Beirava os quarenta anos.
Era alto e tinha a pele bronzeada. As primeiras rugas surgiam no rosto agradável
e os anos vividos começavam a fazer-se notar no corpo ainda esbelto, onde a
barriga ameaçava assumir proporções vagamente inquietantes. Os cabelos brancos,
pacientemente, continuavam a luta contra os fios negros, ainda em maioria. Os
olhos, de um castanho muito escuro, conservavam o brilho de alegria e inocência;
eram os olhos de um menino, no rosto de um homem.
Deteve-se à entrada do edifício, hesitante. Num gesto maquinal, colocou um
cigarro na boca e dele aproximou a chama do isqueiro. Consultou o relógio:
- Faltam dez minutos...
Balançou a cabeça; precisava pensar mais um pouco, e tinha tempo para isto.
Afastou-se pela rua, caminhando devagar, examinando a situação.
O telefonema, pela manhã, fora uma surpresa. Jamais esperaria aquela ligação:
- Alô! Marcelo?
- Sim.
- É Vânia.
Informação desnecessária; reconhecera imediatamente a voz. Não é fácil esquecer
uma voz que se ouviu, todos os dias, durante onze anos.
- Tudo bem com você?
- Tudo. Escute, preciso falar com você./p>
- Diga.
- Não; assim, não. Ricardo me disse que ssua mulher viajou. Você não pode passar
lá em casa, hoje de noite?
Ricardo tinha quinze anos e era filho deles. Todos os fins de semana, Marcelo ia
buscar os filhos e passava com eles dois dias: o consolo que se permite aos pais
desquitados. Aos sábados e domingos, Ricardo e Sandra eram dele; instalavam-se
em sua casa, conviviam com ele, curavam a saudade. Davam-se muito bem com Vera.
Pelo que ouvira dizer, Vânia sabia aproveitar esses períodos; amigos comuns lhe
forneciam notícias da ex-esposa. Como todas as mulheres aprisionadas em gaiolas
de contenção e virtude, desde tenra idade, buscava recuperar o que chamava de
"tempo perdido": em paqueras, em noitadas, em boates. Na verdade, isto não o
incomodava; a chama do amor estava nele tão extinta, como se nunca houvesse
existido. A sua preocupação era com os filhos.
Como demorasse a responder, ela insistira:
- Como é? Dá pra você ir?
Havia uma nota de ansiedade na voz, no tom em que era feita a pergunta; isso,
exatamente é que o intrigava. Desde que se haviam separado, quatro anos antes,
as relações estavam praticamente cortadas. Viam-se muito pouco e, todas as vezes
em que isto acontecia, Marcelo percebia em Vânia sinais de rancor ainda
existente.
- Sim, dá. A que horas?
- Oito da noite, pode ser?
- Pode. Aproveito para ver os meninos.
- Tudo bem, então. Até às oito.
- Até.
Recolocara o fone no gancho. O que Vânia poderia querer? Até onde sabia, ela
nunca o perdoara por desfazer o casamento; cenas desagradáveis haviam marcado os
seus últimos anos em comum, e esse convite em nada se encaixava no quadro. E
aquele tom de ansiedade na voz dela... era o que mais o deixava curioso!
Chegou ao fim da rua; atirou fora o cigarro e voltou sobre os próprios passos.
Ele e Vera se amavam, tal como Marcelo concebia o amor; cinco anos de
conhecimento, dos quais três de vida em comum, não haviam alterado os seus
sentimentos. E, como toda pessoa que ama, Vera sentia ciúmes; em particular,
muitos ciúmes de Vânia. Era preciso contar-lhe, assim que chegasse da visita aos
pais; não fosse ela saber por outra pessoa e julgar que ele tivesse algo a
esconder!
Estava, novamente, em frente à entrada. Olhou de novo para o relógio: oito horas
em ponto.
Encolheu os ombros e entrou no edifício. Apertou o botão do elevador.
* * *
Vânia abriu a porta.
Usava uma saia curta e uma blusa de malha, sem sutiã. Com trinta e seis anos,
era preciso vê-la despida para notar, em seu corpo, os sinais de duas
maternidades; os contornos continuavam atraentes, as carnes firmes.
Sorriu para ele:
- Oi! Estava com medo que você não viessee!
- Por que?
Pela primeira vez em muito tempo, os seus olhos se cruzaram; havia um brilho
novo nos olhos de Vânia, ele reparou. Como reparou também que o rosto estava
pintado, os cabelos impecavelmente penteados, como se fosse para uma festa. Mas
Vânia sempre andava assim.
