da praia; sabia que aprendera muito, que podia com um piscar de olhos, ou com um movimento do nariz mudar os fatos quando estes não estavam ao meu ver retilíneos, numa ordem linear e natural, mas eu deveria manter a calma sempre e acreditar firmemente que eu realmente podia, assim eu fazia... Será que aquilo que fazíamos era feitiçaria...Pensava absorta, lembrando que eu havia visto sim, inclusive as crianças praticando esta arte...Mas esta loucura tão real também me assustava, essas revelações de um poder tão sobrenatural...Mas eu sabia que nada acontecia sem passar antes pela peneira, daquilo que realmente deveria acontecer para se manter a paz, ou para salvar a paz em momentos de guerra, aprendíamos o sobre natural para solucionarmos os problemas que já não tinham salvação; éramos na verdade obrigados a aprender o que jamais poderíamos imaginar que fosse possível, para sustentarmos a vida e não cairmos no caos devastador do desconhecido mundo da loucura do inconsciente; então soberanos superávamos a minha loucura que na verdade era do conjunto de todos que estavam na casa ou mesmo fora dela, mas que de alguma forma estivesse participando daquela roda viva de situações, o que me fazia novamente pensar no inconsciente coletivo de Young e de uma ligação de todos com todos. Pensava que felizmente o meu Ponto, do livro que acabara de escrever estava vencendo e trazendo à tona coisas incríveis, era preciso ir até o fim e eu já havia chegado lá, pois no dia seguinte iria voltar a capital. Eu havia conseguido superar a fragmentação do meu ser, apesar de estar ainda com a sensibilidade em carne viva, à flor da pele, mas eu sabia que iria superar, pois eu estava bem. 21 O dia seguinte foi incrível, na verdade um dia maravilhoso! O sol voltara a nascer branco e límpido. Eu estava bem melhor; arrumei minhas malas com capricho, entretanto estava dispersa, mas consciente, como se estivesse vivenciando outra percepção diferente daquela que havia conhecido durante toda minha vida; andava pela casa e punha os objetos no seu devido lugar. Nesta busca de ordem acabei por notar que em cada canto da casa havia lembranças de amor, mesmo no banheiro da suíte dos meninos havia porquinhos de plásticos rosas e amarelos espalhados de uma maneira uniforme e retilínea. Vasos de flores colocadas ao acaso de uma forma bela. Em cima da cama de minha mãe uma desordem ao meu ver ordenada; encontravam-se lá os apetrechos da mala que ela esvaziou para me emprestar; sobre a cama um casaco antigo e um gorro de pele de lontra. O quartel havia desaparecido por completo. Na cozinha um cheiro bom de comida, Valéria preparava uma boa sobremesa, por falta de bolachas de maisena utilizava pão umedecido ao chocolate. Meu pai sentado na sala estava tranqüilo, sumia quando queria; minha mãe arrumava as roupas no varal sob o sol claro. Júlio dormia refestelado ao sofá da sala ao lado de nosso pai. Os jovens jogavam baralho na sala de jantar, escutavam música e riam moderadamente. Sem a mesa de mármore que eu havia quebrado no dia anterior a sala tornou-se espaçosa e arredondada. Eva no carrinho comia a papinha de legumes que eu lhe dava. De repente olhei para meu pai e vi Platão. Não acreditei! Olhei novamente e lá estava o discípulo de Sócrates, o grande filósofo grego, cheio de empáfia e sabedoria. Pensei absorta...Que tudo agora parecia se encaixar, que Platão via Sócrates foi à verdade o grande professor de Nietzsche e que Nietzsche de alguma forma influenciou Hitler...Houve mal entendidos entre eles, pois Nietzsche criticou a racionalidade de Platão, mas se não fosse essa racionalidade o filósofo moderno não poderia ter engendrado seu super homem que superou a racionalidade platônica ou socrática e se tornou livre, intuitivo, criativo; a criança dançarina por excelência... Surpresa eu pensava estupefata em Hitler que por sua vez amou Nietzsche, mas infelizmente não conseguiu entende-lo verdadeiramente, ao contrário, simplesmente decepou os pensamentos do filósofo alemão em prol de