Pedro, Márcia e Gustavo

 

 

 

 

Pedro.

Parado, em frente ao edifício. Apesar do calor, veste o casaco surrado e conserva o velho boné, a pala virada sobre o rosto; parece não sentir o suor que molha todo o seu corpo.

Não fala, quase não se mexe; apenas fuma e espera. Não sabe há quanto tempo está ali, o tempo não existe; ele não tem mais tempo, e tem todo o tempo do mundo. Espera, apenas... é um homem que não tem mais o que esperar.

Márcia.

Parada, também. O seu corpo bonito está imóvel. Também para ela, o tempo deixou de existir; tudo deixou de existir, pela simples razão de que ela já não existe.

Mãos caridosas lavam o seu corpo, ajeitam os cabelos sedosos. Bocas murmuram palavras de piedade, como se uma voz mais alta pudesse interromper o seu sono eterno. Ela já não vive, a não ser na memória atormentada de Pedro.

Gustavo.

Atendendo ao telefone, ditando cartas, dando ordens. O escritório fica no décimo andar e, através das vidraças das janelas, as pessoas no chão parecem formigas. Para ele, os outros não existem; são como formigas, que os seus pés podem esmagar quando lhe parecer conveniente.

Fecha negócios de vulto, ganha fortunas; destrói vidas, sempre que estas se atravessem em seu caminho. Para ele, não existem outras vidas; o mundo e a vida têm um único nome: o seu nome.

Pedro e Márcia.

Vizinhos, desde o nascimento. Juntos, como os dois barracos pobres na invasão do Lobato. Nascidos no mesmo dia, amigos os seus pais; unidos, como se a pobreza diminuísse ao ser repartida.

Márcia menina, Márcia brincando, Márcia sorrindo. Sob o olhar vigilante de Pedro. O amigo fiel, o guarda infalível, o confidente ideal. Como a sombra, aquele cuja presença só é sentida se algum dia sobrevier a ausência.

Pedro menino, Pedro amando. Talvez a sua maior virtude fosse o seu maior defeito. Como a sombra, ele se ocultava; aparecia apenas quando a conjuntura claro-escuro exigia a sua presença. Mas estava sempre ao lado de Márcia.

Crescendo juntos; a vida trabalhando para separá-los. Pedro cada vez mais calado, lutando pela vida; Márcia cada vez mais falante, vivendo a vida. Pedro cada vez mais homem, Márcia cada vez mais mulher.

Vizinhos continuaram e sempre conversavam. Algumas vezes ele gastava o dinheiro parco e suado, ganho como operário, e pagava umas cervejas para os dois; e essa era a sua razão de viver, a sua maior recompensa, a sua esperança de um dia ser feliz.

Pedro quase não falava; apenas ouvia e olhava para Márcia. Gozava o seu riso franco, o sotaque manhoso, a beleza do seu rosto. Sonhava com o corpo atraente; em sonhos, beijava os lábios polpudos e com as suas cobria aquelas carnes tão firmes.

Mas nada dizia; olhava para ela, apenas. E só nessas horas os seus olhos brilhavam, os seus lábios sorriam e a sua mão calejada se tornava suave, em uma carícia ocasional nos cabelos dela.

Márcia, sim, falava o tempo todo. Contava os seus sonhos de progresso; o desejo de vencer, de ser alguém. Falava das estrelas da televisão, das madames na rua. E Pedro ouvia, contagiado por aquelas esperanças; sonhava com a Loteria, pensava em roubar... de tudo faria, para ter Márcia e fazê-la feliz.

E ela insistia em sonhar, em querer, em não ver. Trabalhava de dia, à noite estudava. Sabia-se bonita, desejada. Cuidava de si, vaidosa que era, como se aquela beleza pudesse ser um passaporte, um bilhete de viagem para uma vida melhor.

Pedro sabia dos seus namoricos, das paqueras à toa; pois ela não lhe contava tudo? Ele ouvia em silêncio, ruminando o ciúme; os dentes trancados, como se mordessem a raiva. O seu amor era tanto que a queria feliz, e por isto se escondia.

Uma noite, ela lhe falou de Gustavo. Um homem mais velho, de olhos azuis, cabelos louros e corpo bronzeado. Conhecido na praia, uma carona num carro de sonho. Em um estranho pressentimento, ele sentiu algo novo: como um aviso de mudança, um prenúncio de tristeza, um presságio de separação.

