A Fronteira da Loucura

 

 

 

 

 

  

 

Uma camisa cinza; uma calça preta.

- Droga!

Nunca pensei que fosse tão difícil arrumar uma mala: parece que não existe espaço suficiente, e ainda falta tanta coisa!

Você não podia ter feito aquilo: eu amava tanto você! E o pior é que ainda amo.

Foi há três dias, não é ? Engraçado: às vezes parece que foi há meia hora, de outras parece que já se passou um século. Será que estou perdendo a noção do tempo?

Naquele dia eu estava cansado, na volta do trabalho. Você ainda não havia chegado e tomei um banho como eu gosto: bem quente e demorado.

Estava fazendo a barba, a toalha enrolada em volta da cintura, quando ouvi os seus passos na sala. Falei alto, para que você ouvisse:

- Oi, amor! Tudo bem?

- Tudo. Preciso falar com você.

Droga! Onde vou botar estes sapatos? Você sempre arranjava sacos plásticos; onde os guardava? Mas já sei: não vou nem perguntar, que você não vai responder!

Mas eu estava lembrando... onde estava, mesmo?

Ah, sim ! Algo na sua voz me chamou a atenção: uma nota de nervosismo, alguma coisa como um toque de urgência. Esperei que você viesse para o banheiro, me dar um beijo, como sempre; não veio. Chamei:

- Não vem aqui?

- Não, vou ficar lhe esperando. Vai demorar muito?

- Já vou; é só fazer a barba.

Terminei, sem me apressar. A lâmina, deslizando pelo rosto coberto de espuma, sempre me trouxe uma sensação agradável; como uma carícia furtiva, algo assim como um prazer solitário e sem testemunhas. Depois, espalhei a loção pelo rosto. A frescura daquele ardor, sobre a pele escanhoada, também me agrada muito; é uma sensação única.

Esta droga de mala não vai dar! É tanta coisa! Meus ternos, minhas camisas, calças, cuecas... acho que vou precisar sair, para comprar outra; ou, talvez, levar a sua. Mas deixa ver: talvez, apertando um pouco mais aqui...

Novamente as lembranças. Quando saí para a sala, você estava sentada no sofá; muito rígida, tensa, como se não estivesse em sua própria casa. Logo você! Você, que da porta já tirava os sapatos, jogando-os a um canto; você, que não usava outra coisa além da calcinha minúscula sempre que estávamos a sós!

Era claro que havia alguma coisa errada; mesmo assim, caminhei para beijá-la. Você não levantou os olhos, muito pretos, para mim; nem me ofereceu os lábios macios. Nem ao menos um daqueles sorrisos travessos.

Mas eu já estava acostumado com as suas mudanças de humor; suspirei e deixei-me cair sentado no sofá, ao seu lado. Perguntei:

- Que foi, amor?

- Você se incomoda de vestir alguma coisa? Não quero conversar com você assim.

Realmente, alguma coisa estava muito errada. Mas a experiência já me havia ensinado a inutilidade de discutir com você, ou procurar convencê-la de alguma coisa quando você não queria ser convencida. Fui para o quarto, vesti um short e uma camisa, estendi a toalha no banheiro e voltei para a sala.

Você continuava com a mesma atitude, nervosa e distante. Descruzou as pernas, quando percebeu que os meus olhos passeavam pelas suas coxas expostas; você sempre soube da minha atração pelas suas coxas.

Observei o copo, na mesinha ao seu lado: uísque e água de coco, com um cubo de gelo, como sempre. Perguntei, em tom de brincadeira:

- Posso tomar um, também?

- Talvez seja melhor.

Fui para a cozinha e preparei a minha bebida: vodka, coca, uma rodela de limão e dois cubos de gelo, num copo alto. Voltei ao sofá.

- Pronto, amor; pode falar.

Quantas vezes eu já vira aquele seu gesto de afastar os cabelos negros da testa, tão característico de quando você estava nervosa? E como ele sempre me encantava

- Rogério, o que tenho a lhe dizer não é fácil...

Rogério? Há quanto tempo você não me chamava pelo nome? Era sempre “meu bem”, “meu amor”!... tomei um gole, como se procurasse afogar a inquietação que brotava em mim.

Mas, ainda que houvesse bebido toda a garrafa, eu não estaria preparado para o que se seguiu. A sua frase foi seca e cruel :

- Rogério, eu quero que você vá embora!