seu próprio ser bestial pensante. Mas agora tudo parecia se encaixar...Pensava... Porque eu, Jennifer havia descoberto a minha identidade passada e mesmo que dúvidas existissem, não fazia mal, porque era assim que eu me sentia. Da mesma forma minha mãe, no seu inconsciente ela escolheu a figura de Hitler para se contrapor a mim, naquele momento de loucura em que eu dizia ser Nietzsche, porque na verdade houve uma identificação com seu estado de ânimo; nossas linguagens inconscientes foram sem dúvida reveladoras de nossas almas, mesmo que eu nunca tenha sido Nietzsche ou ela Hitler; mas agora meu pai se revelava aos meus olhos como Platão? Seria possível meu Deus, eu poderia suportar tamanha emoção no meu peito ainda convalescente... Talvez... Lembrando-me que o coração tratado por minha mãe e Marieta era o de meu pai e que ele deveria estar sustentando o meu nesse momento... Mesmo assim levantei trêmula e fui para um canto da cozinha chorar, lá onde ninguém podia me ver, uma grande emoção invadiu meu coração. Meu pai era Platão! Meu Deus eu o vi. Voltei a sala e olhei para meu pai novamente e ele seguro, tranqüilo me dava segurança de que tudo estava bem...Eu podia sim perceber que ele em sua maestria, sem a mínima ansiedade atingia níveis incríveis de abstração e soluções moderadas e iluminadas para tudo. Podia ao mesmo tempo perceber-nos todos e individualmente; telepaticamente arranjava soluções plausíveis para todos nós. Na verdade ele devia ter também aprendido muito naqueles dias...E cortando o silêncio perguntei-lhe se ele conhecia o mito da caverna de Platão o que ele não muito entusiasmado disse-me que não profundamente, parecia preferir o silêncio, mas um silêncio preenchido do nous platônico, tão estudado por mim...Mesmo assim insisti devido a minha ansiedade falando-lhe da minha grande admiração pelo filósofo grego principalmente por sua Paidéia, tão bem apresentada no mito alegórico e que no meu entendimento desse mito, o meu maior medo era sobre a loucura que poderia haver dentro da caverna onde os homens acorrentados que só viam suas sombras e que acreditavam estar vendo a realidade, mas que só conheciam ilusões, o mundo dos sentidos irracionais saíssem apressadamente da caverna em rumo ao sol e enlouquecessem, pois não tinham dado os devidos passos do conhecimento dentro da caverna , mas a ansiedade de atingirem a sabedoria e a felicidade era tanta que aos trambolhões caminhando entre os sábios que encontravam na caminhada rumo a saída da caverna, julgando-se espertos ou talvez por pura insanidade captando sinais do nous de forma doentia, prejudicando a jornada dos verdadeiros sábios acabavam enlouquecendo e pereciam na dor e no sofrimento das suas ambições desmedidas. Que o verdadeiro sábio que passava verdadeiramente pelo caminho do conhecimento percorrido dentro da caverna, da Paidéia platônica, este sim veria a luz do sol a olho nu, cheio de verdade e felicidade. Exemplo disso acrescentei...Hitler, que foi um louco, grande sofredor que só soube espalhar sofrimento e que jamais soube ouvir a voz da razão...Afinal deveríamos perdoa-lo por ser um ser humano imperfeito e doente. Meu pai entendeu o perigo que eu assinalava, já havia entendido antes. Pensei então que ele provavelmente já devia ter saído da caverna do mito platônico e que minha mãe também só que ela aos trambolhões e que eu um dia sairia também... Tive a certeza. Para tal intento seria preciso matar a ansiedade ainda jovem dos meus sentidos e aprender a caminhar com sabedoria evitando percalços...Pensei... Nem que para isso fosse necessário que eu me afastasse da família tão presente ainda em mim. Uma árdua caminhada me esperava e eu daria conta dela assim como já havia dado na teoria do ponto. Nietzsche também se perdeu na caminhada, na decadência da vida, porque sua filosofia foi outra, foi a da vivência verdadeira inclusive dos sentidos, para encontrar o seu âmago, mas analisou cada segundo de sua vida caindo nos aforismos, que cantavam seu ser assim como os