Cláudia

 

 

- Você viu isto aqui?

Mostrou à mulher a notícia no jornal: apenas uma pequena nota, perdida entre tantas outras. Uma leitura rápida e os olhos dela se encheram de lágrimas; aconchegou-se a ele, no sofá, beijou-lhe o rosto e murmurou:

- Que pena! Implodiram o nosso hotel...

Ele retribuiu o beijo, pensativo. Depois, tomou em suas mãos o rosto delicado e fez com que ela o fitasse nos olhos. Um leve sorriso se desenhou em seus lábios:

- Pena, sim... mas o importante é o que eele fez por nós, não é?

 

* * *

O velho hotel dominava a praia.

Abandonado, a imagem da tristeza. O enorme prédio, um corpo sem vida, onde as janelas sem vidros lembravam órbitas vazias de olhos extintos, esforçando-se para rever a beleza da praia em frente.

Deslocada entre os coqueiros e as areias alvas, a construção era uma curiosa mistura de tristeza e poesia. Exercia, sobre as almas sensíveis, a fascinação imprecisa dos mistérios.

Desde a primeira ida àquela praia, Márcio sentira bem forte a atração do gigante vencido. Jurara a si mesmo que  ainda iria percorrer aquele colosso; andar pelos velhos corredores e recolher as impressões de seus quartos vazios, cheio de passado. Era como se tivesse a pretensão absurda de captar ecos de vida, nas entranhas de um cadáver que lhe fosse querido.

 

* * *

Era o fim.

As mesmas areias, o mesmo imenso mar. Os mesmos coqueiros, o mesmo assovio amigo do vento. O cenário era o mesmo, mas outros eram os seus sentimentos.

Apesar do desespero, sentiu-se estranhamente aliviado ao afundar os pés na areia cálida. Tinha os olhos secos, como se já houvesse chorado todas as lágrimas do mundo e desistido de dissolver os pensamentos na água salgada do pranto.

Caminhou até a praia e sentou-se em uma das grandes pedras, que sobressaíam das águas; o mar encharcou as pernas das suas calças, mas o corpo não registrava os estímulos exteriores. Estava como um bêbado; embriagara-se de desânimo e autopiedade e a gente jamais se afasta tanto do mundo, como quando se perde dentro de si mesmo.

Contemplou, sem ver, a espuma alva das ondas que se quebravam contra a plataforma natural. Nos esborrifos, que se lançavam para o ar, era como se estivessem projetados os seus dias passados, as suas alegrias e tristezas.

Olhou ao redor, demorando os olhos no velho hotel. Aquela imagem conseguiu tocá-lo, porque já estava dentro dele, pedra fundamental de incontáveis fantasias. A tristeza do prédio parecia a sua própria e sentiu-se estreitamente ligado a ele, porque nada irmana mais do que o sofrimento.

Voltou a olhar para as ondas, onde pretendia deixar o corpo. Escolhera aquele lugar amado para meter-se na água e nadar... nadar até que a exaustão tornasse impossível a volta. Pelo muito que queria àquelas águas, acreditava que lhe pudessem trazer o esquecimento que desejava, sem fazê-lo sofrer.

Mas sentiu que não poderia deixar o mundo sem despedir-se do velho hotel; tantas vezes pensara em visitá-lo, e esta seria a última oportunidade. No fundo, talvez acalentasse a última esperança; ou quisesse sofrer a última desilusão, antes de abandonar definitivamente este mundo de esperanças e desilusões.

Venceu, lentamente, a distância que o separava do hotel, agora uma âncora a prendê-lo ao mundo. O tempo é relativo, como todas as dimensões: parece voar nas alegrias e eternizar-se no sofrimento. De que vale o tempo da vida, para quem está disposto a morrer ?

De perto, mais se confirmava a impressão de abandono. O capim e as pequenas ervas cresciam desordenadamente, ameaçando encobrir o piso externo, cheio de rachaduras. Ele atravessou as arcadas, onde outrora existiram as largas portas de entrada, e mergulhou nas sombras da ampla sala de recepção.