A minha mão se deteve no ar, o copo a poucos centímetros da boca. Olhei nos seus olhos, que agora me fitavam  desafiantes. Tive a certeza de não ter ouvido direito. Mal consegui perguntar:

- O que... o que você disse?

Você sacudiu a cabeça; os cabelos esvoaçaram... outro gesto tão seu! Como o de pegar, nervosamente, um cigarro no maço e acendê-lo com o isqueiro metálico da mesa. Deu uma tragada funda e confirmou:

- Não adianta, Rogério. É isso mesmo que você ouviu: quero que você vá embora!

Meus nervos estalavam. Eu me sentia como se estivesse dividido em milhares de pequeninas partículas, cada uma das quais gritava freneticamente: NÃO!

Pensei que me estivesse controlando bem, até notar que minhas mãos tremiam, quando peguei um cigarro. Devo ter ficado um bom tempo olhando para a chama do isqueiro, antes de finalmente encostá-la ao cigarro.

Olhei diretamente para você que fumava, os olhos cravados em meu rosto. Senti um consolo absurdo, ao ver que a sua mão também tremia.

Não acreditei, ao ouvir o tom quase normal de minha voz que perguntava:

- Por que?

Você teve um gesto de enfado; como alguém que procura explicar a uma criança algo difícil de ser entendido. Fez um gesto com a mão, como tentando afastar o aborrecimento:

- E tem que haver um porque?

Comecei a sentir uma raiva fria. Se tinha que haver um porque?! Tomei mais um gole, quase esvaziando o copo.

- Se tem que haver um porque?! Escute, Vilma: nós estamos juntos há dois anos e nos amamos... ou pelo menos, eu pensava que nos amássemos! Eu, posso garantir, ainda amo você. E agora você chega aqui, me mandando embora, e ainda pergunta se tem que haver um porque?! Que loucura é esta, Vilma?!

Notei que você falava devagar; como se a sua paciência se estivesse esgotando, como se a minha pergunta a exasperasse:

- Escute. Como você disse, há dois anos estamos juntos. E foi bom.

Parou de falar. E eu esperei, suspenso dos seus lábios, esperando as próximas palavras como uma condenação; ou uma suspensão de pena. Sabe, aquela sensação mista de medo e esperança?

Você bebeu outro gole. A raiva aumentava, vendo como brincava com o meu desespero. Ou - quem sabe? - talvez apenas pensasse em como falar, para minimizar a minha dor.

Acendeu outro cigarro. Os segundos não passavam; antes iam caindo do teto, um a um, sobre o nosso absurdo silêncio.

- Rogério, você lembra o que combinamos?

- Quando?

- Quando resolvemos morar juntos. Você e eu pensávamos do mesmo modo, lembra?

- E não pensamos mais?

- Assim, parece que não. Combinamos que seria bom, enquanto durasse. Que ficaríamos juntos enquanto houvesse amor e, quando um dos dois cansasse, avisaria ao outro. Não foi isso?

- Você cansou de mim ? Assim, de repente?

Já não conseguia controlar a raiva. Levantei e fui para a cozinha, levando o copo. Você permaneceu em silêncio, até que voltei com outra bebida. Perguntei:

- Há outro homem, não é?

Mais uma vez, o seu aborrecimento foi visível. Extrapolava os seus gestos e pensamentos; era quase uma coisa palpável, presente entre nós.

- Isto é mesmo necessário?

Não respondi. Apanhei o copo, acendi outro cigarro e fui para a varanda; contemplei a cidade, lá embaixo, debruçada sobre o mar que o céu do crepúsculo avermelhava. Aquela paisagem linda, que tantas vezes me encantara, agora não me trazia o menor alívio. Ouvi a sua voz:

- Quero dizer: foi tudo tão bonito, tão gostoso!... por que terminar assim, desta forma? Por que você insiste em tornar tudo mais difícil?

Voltei para a sala; novamente sentei ao seu lado, no sofá. Bebi em silêncio: meus olhos, fixos nos seus, respondiam à sua pergunta, repetindo a minha.

Você suspirou de novo. Falou em um tom neutro, apagado:

- Você sabe que sim, Rogério. Não somos crianças!

Depois, uma inesperada veemência:

- Não vamos continuar com isto! Fizemos um trato, e eu o estou cumprindo! Por que você não cumpre a sua parte?!

Cumprir? E como? Sabe-se lá de alguém que tenha pressentido a morte e morrido sem tentar uma reação? Como ver a minha vida se escapando, e aceitar passivamente? Junto com você, amor, eu perdia tudo!