poetas pré-socráticos só que mais consciente, pois já havia vivido a racionalidade platônica mesmo sem querer ou pretender. Mas naquele dia, Jennifer, eu mesma, sabia que a compreensão do todo matematicamente, através da racionalidade é que me levaria a saída da caverna de Platão. E Nietzsche, seu filósofo amado que a desculpasse naquele santo dia pois Jeniffer deveria agradecer por seus pais, pela racionalidade de seu pai e pela loucura de sua mãe por lhe terem mostrado por toda aquela vivência trágica daqueles dias a saída da caverna de Platão. Depois da saída à volta para ensinar aos outros a verdadeira forma de caminhar dentro da caverna para que a consciência adquirisse a iluminação.Finalmente eu podia entender e também agradecer a minha família. Eu estava muito emocionada e resolvi sair e dar uma volta pela praia, pedi consentimento a meus pais e com reverência sai com Marieta e Eva. A praia estava cheia de pessoas e um vento forte libertava e transgredia regras normais de conduta. Eu podia notar que uma espontaneidade generalizada envolvia a todos que encontrava: todos mais donos de si. E eu em certos momentos desequilibrava-me apoiando-me em Marieta. Algumas crianças e jovens vieram brincar com Eva; pude perceber que eu não estava solitária nem Eva, que possuíamos ainda aquela aura de amor que irradiava segurança para quem de nós se aproximasse. Deixei então Marieta em casa e fui até o clube próximo de nossa casa com Eva, achei que seria possível, que eu deveria tentar, afinal logo estaria em meu apartamento na capital e lá não teria ninguém para me acompanhar, tudo estava bem. Quando chegamos na piscina do clube fomos recebidas por crianças que vieram ao nosso encontro; olhei ao redor e vi casais de namorados se beijando com amor dentro da piscina azul, num clima de sensualidade sem desperdício. Não cansava de dizer a mim mesma que eu estava bem, estava bem...Quando era preciso, quando de alguma forma sentia-me sufocada por olhares invasores, eu sumia, e tudo estava normal, eu não era uma louca. Voltei para casa de meus pais; dei banho em Eva e a fiz dormir. Eu sentia-me de certa forma segura, já andava como Jennifer, graças a meu pai que me via e sabia de tudo. Por vezes sentia em meu peito um desajuste, tentava captar o que estava acontecendo então logo percebia com clareza uma insegurança qualquer em um de nós da casa. Meu coração então como uma bússola juntamente com outros que me acompanhavam corriam em função desse alguém. Nesse momento foi Laila, eu estava no quarto pensando sobre os acontecimentos da praia dos Sete Laços, revendo os fatos e todo meu conhecimento recém adquirido; refletia sobre quando pensava em alguém e podia instantaneamente ser esse alguém, sentir seus olhos e sua sensibilidade. Pensei no pai de Eva e tornei-me um pássaro perspicaz com olhos de carcará, vi com seus olhos e pude perceber sua astúcia. Vi também com os olhos de galo de Júlio e percebi seu alcance; pensei em Laila e senti que ela não estava bem; corri para sala peguei algumas revistas de arte para folhear dando assim tempo para senti-la melhor e fazer o que fosse possível por minha querida filha primogênita, vi então as paginas da revista com uma nitidez incrível, com um colorido claro e uniforme, as letras e o entendimento saltavam aos meus olhos; eu não estava conseguindo largar psiquicamente minha filha, talvez por perceber sua sensibilidade genial e sabia que eu nada poderia fazer de positivo para ela somente lhe transferir meu estado ainda convalescente e cheio de ansiedade por querer saber mais sobre ela; eu refletia aflita que não deveria invadi-la assim como eu mesma fui invadida; meu pai logo percebeu minha aflição e foi ao meu encontro, pegou uma folha de papel e começou a rabisca-la e em minha cabeça altas geometrias; sentia um pião rodar sobre minha cabeça e cada vez com maior intensidade e ia além num fluir contínuo. Fui procurar Laila e ela estava no jardim tomando sol discretamente sentada numa cadeira de praia; sentei-me ao seu