Trechos finais do diálogo Fédon de Platão


Dito isto, Sócrates pôs-se de pé, e, para banhar-se, passou a outra peça. Críton seguiu-o; fazendo sinal que esperássemos. Ficamos, pois, a conversar e examinar tudo quanto se havia dito. Lamentávamos a imensidade do infortúnio que sobre nós descera. Verdadeiramente, era para nós como se perdêssemos uma pai, e iríamos passar como órfãos o resto de nossa vida!
Depois de ter se banhado, trouxeram-lhe seus filhos (tinha dois pequenos e um já grande), e as mulheres de casa também vieram; entreteve-se com eles na presença de Críton, fazendo-lhes algumas recomendações. Em seguida, ordenou que se retirassem e veio para junto de nós.
Já o sol já estava próximo de recolher-se, pois Sócrates havia passado muito tempo no outro quarto. Ao voltar do banho sentou-se novamente, e a conversa desta vez durou pouco. Apresentou-se então o servidor dos Onze e, em pé, diante dele disse:
– Sócrates, por certo não me darás a mesma razão de queixa que tenho contra os outros! Esses enchem-se de cólera contra mim e me cobrem de imprecações quando os convido a tomar o veneno, porque tal é a ordem dos Magistrados. Tu, como tive muitas ocasiões de verificar, és o homem mais generoso, o mais brando e o melhor de todos aqueles que passaram por este lugar. E, muito particularmente hoje, estou convencido de que não será contra mim que sentirás ódio, pois conheces os verdadeiros culpados, mas contra eles. Não ignoras o que vim anunciar-te, adeus! Procura suportar da melhor forma o que é necessário!
Ao mesmo tempo pôs-se a chorar e, escondendo a face, retirou-se. Sócrates tendo levantado os olhos para ele:
- Adeus! – disse. - Seguirei o teu cconselho. Depois, voltando-se para nós: Quanta gentileza neste homem! Durante toda a minha permanência aqui veio várias vezes ver-me, e até conversar comigo. Excelente homem! E, hoje, quanta generosidade no seu pranto! Pois bem, avante! Obedeçamos-lhe, Críton, e que me tragam o veneno se já está preparado; se não, que o prepare quem o deve preparar! [...]
Assim admoestado, Críton fez sinal a um de seus servidores que se mantinham nas proximidades. Este saiu e retornou daí a poucos instantes, conduzindo consigo aquele que devia administrar o veneno. Este homem o trazia numa taça. Ao vê-lo Sócrates disse:
- Então, meu caro! Tu que tens expeeriência disto, que é preciso que eu faça?
- Nada mais – respondeu – do qque dar umas voltas caminhando, depois de haver bebido, até que as pernas se tornem pesadas, e em seguida ficar deitado. Desse modo o veneno produzirá seu efeito.
Dizendo isso, estendeu a taça a Sócrates. Este a empunhou, Equécrates, conservando toda a sua serenidade, sem um estremecimento, sem uma alteração, nem da cor do rosto, nem dos seus traços. [...] E em seguida, sem sobressaltos, sem relutar nem dar amostras de desagrado, bebeu até o fundo.
Nesse momento nós, que então conseguíramos com muito esforço reter o pranto, ao vermos que estava bebendo, que já havia bebido, não nos contivemos mais. Foi mais forte do que eu. As lágrimas me jorraram em ondas, embora, com a face velada, estivesse chorando apenas a minha infelicidade – pois, está claro, não podia chorar de pena de Sócrates! Sim, a infelicidade de ficar privado de um tal companheiro! De resto, incapaz, muito antes de mim, de conter seus soluços, Críton se havia levantado para sair. E Apolodoro, que mesmo antes não cessara um instante de chorar, se pôs então, como lhe era natural, a lançar tais rugidos de dor e de cólera, que todos os que o ouviam sentiram-se comovidos, salvo, é verdade, o próprio Sócrates:
- Que estais fazendo? – exclamou &nddash; Que gente incompreensível! Se mandei as mulheres embora, foi sobretudo para evitar semelhante cena, pois, segundo me ensinaram, é com belas palavras que se deve morrer. Acalmai-vos, vamos! Dominai-vos!
Ao ouvir esta linguagem, ficamos envergonhados e contivemos as lágrimas. Quanto a Sócrates, pôs-se a dar umas voltas no quarto, até que declarou sentir pesadas as pernas. Deitou-se então de costas, assim como lhe havia recomendado o homem. Ao mesmo tempo, este, aplicando as mãos aos pés e às pernas, examinava-os por intervalos. Em seguida, tendo apertado fortemente o pé, perguntou se o sentia. Sócrates disse que não. Depois disso recomeçou no tornozelo e, subindo aos poucos, nos fez ver que Sócrates começava a ficar frio e a enrijecer-se. Continuando a apalpá-lo, declarou-nos que quando aquilo chegasse até o coração, Sócrates ir-se-ia. Sócrates já se tinha tornado rijo e frio em quase toda a região inferior ao ventre, quando descobriu sua face, que havia velado, e disse estas palavras, as derradeiras que pronunciou:
- Críton, devemos um galo a Ascl&eaacute;pio; não te esqueças de pagar essa dívida. – Assim farei – respondeu Críton. – Mas vê se não tens mais nada para dizer-nos.
A pergunta de Críton ficou sem resposta. Ao cabo de breve instante, Sócrates fez um movimento. O homem então o descobriu. Seu olhar estava fixo. Vendo isso, Críton lhe cerrou a boca e os olhos.
Tal foi, Equécrates, o fim de nosso companheiro. O homem de quem podemos bendizer que, entre todos os de seu tempo que nos foi dado conhecer, era o melhor, o mais sábio e o mais justo.
(Platão 1991, p. 124-126)

A morte de Sócrates
Jacques-Louis David (1787)

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