Achegou-se ao balcão da portaria, correndo os dedos pela superfície suja. Olhava em volta, como esperando um passe de mágica que faria reviver as pessoas que ali haviam estado, enchendo o espaço com seus risos e vozes alegres.

Perto do balcão, a escada. Subiu ao primeiro andar: um longo corredor, com inúmeros buracos onde antes estiveram as portas dos quartos. Começou a percorrê-lo, enquanto a sensação de mágoa e desânimo aumentava nele: por todos os cantos apenas a decadência, representada pela sujeira e teias de aranha.

Nada, só a última desilusão. Mas o que esperava ? O que poderia encontrar ali, a não ser os sinais de desgaste e abandono que vinha encontrando? Amaldiçoou a sua

imaginação, que parecia menos conformada à morte do que ele.

Aproximava-se dos últimos quartos, no fim do corredor, quando ouviu passos leves; voltou-se, instintivamente... e a viu.

Parada, olhando para ele. Vestia uma roupa branca, uma espécie de túnica, tão comprida que quase tocava o chão. Os cabelos pretos e lisos emolduravam o rosto bonito e desapareciam atrás da curva dos ombros. Linda, como uma visão !

Nenhum sinal de medo, nos olhos negros que o fitavam com curiosidade. Os lábios, bem desenhados, entreabriram-se num sorriso que mostrava os dentes alvos e pequenos. A voz era delicada e natural, quando falou:

- Olá !

Assombrado, Márcio conseguiu apenas murmurar :

- Oi !

E logo em seguida, quase tropeçando nas palavras:

- Que... o que você faz aqui ?

Ela ampliou o sorriso:

- Moro. E você ?

- Mora ?! Você quer dizer que vive aqui ??!

- Já disse. Você não ouviu ?

- Aqui ?! Neste abandono ?!

- Você não ia querer que eu limpasse o hootel todo, não é? Mas arrumei o meu quarto. Quer vê-lo?

- Você não está falando sério, não é ?

- Venha ver.

E passou adiante dele. Márcio a seguiu automaticamente, ainda abalado pela surpresa e procurando recobrar o raciocínio normal.

- É aqui. Acredita agora ?

Ele olhou para dentro do quarto, um dos poucos que ainda não vira. Havia uma esteira de vime aberta sobre o chão, no meio do aposento. A um canto um pequeno baú, fechado, completava o mobiliário.

- Gostou ? Não é muito, mas me basta.

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Márcio começava a acostumar-se com o absurdo da situação e procurava arrumar as idéias, lutando para conter as perguntas que teimavam em querer sair da sua boca. A desconhecida entrou no quarto, indo até o buraco onde fora a janela; ele reparou que os cabelos lhe caíam, como uma cascata negra e sedosa, até abaixo da cintura. Voltada para fora, ela o chamou:

- Venha ver o meu tesouro. Não é lindo?

Junto a ela, olhou para a praia. Daquela altura, podia ver uma grande extensão: a areia muito alva, o mar muito azul, o verde dos coqueiros e da vegetação raquítica; um quadro de cores fascinantes, realçadas pelo sol muito vivo, num céu onde as poucas nuvens pareciam fiapos de algodão. Concordou:

- Sim, é. A paisagem mais linda que já vii.

- Adoro isto aqui. Com tanta beleza, do qque preciso mais?

- Sim... é realmente lindo! Mas você moraa aqui de verdade?

- Moro.

- Por que?

Ela se afastou e assentou-se no baú, respondendo em tom de desafio:

- Porque gosto. E você, o que está fazenddo aqui ?

- Vim conhecer o hotel. Eu sempre gostei dele e tive a curiosidade de passear por aqui. Como é o seu nome?

- Adivinhe.

- Essa não! Adivinhar como ?

