O pega

 

 

- Paulinho, preciso falar com você!

Virou a chave; ouviu o ronco do motor. Acelerou ao máximo, ainda com o carro em ponto morto; a zoada tornou-se ensurdecedora. O barulho é uma forma de abafar os pensamentos, tão boa quanto qualquer outra.

Pressionou a embreagem; engatou a primeira. Liberou o pedal, com rapidez. O carro arrancou, cantando os pneus. Um coro de aplausos partiu do grupo de jovens, parado na esquina.

- Vamos, Paulinho, fale! O que é que há? O que está errado?

Mudou as marchas, em rápida sucessão; segunda, terceira, quarta. A pista, molhada, reluzia o seu brilho negro sob as lâmpadas dos postes. A agulha do velocímetro chegou aos cem; puxou a trava de mão e pisou no freio.

O que estava errado? Tudo, ora essa! Aquela vida, aqueles pais, aquele mundo! A ansiedade latente, a insegurança, o desejo de afirmar-se, de merecer respeito e inspirar estima!

O carro rodopiou, no cavalo-de-pau. Livre de controles, com a velocidade da morte; deu a impressão de que ia virar de lado, os pneus derrapando na água do asfalto. Depois de uma eternidade de segundos, voltou a estabilizar-se e disparou na direção oposta. A turma da esquina manifestou ruidosamente a sua aprovação, através de gritos e assovios.

Talvez fosse mais fácil dizer o que estava certo, se é que havia algo certo! Tinha tudo o que precisava, e muito mais: casa, roupas, comida, presentes caros; uma mesada tão grande, que permitira a compra dos acessórios, escolhidos por ele mesmo, para o carro importado. E, mesmo assim, persistia a sensação de abandono, de ser desprezado!

Balançou a cabeça e apertou os dentes, com raiva. Idiotice, pensar naquelas besteiras! Que se danassem os pais, o mundo! Agora, só existia o carro; o asfalto, a velocidade, eram os seus complementos. Ainda assim, não pôde impedir-se de pensar um instante em Tatiana.

Ela estava entre os jovens, na esquina. Dezessete anos, os cabelos louros e muito lisos, escorridos sobre os ombros. A pele queimada de sol, os dentes brancos, o sorriso moleque e o rosto lindo. O short curto, que vestia, não se preocupava em esconder os encantos do corpo juvenil; despreocupação compartilhada pela pequena blusa de malha, que mal lhe cobria os seios atrevidos.

O carro retornava, em alta velocidade; fez a curva no largo, quase em duas rodas, derrapando perigosamente. Tatiana apertou os olhos, para não ver, até que os gritos anunciaram o sucesso da manobra. E gritou então, entusiasmada, mais alto do que todos.

 

* * *

 

Na pequena delegacia de bairro, o delegado Ferreira esbravejava ao telefone:

- Sim, eu sei! É claro que eu sei! E o quue você quer que eu faça?

Escutou mais um pouco e explodiu de novo:

- Como? Me diga só isso: como?! Tudo que nós temos aqui são dois carros, caindo aos pedaços, que não podem apostar corrida nem com uma tartaruga! E um efetivo de dez homens, que mal dá pra patrulhar as ruas! Como é que eu vou poder pegar esses filhinhos de papai, com seus carros envenenados?!

Fez nova pausa, enquanto o interlocutor argumentava do outro lado da linha. Depois:

- É claro que eu estou preocupado; e não é com os seus cachorros, que não podem mais passear no largo! Se você não sabe, deve haver pessoas passando por lá; essas é que me preocupam. E esses malucos também são gente; temos que defender não só os outros, mas também a eles deles mesmos!

Tornou a ouvir. E encerrou a conversa:

- Escute aqui, você: não queira me ensinaar o trabalho que já faço, como posso, há vinte anos! Já chamei as viaturas de volta, pra poder sair na diligência. Trate de segurar os seus cachorros em casa, até a gente chegar aí. E, se eles não podem mais fazer xixi nos postes do largo, trate de ensiná-los a usar a privada. E ponto final!