lado no chão e abaixando minha cabeça, como era meu costume ao seu lado em sinal de amor e reverência, continuei lendo a revista de artes com segurança tentando transmitir essa segurança recém recebida de meu pai; em seguida puxei conversa com ela e ela estava triste, atrapalhada, era preciso que ela continuasse em São Cristóvão só, sem mim. Eu iria pra capital e nada poderia fazer por ela, na verdade ela havia feito muito por mim, tão jovem...Meu coração era só piedade e amor, agradecimento, eu não podia fazer mais nada, somente larga-la, deixa-la procurar-se só.Todos pareciam saber o que eu sentia, minha mãe disse-me: - Fique tranqüila que eu faço ela largar. Pensei...Largar do que? Pois sou eu que a estou segurando...Pensei! Mesmo sem entender direito o que minha mãe queria dizer tranqüilizei-me, sempre soube do amor que minha mãe nutria por Laila e sabia que ela iria ajuda-la, isso se não a pusesse contra mim pensei rapidamente... Arrumei nosso quarto novamente ensolarado, com esmero, do jeito que fazia no nosso apartamento, deixei em seu armário alguns sapatinhos de Eva e algumas roupas minhas que eu sabia que ela gostava; perfumes, shampoos e um talco de Eva sobre a mesinha que eu havia posto ao lado de sua cama. Sobre seu colchão estendido ao chão um lençol xadrez colorido de preto e vermelho; arrumei seu banheiro com cuidado e fui embora sem despedir-me. Ela já estava no clube nesse momento com os primos. Eu, meu pai e Júlio saímos com precaução; minha tia e minha mãe nos acompanharam até o carro; antes de partirmos minha mãe correu para o banheiro; fato engraçado é que minha mãe sempre precede de alguma forma todos; iniciou-se a fase dos cagões: foi geral. No caminho ao invés de tomarmos o caminho da direita como de costume tomamos o caminho da esquerda passando por todas as praias; foi uma viagem agradável. Meu irmão guiava, meu pai ocupava o banco da frente e eu o de traz com Eva nos braços. Eva dormia a maior parte do tempo. Lembro de nos termos comunicado por telepatia. Nosso pai carregava consigo minha mãe, eu podia percebe-la ao nosso lado, às vezes ele quebrava o peito direito numa força de direita que era bem conhecida por nós, ser de minha mãe, mas ele estava firme, pelo espelhinho retrovisor eu podia ver seu rosto que era o de Platão.Júlio, por sua vez, não parecia estar entendendo direito à profundidade da nossa relação. Por vezes eu sentia-me presa na sua freqüência, na verdade eu me sentia forçada, ele não me via o suficiente para me deixar só eu comigo. Estava sempre a me perturbar querendo saber algo de mim. O que? Por que? O galo cantador. Meu pai então acima de nós dois direcionava o diálogo telepático de forma a equilibrar as freqüências. Júlio, no entanto não percebia a superioridade de meu pai, acreditava que era ele próprio quem direcionava tudo. 22 Num determinado dia, Júlio me disse que era preciso sintonizar certo, o que significava que todos deveriam estar na freqüência dele, quer dizer, naquela que ele pensava ser “A Freqüência” porque assim ele se sentia bem; claro que ele não colocava a freqüência de meu pai em questão ou mesmo a de qualquer outra pessoa, a não ser a de sua filha ou de sua ex-mulher, porque pra ele, o mimado da família, era fácil acreditar que tudo que ele pensava ser fosse realmente a realidade, porque todos na família sempre acabavam fazendo o que ele queria; o que lhe tornava imaturo, sem chances de amadurecimento e por vezes até insensato. Aos meus olhos ele era um pequeno tirano com tendências a crescer...Bom, foi nesse dia, quando lhe perguntei se ele na capital havia sentido algo diferente, pois acreditava que ele estivesse mesmo à distância participando de tudo que acontecia na casa da praia; tateando, entretanto ao lhe perguntar, sentindo um certo receio de falar sobre a telepatia abertamente, mas ele parecendo me entender prontamente disse que sim, mas que precisávamos sintonizar melhor, na mesma freqüência, acho que querendo dizer na freqüência dele, o que me pareceu inoportuno, porque