- Então, invente um qualquer. Eu gosto dee pensar que não tenho nome. Às vezes, sou Vento; em outras, sou Lua... ou Chuva, ou Sol. Não tendo um nome, a gente pode ser qualquer coisa. Como você gostaria que eu me chamasse?

Ele pensou um pouco:

- Iara, acho. Bonita assim, à beira do maar...

- Então, me chame de Iara. E eu, como vouu chamar você?

- Fácil ! Meu nome é ...

- Pare! Se disser, estraga tudo. Eu é quee preciso inventar um nome pra você. Já sei; vi nos seus olhos! Você é o Triste.

Surpreso, Márcio levou algum tempo para responder:

- Triste... e quanto! Como adivinhou ?

- Quem sabe? Talvez eu seja mesmo uma Iarra.

- Daquelas que atraem os navegantes, paraa matá-los? Não; você não leva jeito de perversa. E, depois, eu não acredito nisso.

Ela olhou para ele, como se o estudasse. E perguntou, de repente:

- Você me paga uma cerveja?

Envolvido pelo inusitado da situação, Márcio percebeu que nos últimos momentos esquecera o que fazia ali. Resolveu aproveitar mais um pouco, deixar-se levar pela aventura:

- Por que não?

Juntos, saíram do hotel. A praia estava quase deserta, na tarde de quarta-feira; caminharam até uma barraca coberta de palha, a pequena distância e sentaram-se a uma mesa rústica. Apareceu um mulato, de meia-idade, e Márcio pediu a cerveja, que veio logo. Iara tocou o copo no dele:

- Tin-Tin. É para dar sorte!

Beberam quase em silêncio, absortos na beleza do lugar e na atração que começava a nascer entre eles. Depois da primeira cerveja, veio a segunda; e a terceira já ia em meio, quando ele voltou à carga:

- Sabe? Ainda não consigo acreditar que vvocê mora ali. E seus pais? Sua família?

Uma sombra passou pelo lindo rosto de Iara:

- Não quero falar disso, está bem? Vamos falar de outras coisas... de você. Por que estava ali, no hotel, numa tarde de semana? Você não parece um desocupado. Está de férias?

Ele teve um sorriso de amarga ironia:

- Digamos que pretendo tirar férias... dee tudo.

E, de repente, as comportas dos olhos se abriram e o pranto recolhido desabou. Márcio chorou, como não chorava desde a infância, soluçando alto. Horas, dias, meses e anos de auto-repressão caíram através das lágrimas, naquele instante em que se assumiu.

Devagar, os soluços foram cessando. Ele enxugou o rosto nas mangas da camisa e olhou, envergonhado, para Iara:

- Desculpe.

Ela não se movera, durante aqueles minutos eternos. Agora erguia para ele os olhos límpidos, cheios de compreensão, e Márcio soube que não havia de que se envergonhar.

- Eu? Você é que não consegue desculpar aa si mesmo. Quantos anos você tem?

- Que diferença faz?

- Aposto que está passando dos trinta. Accertei?

- Trinta e dois.

- Está vendo? É a idade em que a pessoa rrecorda os ideais dos dezoito, vê a diferença da vida que leva e questiona os valores que aceitou.

- Espere um pouco! Não acha que está falaando de coisas que ainda não conhece? Qual é a sua idade?

- Iaras não têm idade. Digamos que há muiito ultrapassei os trinta, embora ainda esteja perto dos dezoito. Mas não me interrompa, agora que estou procurando entender você. As suas roupas são caras e o chaveiro, no seu bolso, deve ter as chaves de um carro; você não é pobre. E, como não é o tipo de pessoa que pode viver só, deve ser casado. Acertei?

Ele balançou a cabeça, assentindo. E ela continuou:

- Vê? Você tem muito mais do que eu. E issso não o faz feliz. O que é que lhe falta?

Ele já se havia feito, muitas vezes, aquela pergunta. E,

rompidas as barreiras, a necessidade de confidências era muito forte. Pela primeira vez, deu a outra pessoa a resposta que dera a si mesmo:

- O amor.