Bateu o telefone, com raiva. E deu um murro na mesa, assustando o escrivão que cochilava a seu lado:

- Droga! É nisso que dá a gente trabalharr na polícia! Tudo quanto é filho da mãe pensa que a gente trabalha pra eles, quer dizer o que a gente deve fazer! Ajudar, nada; dar palpite, todo mundo sabe !

Gritou, pela porta entreaberta:

- Ô, Marcos! Manda esses caras se apressaarem, que a gente tem que acabar uma droga dum pega lá no Largo do Bonfim!

Recostou o corpo gorducho na poltrona e passou a mão pelos cabelos, já escassos. Era um homem de bem e gostava de fazer bem o seu trabalho; irritava-se, quando não o conseguia.

Lembrou-se da véspera: a entrevista com o grande comerciante Paulo Maia, dono da cadeia de lojas. Um verdadeiro boçal: enfatuado, arrogante, presunçoso.

No luxuoso escritório, o empresário permanecera sentado enquanto o delegado se aproximava. Era um homem de

seus cinqüenta anos, cabelos grisalhos e bem penteados; o rosto enérgico, de um homem acostumado a dar ordens. Vestia um terno impecável, e o alfinete da sua gravata devia ter custado o equivalente a alguns meses de salário do policial.

Fora direto ao assunto:

- Delegado Antonio Ferreira, não é mesmo?? Não me lembro de conhecê-lo e não imagino o que, em meus negócios, possa interessar à polícia. Poderia me dizer o que posso fazer pelo senhor? Tenho uma reunião, com meus gerentes, daqui a dez minutos.

Ferreira empertigou-se. Era um homem honesto, e não se intimidava ante o dinheiro. Detestava aquele tipo de gente, e não se preocupou em tornar agradável a resposta. Sentou-se, ignorando a ausência do convite, e falou:

- Na verdade, eu é que pretendo fazer alggo pelo senhor. Trata-se do seu filho.

- O Paulinho? O que há com ele?

Nada, na sua voz, denotava ansiedade ou preocupação com o filho; antes transparecia a irritação diante de algum possível problema, que talvez lhe fosse trazer contrariedades inesperadas. O delegado sentiu uma onda de raiva, mas procurou dominar-se:

- Trabalho na Delegacia do Bonfim. Têm haavido pegas por lá. O senhor sabe: aquelas corridas malucas de carros, feitas por rapazes cujos pais têm mais dinheiro que amor pelos filhos.

O homem mordeu os lábios. Ferreira o notou, satisfeito, e continuou:

- Um dos que comete as maiores imprudênciias, é o que dirige um carro importado. Brinca tanto com a morte, que deve ter algum problema com a vida; qualquer dia desses acaba morrendo, e pode levar algum inocente com ele.

- E daí?

- Uma testemunha nos deu a placa do carroo. Fizemos uma busca e o carro está registrado em nome de seu filho.

- E o que o senhor quer que eu faça? Acabbar com essas corridas é obrigação sua, não minha! Quer que eu faça o seu trabalho?!

O delegado não agüentou. Tinha o temperamento explosivo, e elevou a voz:

- Estamos falando de seu filho! Sei que nnão tem obrigação de acabar com os pegas, mas eles só acontecem por causa de pais da sua marca! O que eu quero que o senhor faça? Que seja homem, uma vez na vida, e tenha uma conversa franca com o seu filho! Que o proíba de sair, se for preciso, para salvar a vida dele, e impedir que se torne um criminoso! Cumpra o seu dever de pai, como eu cumpro o meu de policial!

A voz enérgica e educada manteve a mesma altura, mas o homem falava entre os dentes. Parecia cuspir as palavras:

- Escute aqui, delegado: o garoto é legallmente habilitado e o carro que dirige não é roubado, foi comprado! Se você o prender, vai ter que soltá-lo logo, entendeu? Qualquer coisa, eu dou um jeito! Agora, quer fazer o favor de sair do meu escritório? Nem todo mundo é vagabundo, e eu preciso trabalhar!

Ferreira levantou-se. Do alto, encarou o comerciante:

- Como queira. Só gostaria que me explicaasse mais uma coisa.