no meu entendimento, sua freqüência não era das mais harmoniosas. Eu já sabia a essa altura, que ele homem e não menino era o galo cantador, mas ele não sabia que eu sabia; eu também sabia que ele mais que eu entrava na freqüência errada e isso ficou claro na nossa volta a São Paulo. Lembrei-me que quando ele chegou pela primeira vez a São Cristóvão em que tive um pesadelo terrível, que ele me invadia psicologicamente; meu olho esquerdo puxava pra direita com tanta força, que sangrava e durante toda a madrugada, eu em sua freqüência sonhei com mortes, assassinatos e libidinação.Quando acordei logo pensei em minha ex-cunhada, que todos nós sabíamos freqüentava magia negra e como eles acabavam de se separar... Pensei na possibilidade dela estar enviando mentalizações negativas para ele, já que a escolha de separação foi dele...E ela vingativa e má que era, poderia estar querendo se vingar de Julio com magia negra. Só podia ser isso! Eu podia sentir que ele não estava mesmo bem. Na primeira oportunidade lhe disse que eu tinha lido um artigo muito interessante sobre chacras e que falava sobre os pontos aúricos do corpo por onde havia transferências de energia e que ao meu ver, era preciso que tomássemos cuidado com o chacra, principalmente o da barriga, isto porque eu já começava a me sentir verdadeiramente incomodada justamente com este chacra, quando me aproximava dele; sentia-me mesmo possuída , quando ele levantava, eu tinha necessidade de levantar; como se eu fosse forçada a fazer tudo o que ele fazia e eu não tinha forças para lutar contra: eu quase não tinha mais controle dos meus passos, sentia-me levada , além disso eu podia notar ele me perseguindo psiquicamente, isto ficava nítido quando eu passava por ele, sentia-me muito mal porque Júlio mais até que Solange ficava a me olhar absorto, a tal ponto, que parava de conversar com os demais como que hipnotizado... Uma atenção demasiada para meus passos, me fazendo sentir uma extraterrestre ou algo parecido. Cheguei a pensar num complô contra mim, porque Solange e Júlio agiam daquela forma; eu estava cheia e passei a chamá-lo em pensamentos de machista, o que ele não admitia apesar de ser e muito... Diferente, entretanto de nosso pai que sempre foi liberal em relação às mulheres.Mas o que ocorreu...Pensei...Foi que ele, assim como Solange e Matilde, se surpreendeu também com meu novo estado de espírito, pelo fato de eu estar, lá na casa da praia, me sentindo plena e feliz, por amar muito minha filhinha recém chegada ao mundo e por minha forma livre de me relacionar sem medo, por causa do livro que acabava de escrever sobre o ponto exato da relação entre os homens, que tinha como ponto de partida a espontaneidade no agir e no pensar encontrando assim a transparência do ser.Mas apesar de fazer o possível para entender meus familiares, eu comecei justamente nesse dia a ficar bastante decepcionada com toda a família. Eu que jamais falava palavrão gostaria de atirar todos contra eles, procurava assim me libertar daquelas amarras que eu já começava a sentir, como que possuída, perto deles. E me sentindo presa, pensava na ex-mulher de Júlio e em todo o seu sofrimento e que ele poderia estar sendo vítima de magia negra assim como também meus familiares ou até quem saberia, eu mesma. Acalmei-me por não haver outro remédio, não podia lutar com meu estado de ânimo ainda tão tranqüilo e apesar de tudo eu o amava porque na verdade ele sempre foi um bom irmão; senti pena dele e percebendo o desinteresse dele sobre minha conversa de chacras parei de insistir sobre o assunto. Finalmente ele voltou novamente a capital a fim de logo retornar a praia;não me lembro bem, mas acho que levou consigo Anita, sua filha. Júlio nutria por Anita uma tal preocupação que ao meu ver beirava a loucura; quando ele estava por perto eu não conseguia ficar à vontade e me relacionar com ela de maneira natural e espontânea, diferente de como ficávamos quando estávamos longe dele; em sua frente quando eu a pegava no