- Por que? Você não ama sua mulher?

- Amo... não amo... não sei.

- Você é do tipo que anda envolvido com ooutras, preservando a Santa no lar?

- Não!

A resposta saiu na forma de um grito, que espantou a ambos. Iara emudeceu, e Márcio começou a falar:

- Antes fosse isso! Se sexo fosse tudo quue eu precisasse, mulheres não me faltariam. Acontece que eu procuro o Amor, com "A" maiúsculo, o amor de verdade. Uma mulher que me ame!

- E sua mulher não ama você?

- Talvez... à maneira dela. Sabe aquele aamor tradicional, em banho-maria, que é a base da família sólida, onde o amor se confunde com a obrigação? Em que a mulher cuida do marido e dos filhos, aquela vidinha comum, na qual o amor vai sempre ficando pra depois? Cansei disso! Afinal, duas pessoas se juntam por que se querem, ou para constituir a célula-mãe da sociedade? Vão viver em função uma da outra, ou dos que as cercam?

- Vocês não transam?

- Iara, procure entender! O importante nãão é o ato físico: é a doçura de olhar nos olhos e beijar, é o carinho, é você sentir que se está dando e recebendo alguém! A única forma de uma pessoa não se sentir só é misturar-se com alguém, de corpo e alma. E como atingir isso, se não através do amor total e absoluto?

Pensou um pouco, e continuou:

- Acho que jamais tive um verdadeiro orgaasmo. É claro que tenho prazer, ejaculo. Mas sinto que existe algo maior e mais verdadeiro; muitas vezes estive perto de alcança-lo e ele me fugiu por entre os dedos!

As palavras fluíam, porque já estavam dentro dele; apenas esperavam a hora de serem ditas. Márcio repetia para Iara o que já dissera, vezes sem conta, para si próprio:

- O pior é que me sinto um fracasso. Tenttei mostrar o meu jeito de ser e ninguém entendeu; tentei ser como os outros e transformei a minha vida em uma falsidade infinita, uma eterna representação. Tudo bem, tudo bem... sorrisos falsos e o ressentimento se acumulando dentro de mim. Isto não pode ser chamado de vida!

Iara continuava em silêncio. Ele tomou um gole de cerveja, antes de prosseguir no desabafo:

- Você não pode saber o que é a humilhaçãão de confessar o seu amor, o seu desejo, pedir uma carícia e receber um "não" como resposta. Ou transar com a pessoa que se ama, sem que ela participe; é como se eu estivesse transformando o amor em um ato mecânico, uma mera necessidade do corpo. Eu me pergunto quantas vezes morri, nestes anos, e se estas pequenas e infinitas mortes não foram destruindo o amor que havia em mim!

Esvaziou o copo, examinou a garrafa: vazia, também. Ergueu a mão, pedindo mais uma. Completou, enquanto a cerveja chegava:

- E o pior é que poderia ser tão diferentte! Bastaria um gesto de amor, uma atitude de doação na hora certa; bastaria entender o meu jeito de amar. Aí, seria fácil ser feliz!

Silenciou. Iara também não disse uma palavra, e dedicaram-se à cerveja. Márcio a observava disfarçadamente, fascinado pelo mistério daquela menina-mulher tão estranha e atraente.

Ela deveria ter entre dezoito e vinte e poucos anos; a sua pele apresentava o viço da mocidade. Mas os olhos negros eram sérios e compreensivos, como os de um adulto sofrido; passavam fugazmente pelo rosto dele, logo voltando a perder-se no horizonte, como se a sua dona estivesse

imersa em profundas cismas. No silêncio cúmplice, ele sentia como se estivessem ligados por um vínculo secreto e antigo. Fitando-a ali, à luz do dia, confirmou a primeira impressão: Iara era linda!