Intencionalmente, deixou de completar a frase. Esperava a pergunta, que veio:

- O que?

- Acredito que o senhor possa soltar o seeu filho, se ele for preso; ou que possa contornar os problemas, se ele matar alguém. Mas... e se o garoto morrer? Todo o seu dinheiro será capaz de lhe devolver a vida?

Soltando um profundo suspiro, o delegado forçou-se a voltar ao presente. Marcos entrava na sala, dizendo:

- O pessoal já está chegando, chefe. Daquui a pouco, devem estar por aqui.

- Certo. Prepare tudo, pra gente sair na diligência. Vamos ver se a gente consegue pegar esses doidos, antes que morra alguém!

Percebeu o desânimo, na voz do investigador:

- Que é que adianta, chefe? Se tiver sortte, a gente pode trazer alguns deles; logo chegam os advogados dos pais e vai todo mundo embora, pra começar tudo de novo!

O delegado não discutiu. Nem poderia, pois tinha a mesma sensação de impotência.

* * *

 

O pega estava sensacional, naquela noite!

Ninguém se machucara, mas o perigo flutuava no ar e isso parecia animar ainda mais a turma. Entre risinhos e piadas, as garotas fingiam entrevistar os pilotos.

Paulinho estava encostado no carro, conversando com Tatiana; olhando para o seu rosto lindo, afogueado pelas emoções da noite. Queria superar a si mesmo, para impressionar a garota. Falava com ar propositadamente displicente, tinha um cigarro no canto da boca:

- E então? Vamos hoje?

- Ah, Paulinho... não sei!

- Por que? Qual é a tua, hein?

- Eu não sei, já disse! Assim, não acho uuma boa!

- Escuta: resolve duma vez. Já tem um boccado de tempo que venho te chamando pra dormir comigo... e nada !

- Não dá pra dormir fora de casa, Paulinhho!

- Sem essa! Dormir é jeito de falar; a geente vai, transa e volta. Ou você não está a fim?

Tatiana vacilava. Não queria dizer que era virgem. Assim como Paulinho jamais confessaria que sentia algo diferente por ela, que não a queria apenas na cama. Alguém chamou:

- Paulinho! Tua vez, cara! Vai nessa!

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Entrou no carro. Fechou a porta e falou para Tatiana:

- Na volta, a gente conversa. Fique olhanndo!

Arrancou de vez. Foi até a ponta da rua, tomando impulso para a exibição. Voltou acelerando ao máximo, o carro transformado numa bala branca com formato de besouro.

Oitenta... cem... cento e vinte.

Estava bem no meio do largo. Era a hora decisiva, em que todos os segundos são importantes. Preparou-se para pisar no freio.

Então, viu a mulher. Uma mendiga, louca, que sempre estava por ali, envolta em trapos. Desconhecida, anônima; como ninguém sabia o seu nome, os moleques a chamavam Arraia Mijona, apelido retribuído com pedradas que nunca acertavam os alvos.

Jamais saberia se foi piedade ou instinto. Girou bruscamente o volante. Os pneus gemeram, antes de soltar-se do asfalto molhado. A uma velocidade insana, o carro aproximou-se do poste; derrapando, derrapando... até bater em cheio. Tornou-se uma confusa massa de ferragens, em volta do poste, como se o tentasse abraçar. No negro do asfalto, reluziam os pedaços de vidro quebrado.

Um silêncio de morte. Da morte que interrompera a brincadeira, vencendo o desafio que lhe haviam lançado.

Depois, o grito. De Tatiana, que correu para o que restava do carro. E conseguiu ver, entre as ferragens retorcidas, o rosto deformado daquele que fora Paulinho. Um olho vidrado, o outro transformado em uma cavidade medonha, de onde o sangue começava a jorrar.

Ao longe, as sirenes principiavam a fazer-se ouvir. Como um lamento prolongado, um grito de protesto por aquela morte estúpida. Forte, desesperado, inútil, o lamento cortava o ar.

Tão alto, que abafava o pranto convulso de Tatiana.

                      

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