Ela não respondeu à pergunta. Afastou-se para o lado, sorrindo, o branco dos
dentes realçando o vermelho do batom:
- Entre, vamos.
Entrou. Assentou-se na poltrona da sala; ela se colocou no sofá, diante dele, as
pernas dobradas sob o corpo, as coxas grossas e roliças atraindo o seu olhar.
Ele se esforçou, para desviar os olhos.
- Onde estão os meninos?
- Em casa de uma vizinha, aqui no prédio.. Chegam já.
- Qual é o problema?
- Problema? Nenhum. Por que?
- Por que você me telefonou?
Os olhos dela estavam fixos no rosto dele, enquanto respondia:
- Queria ver você.
Marcelo não reprimiu um movimento de espanto e Vânia sorriu:
- Achei que não devíamos continuar assim,, como inimigos. Se não por outro
motivo, ao menos pelos meninos. Afinal, vivemos onze anos juntos; houve muitos
momentos bons, não apenas ruins! Por que não sermos amigos?
Levantou-se antes que ele pudesse responder, ainda sorrindo:
- Vou buscar uma bebida, para selarmos a paz.
Observou-a caminhando; seus olhos passaram por sobre as pernas expostas,
apreciaram o remexido dos quadris, a curvatura das nádegas. A contragosto,
sentiu-se vagamente excitado.
Vânia parou em frente ao aparelho de som. Colocou uma fita, regulou o volume.
Era uma música suave, bem conhecida de Marcelo. Voltou-se para ele:
- Era uma das nossas preferidas, você se lembra?
Foi até o bar, a um canto da sala; apanhou uma garrafa de uísque e dois copos,
que trouxe para a mesinha de centro. Depois, entrou na cozinha.
Ele acendeu um cigarro, ainda surpreso e procurando arrumar os pensamentos. Dera
apenas uma tragada quando a viu voltar, trazendo um balde de gelo que colocou
junto à garrafa.
- É de água de coco. Você ainda gosta?
Preparou duas doses. Quando se aproximou para entregar-lhe o copo, abaixou-se
tanto que Marcelo pôde sentir o leve cheiro de álcool no seu hálito, e apreciar
os seios pelo decote da blusa.
Voltou a sentar-se no sofá. Pediu:
- Acenda um cigarro pra mim.
- Você está fumando?
- Aprendi. Bem você dizia que é gostoso.<
Ele tirou o maço de cigarros do bolso; pegou o isqueiro e viu-se atrapalhado
pelo copo que segurava. Ela riu:
- Sente aqui no sofá e bote o copo na messinha, seu bobo! Ou está com medo de
mim?
Foi. Sentou-se no sofá, pousou o copo sobre a mesa. Acendeu o cigarro;
entregou-o. As mãos se tocaram. Seria imaginação, ou a mão de Vânia teria mesmo
feito uma leve carícia na sua?
Ela virou-se, ficando de frente para ele; os seus joelhos quase tocavam as
calças de Marcelo. O sorriso era francamente provocante:
- O que foi? Você parece assustado!
Ele foi sincero:
- É... talvez pareça, mesmo. É que você eestá tão diferente de... do que tem
sido, desde que a gente se separou! Acho que ainda não deu tempo de me
acostumar.
- E como eu tenho sido?
- Você não sabe? Com raiva de mim; como sse não me perdoasse pela separação.
Uma luz diferente brilhou nos olhos dela; nada mais do que um repentino e
fugidio clarão.
- Raiva? Talvez tivesse. Agora, não tenhoo mais.
Esvaziaram os copos; Vânia voltou a enchê-los. Marcelo perguntou:
- E os meninos?
- Devem chegar daqui a pouco. Vamos esperrar, não é?
E assim ficaram algum tempo: ouvindo música, bebendo e conversando. Evitavam
qualquer referência ao passado e Vânia se mostrava melhor do que nunca: rindo,
ouvindo
com atenção, sempre descobrindo um novo assunto.
Quando ia em meio a quarta dose, pediu licença; levantou-se e regulou a luz da
sala, diminuindo a sua intensidade.
- Assim fica melhor, não é?
Voltou para o sofá. Sentou-se tão perto dele, que as coxas se encostavam.
Marcelo sentiu um aperto na garganta e cruzou as pernas, tentando esconder a
ereção que começava a ressaltar sob suas calças.
Tornou a olhar para o relógio. A voz saiu meio rouca:
- Dez e vinte! Cadê os meninos?