De repente, ela se ergueu do banco e, sem nada dizer, caminhou para o mar. Surpreso, Márcio deixou sobre a mesa o dinheiro da despesa e foi atrás dela; alcançou-a quando a espuma começava a lamber-lhe os pés e parou a seu lado. Perguntou:

- Que foi?

- Psiu! Não fale. Vamos andar um pouco.

Deram-se as mãos; a pele de Iara tinha o frescor das águas e o calor da vida. Caminharam assim, de mãos dadas, pela areia molhada, indo e voltando em silêncio, até que ela perguntou:

- Vamos tomar um banho?

- Assim? Vestidos?

- Por que não?

E Iara se lançou às águas; Márcio a seguiu e mergulharam ambos. Depois, muito próximos, as roupas ensopadas, riram-se um do outro. Ela não usava roupa de baixo e o tecido, agora transparente, colado à pele, expunha todos os detalhes do seu corpo. Ele contemplou as pequeninas auréolas dos seios e os mamilos dilatados pelo frio; num impulso, abraçou-a e colou seus lábios aos dela.

No princípio, Iara se abandonou ao beijo. Subitamente, ele a sentiu estremecer e enrijecer-se em seus braços. Soltou-a, surpreso.

- Iara! O que foi?

Os olhos negros estavam vidrados; os cantos da boca tremiam e ela parecia prestes a ter uma crise de choro. Sacudiu-a pelos ombros:

- Iara! Iara! O que foi?!

Lentamente, os olhos readquiriram o foco e subiram para o rosto dele, como retornando das profundezas de um escuro abismo. A voz um pouco alterada, ela respondeu:

- Hã? Nada, nada. Desculpe.

Saíram da água, as roupas pingando. De mãos dadas, num mudo acordo, voltaram ao quarto do hotel.

O crepúsculo começava a avermelhar as águas, como um incêndio líquido. Encostada ao que fora o peitoril da janela, Iara despiu a túnica pela cabeça, num gesto gracioso e natural. Márcio sentiu a boca seca, observando as formas perfeitas do corpo dourado, contra o vermelho do sol; as gotas rebrilhavam sobre a pele, como se tanta beleza ainda precisasse de algum adorno.

Tomou-a pela mão e a puxou para si. Ela veio, sorrindo tímida e docemente; aninhou-se em seus braços, enlouquecendo-o com o contato dos seios firmes contra o peito nu. Curvando-se um pouco, ele tomou posse dos lábios entreabertos.

Enlaçados, devagar, abaixaram-se sobre a esteira, onde Iara se estendeu em silêncio. Abandonando os lábios, Márcio dedicou-se ao pescoço, aos ombros, aos seios... percorreu-a com beijos e carícias, como um viajante que explora o mundo dos seus sonhos.

Sem aviso, ela começou a tremer e Márcio ouviu-a chorando; um choro manso e contido. Afastou-se um pouco mas Iara, a voz quente e rouca, pediu:

- Não... não pare agora. Continue, por faavor! Se você soubesse o quando isto é importante para mim!...

Despindo o resto das roupas ele deitou-se sobre ela, cobrindo-a com o seu corpo e o seu amor. E ambos conheceram o orgasmo: uma dimensão à parte, onde o tempo e o mundo deixam de existir; onde as pessoas se perdem e, assim, se encontram.

Depois, cansados, repousaram na esteira. Iara acendeu duas velas, atenuando o escuro da noite, e puxou a cabeça de Márcio para os seus seios, sobre os quais ela se foi colocar, obediente, como se aquele fosse o ninho que lhe 

estava destinado desde o início dos tempos. Ele disse, quase num murmúrio:

- Iara, você precisa saber: meu nome é Máárcio.

- Que diferença faz?

- Agora, estou feliz... não faz mais senttido você me chamar de Triste. E você? Qual o seu nome, de verdade?

Um soluço chegou aos seus ouvidos. Ele passou a mão pelo rosto dela, e sentiu as lágrimas que corriam.

- Chorando? Por que? Eu pensei que você ttambém estivesse feliz!