Imagens e sons do passado atravessaram a minha mente: o nosso começo, os primeiros beijos. A primeira vez em que fizemos amor, as muitas que se seguiram. Seu corpo, seu rosto, sua voz... tudo isso, que era tão meu, seria agora de outro?!

E eu, o que iria fazer? Como dormir e acordar sem você; sem o seu pé esfregando o meu, sem o seu rosto no meu peito, sem os seus seios em minhas mãos? Como voltar para casa? Ainda haveria algum lugar no mundo em que eu pudesse fazer uma casa, sem que você estivesse dentro dela?

Cumprir, amor? Pode alguém vender a alma ao diabo, e cumprir o pacto de boa vontade quando chega a hora?!

Acho que você tomou o meu silêncio como censura, ou pedido de mais explicações. Acendendo outro cigarro, exasperada, voltou a falar:

- São essas coisas que acontecem: um novo colega de trabalho, uma simpatia mútua, uma primeira conversa... ah, droga! Como e para que explicar? Vai mudar alguma coisa?

Fiquei em silêncio. De novo, você entendeu mal.

- Mas não se preocupe: ainda não houve nada entre nós, sabe? Quero dizer, nenhum contato físico. A gente só conversa, troca idéias... eu não traí você!

Estranhamente, quase sorri. Você não me havia traído, amor? Será que a gente só trai alguém, que vive em função da gente, quando vai para a cama com outra pessoa? Não é uma traição muito maior entregar a uma terceira pessoa os pensamentos, os sentimentos, a parte mais verdadeira que existe em nós? Você não me traiu, amor?

A bebida começava a me subir para a cabeça. Sentia-me entorpecido, ausente... quase como se estivesse sonhando. Mas a dor continuava ali, a apertar meu coração, a martelar minhas idéias. Eu não conseguia pensar direito; o mundo era um pesadelo, uma confusa sensação de dor.

Tentei beijar você. As suas mãos, em meu peito, me empurraram; formaram, junto à sua indiferença, uma barreira intransponível:

- Pare com isso, Rogério! Você me machuca, me enoja! Não consegue se comportar como um homem?

Um homem? E como um homem deve se comportar, quando perde tudo? Um homem não deve lutar pelo que quer, não tem direito a um fiapo de esperança?

O meu copo estava vazio. Fui preparar outra dose. Voltei. Os cigarros haviam acabado e fui buscar outro maço no quarto. Todo o tempo você ficou calada, no sofá, só me acompanhando com os olhos.

Mas que droga! Onde está a minha camisa azul, aquela de linho? No mínimo, na lavanderia. Droga! Eu gosto tanto dela!

Nem vou lhe perguntar; sei que você não vai responder. Hoje, três dias depois, ainda continua aí, sentada no sofá, sem dizer uma palavra; parece não ter se movido.

Não se moveu, não falou, nem ontem quando fizemos amor. Ou melhor, quando eu fiz amor com você; parecia uma boneca, inerte. Mas mesmo assim foi gostoso; é sempre gostoso fazer amor com você. E, pelo menos, desta vez você não me repeliu.

Tudo bem; acabei de arrumar a bagagem e já vou, como você queria. São duas malas; peguei a sua também, acho que você não vai se incomodar. Mas nelas só vão as minhas roupas, os sapatos, as coisas... onde vou levar os meus sonhos desfeitos, as ilusões esfaceladas, esta infinita tristeza?

Aposto que, assim que eu sair, você vai se levantar daí e telefonar para ele; dizer que eu já fui, que ele pode vir, que vocês estão livres para ficar juntos. Só assim, você vai se mexer; não fez nada, nestes dias!

Um conselho: aproveite para arrumar o apartamento. Estou sentindo um cheiro de coisa podre; algo deve estar estragado, na geladeira. Cuide de você, também; a sua pele está esquisita, fermentada... há qualquer coisa errada com ela.

Já vou. Deixe-me dar uma última olhada em você: os olhos muito abertos, os cabelos pretos sujos de sangue, e esse buraco no meio da testa. O buraco da bala que eu mesmo disparei, naquele dia! O dia em que matamos um ao outro.

Passos lá fora? Tomara que não seja algum dos nossos amigos; agora, não quero ver ninguém. Principalmente alguém que nos conheça, que tenha visto os nossos tempos felizes. Vou esperar um pouco, talvez a pessoa pense que não estamos em casa e vá embora.

- Abra a porta! É a Polícia!...

                    

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