A mão dela, pequenina e macia, caiu sobre sua perna; o suave calor da carne dela
parecia abrasá-lo. A voz de Vânia era calma, levemente arrastada:
- Acho melhor dizer logo a verdade: eles vão dormir em casa de minha irmã, hoje.
A bebida e o desejo se confundiam, na mente de Marcelo. Gaguejou, estupidamente:
- Mas... por que?
A mão correu por cima das calças, numa cariciosa procura; chegou aonde queria,
apertou de leve, afagou. Os dedos, por cima do pano, percorreram o volume que se
escondia sob ele.
- Não advinha, seu bobo?
O rosto dela cresceu, diante de seus olhos. Os lábios se uniram aos seus, a
língua penetrou em sua boca: úmida, exigente, ávida.
Da boca, os lábios desceram para o pescoço; a mão abriu um botão da camisa, o
mamilo pequenino e rígido foi sugado. Ele tentou falar:
- Vânia ... não...
A mão abriu o zíper da calça, afastou a cueca. Os dedos acariciaram, a cabeça
inclinou-se sobre o colo dele. Por alguns minutos, o silêncio que se instalara
com o término do CD foi pontuado de leves ruídos: os ruídos da boca sobre a
carne, da carne na boca, misturados aos roucos gemidos de Marcelo.
Ela se ergueu. E pegou-o pela mão, puxando-o para o quarto:
- Venha!
A cama de casal os recebeu. E sobre ela, despidos, possuíram-se como nunca o
haviam feito; de todas as maneiras, em todas as posições. Marcelo descobriu uma
nova Vânia, que o agasalhava em todas as suas aberturas; que lhe oferecia tudo o
que havia aprendido nas camas por onde andara.
Enfim, exausto, Marcelo adormeceu.
* * *
Acordou de repente, rolou na cama, acendeu o abajur, apanhou o relógio de pulso
na mesinha de cabeceira.
- Quatro horas da manhã!
Sacudiu a cabeça, tentando afastar o sono e os efeitos do uísque. Levantou-se e
foi para o banheiro; tomou um banho morno e prolongado, esfregando a pele como
se quisesse arrancá-la.
Agora, saciado o desejo, sentia-se sujo. Como pudera fazer aquilo, trair Vera e
justamente com Vânia?! Era como se o cheiro de Vânia exalasse por todos os seus
poros, fizesse parte dele. Jamais conseguiria arrancar aquele cheiro?!
Cabisbaixo, voltou para o quarto. Vânia fumava em silêncio, encostada ao
travesseiro que apoiara na cabeceira da cama, quase sentada. O lençol a cobria
da cintura para baixo, e os pontos escuros dos mamilos eram como pequenas
manchas marrons na pele alva.
Sem uma palavra, vestiu-se. O silêncio era absoluto,
opressivo. O ambiente estava tenso, o ar parecia carregado de denso
constrangimento.
Já vestido, junto à porta do quarto, voltou-se. Uma estranha mistura de
sentimentos o invadia. Debatia-se entre sentir raiva ou piedade por Vânia e por
ele mesmo; estava entre a ira e o remorso. Sentiu que precisava dizer alguma
coisa:
- Isto não vai mudar nada, acho que você sabe. Eu amo a minha mulher, e se você
for contar algo a ela...
Interrompeu-se. Todo o corpo de Vânia se sacudia, ao ritmo da gargalhada. Ela
quase não conseguia articular as palavras:
- Imbecil! Está pensando que eu quero voccê de volta? Eu não vou contar nada à
sua mulher... você é que vai, se gosta dela!
Tão de repente como surgira, a gargalhada cessou. Vânia enxugou as lágrimas que
escorriam de seus olhos, com as costas das mãos. Embora muito baixa, a sua voz
estalava como um chicote:
- Eu jamais voltaria a viver com você, ouuviu bem? Você falou em raiva? Eu odeio
você, com todas as minhas forças! Odeio! Entendeu?
Ele não conseguiu esconder a surpresa:
- Mas... então... por que?...
Agora, Vânia apenas sorria. E era um sorriso diferente e maldoso; a boca parecia
haver congelado, os dentes brilhavam, como os dentes de um lobo. Um sorriso sem
alegria; algo que ele jamais havia visto antes, e não gostaria de voltar a ver.
O ódio contraía os traços de Vânia, segurava naquela posição os cantos de sua
boca, brilhava nos seus dentes! Era um sorriso de vingança, de perverso triunfo.
Havia ódio e crueldade, também, na voz dela:
- Eu estou com AIDS, idiota!...