O Barbeiro de Santos
Por Paulo de Tarso*

   De vez em quando, somos presenteados por nossa memória com  lembranças agradáveis e, às vezes curiosas. É claro que meu senso analítico, de milimétrica observação, ajuda bastante e abre caminho para fatos ocorridos em outros tempos.
Nas décadas de 60 e 70, o ponto alto da integração social dos pais de família e da ornitologia santista ocorria nas manhãs de sábado nas barbearias de bairro. Dia claro, mas ainda cedo, cada barbeiro executava um ritual de abertura de seu estabelecimento. Logo após o solavanco na porta um tanto emperrada (cada um tinha seu truque), exibia orgulhosamente seus passarinhos cujas gaiolas já tinham seus pregos cativos nas paredes laterais externas ou naquela árvore que sempre existe em frente a uma barbearia.
   Mas a árvore era preferencialmente reservada para as visitas. Ou seja, para as gaiolas dos passarinheiros visitantes. De bicicleta ou a pé, eles chegavam aos poucos e logo a conversa esquentava. Mandando beijinhos para os pássaros (na maioria, curiós), tentavam uma resposta sonora que indicasse logo o valor e a estirpe do pequeno animal.
   Ao lado de meu pai, eu só observava. Desde a cadeira do barbeiro, cuja marca era geralmente Ferrante, até as garrafas de água de quinino colocadas sobre o espelho. Não faltavam também os distintivos do clube de simpatia do barbeiro e do clube do bairro
( este para atrair a freguesia). Charges amareladas do Amigo da Onça, recortadas da revista O Cruzeiro também eram comuns nesse tipo de ambiente. E eu ali, observando tudo, atentamente.
   O falatório, os passarinhos, o ruído das tesouras. Tudo compunha o ambiente. O eco de dentro da barbearia proporcionava a acústica ideal para aquela ópera que poderia muito bem se chamar 'O Barbeiro de Santos'. Tal condição também fazia destacar os assobios prolongados e de exagerado vibrato dos coroas mais entusiasmados. A maioria tentava interpretar canções do tipo 'Besame Mucho' ou 'Perfume de Gardenia'. Ai de quem não tivesse no bolso da camisa seu pente Flamengo.
   Chegava minha vez de ir para a cadeira monstruosa do barbeiro.  Enquanto criticava o excessivo comprimento dos meus cabelos, o cidadão trocava idéias, papo de coroa, com meu pai. O corte era o Americano. Eu lembro. O serviço começava com a máquina passando pelo meio da cabeça. Talvez herança do período militar, mas eu achava mesmo que era o gosto dos adultos.
   De repente, alguém chamava o barbeiro à porta e, ao ir atender, me deixava com o corte pela metade, exposto ao ridículo perante as meninas da vizinhança que volta e meia passavam pela porta da encantadora barbearia. Sinceramente, isso me irritava profundamente.
   Também não entendia porque tanta gente conversava com um cidadão que ficava perto da porta recebendo dinheiro e dando papéis para as pessoas. "Aquele é o bicheiro", dizia meu pai.
No final, voltava para casa pensando em como um ambiente tão pequeno podia comportar tamanha diversidade de situações, uma engrenagem folclórica, uma lembrança de longa data...dos 'Barbeiros de Santos'.
Alguém sabe onde ainda há algum?


* Paulo de Tarso é jornalista, orador adjunto da ARLS Florentino Diegues Gonçalves e integrante da Loja de Perfeição Guatimozim, grau 14.
"É a sua vez, garoto."
Charges do 'Amigo da Onça' decoravam as paredes das barbearias de bairro
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