colo, ele a retirava em seguida dos meus braços limpando suas mãos como que para purifica-la de mim. Anita estranhamente, algumas vezes, ficava repetindo baixinho o nome de Eva sem parar, entretanto sem Eva estar por perto, o que me afligia muito porque eu não entendia e Júlio ou mesmo minha mãe faziam de conta que nada acontecia, ignorando o fato; sempre soube, entretanto que crianças imitam os adultos e que possivelmente tinha ali obra da mãe, ex-mulher de meu irmão. Quando em um ou outro momento me sentia à vontade, tentava então dar alguns conselhos a Júlio; assim o desculpava interiormente, falava como quando éramos crianças, com ares de irmã mais velha que sabia das coisas, dizendo-lhe para ele tranqüilizar-se em relação à filha, que ele era pai de primeira viagem e que era normal ser preocupado etc e tal, tentando assim falar o que eu achava porque no fundo tudo aquilo me irritava muito; ele, no entanto me escutava com um ar de superioridade que me valha Deus...Como se minhas meras palavras não lhe alcançassem. Houve vezes, porém que eu lhe abracei e fui correspondida num abraço fraterno em que ele dizia que era preciso rezar muito. Eu acreditava e rezava todas as noites por ele. Quando meu irmão estava na capital, eu podia sentir que na verdade ele não tinha se ido: seus medos e suas dúvidas pareciam estar em meu ser, na minha sensibilidade já afetada por um mal estar crescente; ele continuava presente apesar de estarmos distantes; sua perseguição continuava; e tudo que acontecia na casa da praia, ele na capital de alguma forma sabia. Não exatamente sobre os fatos, mas nos sentíamos, ligados que estávamos todos. Numa noite em São Cristóvão, na corrente telepática, nos dirigimos em pensamento a Júlio e ele acabou participando da mesma, sem, entretanto estar na casa da praia.Era assim, ninguém deixava a bola cair; às vezes ele dizia:- Passa a bola! Ou: -Bola na rede! Sempre num tom brincalhão que dava continuidade a corrente; sem ansiedade, apenas numa brincadeira gostosa, cheia de humor em que ele era o centro das atenções, mas num determinado momento acho que penetramos demais em sua “forma” e pudemos perceber quem ele realmente era: um meninão tímido, mimado; um supercara legal, mas problemático. Imediatamente eu me transformei em Júlio menino e entrei no lavabo por me sentir muito mal; era preciso, entretanto sair de lá inteira, com força interior pra que ele não sucumbisse; eu me sentia impotente, naquele momento como Júlio, e eu acreditava que dependia de mim acabar de vez com aquela situação de desajuste, para que não houvesse danos psicológicos de qualquer espécie, para ninguém, mas em verdade sentia-me mesmo impotente, muito tímida não conseguia agir livremente e quanto mais eu demorava no lavabo pior a situação ficava, porque eu sabia ou acreditava que todos, na sala estavam me esperando...Até que finalmente abri a porta e sai para a sala sem pensar em nada, simplesmente querendo sair daquela situação e qual não foi minha surpresa que todos que me esperavam em atenção me acolheram com amor e abnegação, quer dizer: acolheram Júlio que aceitou e se sentiu confortável sentando-se entre eles quieto; pude então perceber a forma de Júlio se relacionar com a família e o grau de aceitação para com ele, tão diferente da forma que agiam comigo, tão diferentes da forma que eu os via e os sentia! Nós sentados então na sala, quietos continuávamos a recorrer um ao outro em pensamento, sempre numa corrente contínua e íamos obtendo respostas adequadas para que a corrente continuasse. Foi uma experiência bastante agradável ou diferente e chegou mesmo a ser engraçada quando não trágica. Todos participavam, inclusive as crianças, as pequenas como Eva e a filha mais nova de Matilde, meus pais, irmãs, Valéria e as empregadas. Em determinados momentos meu pai recorria a Nietzsche, na verdade ele sempre recorria a mim e a Cássio, algumas vezes a minha mãe, Solange e Matilde, pouco recorria a Valéria, a Laila ou as crianças. Minha mãe recorria a Matilde, a