- E estou. Mas, para você, prefiro continnuar sendo Iara. Há muita coisa que você não sabe, e é melhor assim.

Ele se afastou e olhou para ela. A luz da lua cheia, entrando pela janela, caía num retângulo de prata sobre a esteira e os banhava em uma luz irreal, criando um cenário de sonho.

- Você não entende? Eu quero saber tudo ssobre você! Quero ficar com você!

Num movimento brusco, ela sentou-se na esteira e olhou diretamente para ele. Na penumbra, ele percebeu que as lágrimas continuavam a correr; a voz dela era triste e contida:

- Você quer ficar comigo? E as suas perguuntas? Acha normal que eu more aqui, assim? Quer saber tudo, mesmo? Não acha melhor ir embora, quando amanhecer, e levar o seu sonho? Um sonho pode resistir a tudo, menos à realidade; como a magia de uma noite resiste a tudo, menos à luz do sol.

- Conte-me.

Ela respirou fundo. Encolheu os ombros, num gesto de resignação e derrota antecipada:

- Eu tenho vinte e dois anos. Morava aquii perto, e tinha uma vida normal. Estava na faculdade: medicina. Tudo ia bem, até que uma noite meu pai se embriagou... e me violentou.

A voz tremeu um pouco. Ela voltou a encolher os ombros, como se tivesse que suportar um peso demasiado grande para as suas forças.

- Eu o matei. Enquanto ele dormia, bêbadoo, a meu lado, depois, peguei uma faca da cozinha e o matei. Fui presa, julgada e posta em liberdade; o tribunal me absolveu.

As lágrimas rolavam livremente. Uma profunda mágoa entristecia a sua voz, emanava das palavras:

- Mas minha mãe não fez o mesmo. Enquantoo o processo corria, viajou para São Paulo, para a casa dos meus avós, com o meu irmão menor. Mandou um recado, pelo advogado, que nunca mais queria me ver. Que não queria ser a mãe de uma assassina!

Fez nova pausa, que Márcio não interrompeu. Concluiu:

- Fui libertada há dois meses, sem ter paara onde ir. Vínhamos muito a esta praia, e eu sempre sonhei com este hotel. Juntei os meus poucos pertences e vim para cá. Faço pequenos serviços, para o pessoal das barracas e sempre ganho um prato de comida. Um deles me assediou, um dia; fiquei como louca, e o cortei na mão. A história se espalhou, e nunca mais o caso se repetiu.

O silêncio se prolongou. Iara o rompeu, falando pensativamente, como para si mesma:

- Pensei que nunca mais poderia deixar quue um homem me tocasse, me beijasse... até que você me beijou, hoje na praia; e foi diferente. Por isso quis insistir, ir até o fim, fazer amor com você... e foi maravilhoso! Eu me senti limpa, purificada, normal outra vez.

Abaixou o rosto, evitando o olhar dele:

- Entendeu, agora, por que era melhor nãoo saber de nada? Assim, você poderia guardar o seu sonho e vir aqui de vez em quando, me ver. Pensaria em mim como Iara, não como alguém que matou o próprio pai!

Márcio ergueu a mão, afagou o seu rosto. Segurou-lhe o queixo com ternura, fazendo-a olhar para ele. Beijou de leve os lábios macios, acariciou os longos cabelos.

Deitaram-se novamente sobre a esteira. Ele cobriu de beijos o rosto ainda molhado, as mãos começaram a percorrer suavemente o corpo dela. Falou:

- Amanhã, amor, vamos embora. Eu não vou perder você, nem deixar que ninguém mais lhe magoe. Mas ... sabe? Você ainda não me disse o seu nome!

Agora, ele lhe beijava o pescoço. Iara sentiu que a sua pele se arrepiava, que as sensações se tornavam mais intensas. Abriu os olhos e viu a lua enorme, que os banhava com a sua luz amiga.

Foi num rouco fio de voz, que respondeu:

- Cláudia!...

                 

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