Gustavo e Márcia.

Que tudo mudou; acabaram as horas de Pedro e Márcia. Todo o tempo, todas as conversas, pertenciam a Gustavo. A cerveja foi trocada pelo uísque, os passeios de ônibus por corridas de carro, os bares modestos por locais de luxo. E Márcia mudava: trocando de roupas, trocando de risos, trocando de amigos... trocando de vida.

Pela mão de Gustavo, o mundo que sonhava. De luzes, de cores, de conforto. Um mundo de brilho, que ofusca a sujeira oculta nas sombras: não existe a pobreza, caíram os barracos, salve as mansões!

Pedro, sozinho, descobriu Gustavo. Porque estava só, porque amava Márcia, porque o mundo mudara com a mudança de Márcia. Descobriu um Gustavo que o fez sofrer, porque a faria sofrer; descobriu o seu carro, a sua casa, a sua vida.

Tentou avisar Márcia, falar do que sabia; e foi a primeira

vez em que brigaram. Porque agora havia Gustavo, e o que um sabia não era o que a outra queria; porque o Gustavo de um não era o Gustavo da outra.

Márcia era jovem, ardente e ambiciosa. Talvez não amasse Gustavo, mas amava o seu sonho; queria o que ele lhe podia dar. Queria subir, possuir, mandar. E, na ânsia de tomar, não percebeu que era tomada: roubada em seus sonhos, vítima de suas esperanças.

Sorriu, quando do primeiro enjôo; era um riso de vitória, uma sensação de poder. Não o riso feliz da mulher que espera um filho; não o riso da continuação do amor, do renascer da vida. Era um riso de satisfação; de quem conta, enfim, com a arma que lhe pode trazer a definitiva vitória.

Naquela noite, falou a Gustavo. Na cama, entre carícias aprendidas e agora sabidas. Distraído, ele mal a ouviu: queria seu corpo, seu fogo, seu calor. E quando, mais tarde, a levou para casa, deixou-lhe o endereço de um médico amigo.

Feitos os exames, a dúvida se transformou em certeza: no ventre da mulher, uma nova vida. Gerada entre o desejo e a cobiça, fruto do mútuo engano. Para Márcia, a chave da porta dourada; para Gustavo, um pequeno problema a ser logo resolvido.

Bem que ela lutou; não para defender o filho, mas para prender o pai. Enfim, vencida, concordou. E, num dia igual a tantos outros, houve o aborto; que deveria ser igual a tantos outros.

Pedro e Márcia.

E a morte. O chamado súbito, a corrida ao barraco vizinho. Secos e vazios os olhos do pai de Márcia, verdadeiras torrentes os olhos da mãe desesperada. E ela, na cama, se esvaindo em sangue. Vermelhas as roupas, vermelhos os panos. Tudo vermelho... e o rosto tão branco !

Márcia sofrendo, Márcia arfando, Márcia morrendo. Morto já o feto, aquele que seria o filho de Gustavo, morria agora Márcia; e, com ela, morriam os poucos sonhos de Pedro.

Pedro.

Acendendo mais um cigarro barato; tragando com raiva. Um torvelinho em sua mente, o ódio em seu peito. E a espera.

Gustavo.

Consultando o relógio, saindo do escritório. Entrando no carro, ligando o motor. Mergulhando no tráfego, de volta para casa: para a mulher e os filhos.

Pedro e Gustavo.

O ronco do carro, no portão da garagem. Pedro apertou os olhos, secos como o seu próprio coração. Caminhou atrás do carro que entrava. Enfim, o fim da espera.

Gustavo fechava a porta do carro, quando Pedro chegou à sua frente. Tudo o que viu foi um rosto comum: não podia saber que aquele era o rosto da vingança.

Pedro não falou, não sorriu, não chorou; apenas sacudiu o braço, e o líquido ardente se espalhou pelo rosto de Gustavo.

O grito horrível chegou aos seus ouvidos, através da névoa que o separava do mundo. Cumprida a missão, virou as costas e começou a caminhar sem pressa, enquanto o ácido corroía a carne macia. Enquanto o rosto humano se transformava em uma máscara monstruosa, afastava-se o homem que a dor transformara em um monstro.

Pedro, Márcia e Gustavo.

Um criminoso, uma morta e um aleijado.

                      

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