Valéria, a Marieta e finalmente para recorrer a mim recorria a Eva. Menos eu e meu pai, todos outros imitavam minha mãe, talvez por não terem inteligência própria, ou por não saberem exatamente como o jogo se dava realmente, na verdade aprendizes, finalmente recorriam a Eva, como se ela fosse forte e capaz de segurar qualquer ansiedade ou tensão provocada no decorrer do jogo, no desespero de não dar o devido tempo para o pensamento, por abusos e atropelos eles corriam agarrando psicologicamente Eva, da mesma forma que alguém que está se afogando se agarra a outrem que esta por perto para salvar-se do afogamento. Eu a louca...Pensava... Lógico, como eles poderiam me entender ou me aceitar como uma filósofa que encontrou o ponto de relação exato do ser? Eles que eu via agarrarem psicologicamente minha filhinha com pouco mais de seis meses de maneira tão avassaladora extremamente medrosos de si mesmos...A fim de possuírem, quem sabe o si do fruto do meu amor, ou seja, de Eva, roubando de mim meu eu feliz e pleno porque eu a responsável por Eva quieta e assustada entrava quase em pânico frente aquela força cruel sem medidas; e eles então vitoriosos se punham a conversar alto, com cafés e cigarros cheios de ansiedade, desfazendo assim a corrente telepática, como se tivessem finalmente atingido o alvo. Isso me fazia lembrar da preocupação exagerada de Júlio por Anita pondo-me em dúvida se não haveria mesmo algum perigo na relação familiar, alguma má intenção por trás, por falta de sabedoria e excesso de vontade de poder frente a mim e a todos que quisessem ser diferentes deles, encabeçada por Matilde e por tabelinha minha mãe, numa disputa de vida ou morte. Contra minha filosofia do amor não mediam esforços inclusive jogando traiçoeiramente contra meus entes mais amados, tentando provar assim que eu não era aquilo que na verdade eu era, alguém plena e feliz cheia de despojamento... Afinal punham até Eva na berlinda naquele jogo telepático que virou tremendamente assustador pelo menos para mim, a fim de simplesmente se encherem de júbilo pela vitória; mas que vitória? Só poderia então ser mesmo de mim...Pensava ainda relutando contra a verdade que me assolava...Porque somente eu sentia o mal estar de uma derrota inesperada, eu que me entregava procurando o ponto da relação, sofrendo a conseqüência devastadora por amar Eva. Talvez eles não fizessem de propósito, quem sabe simplesmente fossem ingênuos ou então meu Deus!Meus familiares eram monstros assustadores em essência... Nessa brincadeira que não terminava nunca, que sempre existiu e que só naquele momento eu tomava consciência do modo de relacionamento de meus familiares, tendo na roda, entretanto a novidade do meu novo sentimento frente ao mundo, nesse empurra empurra de direita e esquerda até finalmente atingir Eva e a mim, num desafio que às vezes organizava e equilibrava forças opostas: minha mãe sempre muito arisca desafiando pela direita. Era um jogo de ódio e amor que ninguém vencia na realidade, pelo menos era esse o objetivo do jogo, vencia o equilíbrio que era o tal fio linear telepático, se por acaso esse equilíbrio não se desse de forma desejável para eles, ou seja, de forma que o controle da corrente não estivesse em minhas mãos, ou nas mãos do amor que Jeniffer acalentava em seu coração, porque então minha mãe acelerava desconfiada, e influenciada ou apoiada por Matilde atacava Eva, esquecendo o objetivo central do jogo. Era mais ou menos assim: Matilde me odiava e odiava a ex-mulher de Quiasco apesar dela nunca ter demonstrado isso a ela, ao contrário sempre demonstrou amá-la; minha mãe odiava a todos que Matilde odiava porque Matilde quando odeia quer que todos que ela não odeia odeiem também os que ela odeia. Júlio não odiava ninguém, mas era influenciado por minha mãe, Matilde e meu pai, por isso não odiava tanto as pessoas que Matilde e minha mãe odiavam, por meu pai não odiar ninguém somente ser arisco com Cássio. Eu por minha vez não odiava ninguém, só refletia o ódio