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TRECHOS DE "A HISTÓRIA DAS MINHAS CALAMIDADES" (1121), DE PEDRO ABELARDO (1079-1142)

Quando ele começou a se corresponder com Heloísa:
Embora nós estivéssemos separados, era possível que nos tornássemos presentes um ao outro por intermédio de cartas, assim como escrever com mais audácia aquelas coisas que geralmente não se dizem de viva voz e, desse modo, estaríamos sempre em agradáveis colóquios.

Quando ele começou suas aulas com Heloísa:
Assim, com a desculpa do ensino, nós nos entregávamos inteiramente ao amor, e o estudo da lição nos proporcionava as secretas intimidades que o amor desejava. Enquanto os livros ficavam abertos, introduziam-se mais palavras de amor do que a respeito da lição, e havia mais beijos do que sentenças; minhas mãos transportavam-se mais vezes aos seios do que para os livros e mais freqüentemente o amor se refletia nos olhos do que a lição os dirigia para o texto.
...
E quanto mais essa volúpia me dominava, tanto menos eu podia consagrar-me à filosofia e ocupar-me da escola. Para mim era muito aborrecido ir à escola ou nela permanecer, como era, igualmente, muito difícil para mim ficar em pé, enquanto dedicava as vigílias noturnas ao amor e as horas diurnas ao estudo. As aulas, então, tinham em mim um expositor negligente e indiferente, de tal modo que eu já nada proferia servindo-me do engenho, mas repetia tudo mecanicamente, e já não passava de um repetidor dos meus primeiros achados e, se fosse possível ainda achar algo, seriam versos de amor e não os segredos da filosofia. Depois da separação:
Nenhum de nós se queixava do que acontecera a si mesmo e sim ao outro; nenhum de nós chorava os próprios infortúnios, mas sim os do outro. Entretanto, essa separação dos corpos tornou-se o maior fator de união de nossas almas e, por se lhe negar satisfação, mais ainda se inflamava o nosso amor, e a impressão da vergonha passada despojou-nos mais ainda do pudor, e tanto menos ela se fazia sentir quanto mais a ação nos parecia ainda mais conveniente.

Quando o emascularam:
Quando me inteirei do que acontecia, enviei-a para certa abadia de monjas, perto de Paris, chamada Argenteuil, onde ela outrora, quando menina, fora educada e instruída. Fiz preparar para ela o hábito religioso conveniente à vida monástica e com ele a revesti, exceto o véu. Tendo ouvido o que se passara, o tio dela e os seus parentes ou cúmplices acharam que eu já zombara imensamente deles e que, ao fazê-la monja, eu queria desembaraçar-me dela facilmente. Donde, profundamente indignados e mancomunados contra mim, certa noite, enquanto eu repousava e dormia num quarto retirado da minha residência, tendo corrompido com dinheiro o meu servidor, puniram-me com a vingança mais cruel e vergonhosa, e de que o mundo tomou conhecimento com o maior espanto, isto é, cortaram aquelas partes do meu corpo com as quais eu havia perpetrado a façanha que eles lamentavam.


O que é Arte

O artista é um criador de beleza. Revelar a arte e ocultar o artista,
eis o objetivo da arte.
O crítico é aquele que é capaz de transpor, de um modo ou de outro, ou
de traduzir em elementos novos a sua impressão de beleza. A forma de
crítica mais elevada, assim como a mais baixa, é uma espécie de
autobiografia.
Aqueles que descobrem nas obras belas, significações grosseiras, são
corruptos sem serem elegantes. Aqueles que descobrem nas obras belas,
significações belas, são espíritos cultos. Para esses, existe a
esperança. São eles os eleitos para os quais as coisas belas não possuem
outro sentido que não seja a sua beleza.
Qualificar um livro de moral ou imoral não significa coisa alguma. Um
livro está bem ou mal escrito. Nada mais.
A aversão do século XIX pelo realismo é a raiva de Calibã ao reconhecer
sua imagem num espelho. A aversão do século XIX pelo romantismo é a
raiva de Calibã que não reconhece sua imagem num espelho.
A vida moral do homem é um dos assuntos versados pelo artista, mas a
moralidade da arte consiste no uso perfeito de um instrumento
imperfeito. O artista não tem em mente provar coisa alguma. Tudo é
suscetível de prova, mesmo aquilo que é verdadeiro. O artista não tem
preferência de ordem moral. A preferência moral no artista é maneirismo
de estilo imperdoável. Nunca o artista é indecente. O artista pode
exprimir tudo.
O pensamento e a linguagem são, para o artista, os instrumentos de sua
arte. O vício e a virtude são, para o artista, a matéria de sua arte.
Do ponto de vista da forma, o modelo de todas as artes é a do músico. Do
ponto de vista do sentimento, o modelo é a profissão do ator.
Toda arte é ao mesmo tempo superfície e símbolo. Aqueles que mergulham
por baixo da superfície fazem-no com o próprio risco e perigo. Aqueles
que sondam o símbolo fazem-no também com o próprio risco e perigo.
Na realidade, é o espectador, e não a vida, aquilo que a arte reflete.
A diversidade de opiniões a respeito de uma obra de arte indica que essa
obra é nova, complexa e viva. Quando os críticos não se entendem, o
artista está de acordo consigo mesmo.
Pode perdoar-se a um homem fazer obra útil, enquanto se abstiver de
admirá-la. Para fazer obra inútil, existe, apenas, a desculpa de
admirá-la infinitamente. Toda arte é completamente inútil.

Oscar Wilde - O Retrato de Dorian Gray (Prefácio)


História de um Brâmane de Voltaire

 

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