que me mandavam como um espelho. Nessa pseudoperseguição de uns pelos outros, eu na minha procura do ponto de relação fui assim percebendo; de início todos se perseguiam com os olhos deixando claro, sem conseguir esconder, suas intenções de amor ou inveja, como se as máscaras tivessem sido submetidas à verdade de cada um, e para não sucumbirem a si próprios em alguns momentos em que incidiam particularidades pessoais se fazia necessário estratégia e astúcia nesse jogo de forças; eu inclusive fui obrigada a lutar em um ou outro momento a favor de minha ex-cunhada, assumindo seu papel e entendi o quanto deve ter sido insuportável para ela ter sido o centro do ódio daquela família, mas afinal ela também sabia odiar como ninguém; minha ex-cunhada, dessa maneira, também psiquicamente esteve presente no jogo telepático, chegando sem saber, eu acredito a me ajudar em alguns momentos quando Júlio me perseguia muito; eu pensava então nela e pedia sua ajuda, era por sua vez um pedido certo de ajuda, com uma fé certeira, sem explicações, aí eu virava ela, que era por sua vez muito forte, agüentava todos os desafios de minha mãe desafiando-a ainda mais e corria por amor atrás de Matilde sem saber que ela era sua maior inimiga ou talvez porque soubesse que minha mãe jamais faria mal a Matilde. De início foi assim, muitos olhares e poucas palavras que deixavam claro as afeições de cada um. A coisa foi ficando mais nítida e a tentativa de cada um se esconder dos outros, maior, até que não teve mais jeito, eu invadi Matilde que também me invadiu, só que eu estava expressa, fui então ponto de relação, e nenhum mal eu podia lhe fazer, mas ela deu-me seu eu que era infantil, inseguro etc. Ela percebeu, colaborou comigo porque não havia outra alternativa, assim colaborando com ela própria principalmente; cresceu interiormente, pelo menos passou a se conhecer um pouco mais, Júlio também; até que todos se relacionaram de uma forma integral, por falta de opção, expressando seus maiores potenciais; era uma luta real de poder e força. Assim começamos a falar telepaticamente, quer dizer fomos obrigados a falar telepaticamente devido às circunstâncias. Todos tiveram que colaborar por não haver outra saída. Talvez acredito, que essa corrente linear era rápida e sem descansos por causa da grande ansiedade que havia na média. De todas as forças juntas havia uma média e essa média era ansiosa. O pai de Eva, mesmo longe, também participou em alguns momentos da corrente telepática; algumas vezes eu o “imitei” sentindo seu ser, para alcançar meus objetivos no jogo. Quer dizer que eu na minha “pseudoloucura” utilizava-me do “seu poder”, quer dizer da sua máxima potencialidade para que eu não sucumbisse naquele jogo louco que o acaso me colocou, devido aquele relacionamento á procura do ponto dos meus familiares, que ao meu ver eram tão descentrados de si a ponto de quase me deixarem louca de verdade, quando entreguei meu coração em suas mãos; nesse momento era preciso ir até o fim e acabar de vez com aquela loucura que nos assolava; eu não poderia sucumbir, pois seria o meu fracasso. No decorrer do jogo eu podia ser quem eu quisesse, principalmente na frente de meu pai que me dava liberdade para isso ou me obrigava a isso. Na verdade eles me projetavam essas outras personalidades que eu assumia em seus potenciais como pessoas através do jogo de espelhos. Meu pai brincava desta forma comigo, assim ele conhecia melhor determinada pessoa, às vezes eu ouvia telepaticamente:_Agora Jennifer! Então eu me tornava novamente a doente em recuperação, que era o máximo que eles poderiam aceitar como sendo eu; porque Jennifer cheia de si e de amor, essa só havia lá dentro de mim, esquecida e vencida pela força do ódio deles, que eles consideravam inteligência, pois na guerra o ódio vencia, pelo menos nesse primeiro momento ele havia vencido e eu sabia disso; que para recuperar dentro de mim o meu amor e a minha vida feliz e plena seria |
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