A cidade e os grandes eventos Olímpicos: Uma Geografia para quem?
Autor: Gilmar Mascarenhas
Introdução
O presente
texto trata de levantar e discutir aspectos que evidenciam a possibilidade da
abordagem geográfica dos Jogos Olímpicos, este mega-evento de incontestável
impacto espacial. Trata-se de um conjunto de reflexões e observações gerais que
estamos acumulando com o objetivo de realizar uma investigação específica,
acerca dos impactos sócioespaciais, econômicos e ambientais dos Jogos
Panamericanos na cidade do Rio de Janeiro. O evento ocorrerá no ano de 2007,
mas já se notam os investimentos e transformações na geografia da cidade, no
âmbito dos preparativos. Pretendemos também analisar criticamente os
pressupostos da gestão urbana que vem norteando a planificação deste evento.
Neste momento, todavia, nos deteremos às considerações gerais supracitadas, no
sentido de formatar uma metodologia básica para o estudo geográfico de eventos
desta natureza.
O artigo
divide-se em duas partes: na primeira, apresentamos a geografia dos esportes (o
estado da arte neste incipiente campo de investigações e seus horizontes
temáticos), enquanto na segunda tratamos especificamente das olimpíadas e sua
dimensão geográfica.
A Geografia dos Esportes: o estado da arte e os horizontes de investigação
Os
esportes, enquanto fenômeno social, se realizam a partir de determinadas
condições históricas e geográficas, ainda que este último conjunto de condições
nem sempre seja devidamente reconhecido pelos estudiosos do tema. John Bale é
certamente a maior estudioso do assunto, tendo publicado desde 1976 dezenas de
livros e artigos, sobre os mais diversos esportes e contemplando uma gama
variada de temas e matizes teóricos, beneficiando-se particularmente da imensa
e prestigiada produção acadêmica na área de história e sociologia dos esportes
na Grã-Bretanha a partir de 1980. Em Bordeaux, na França, destaca-se o geógrafo
Jean-Pierre Augustin. Mais recentemente, outro francês, Loïc Ravenel (1998)
produziu um dos poucos estudos geográficos dedicados exclusivamente ao futebol.
A
geografia dos esportes já conta em certos países (França, EUA, Inglaterra) com
notável desenvolvimento. Vale citar por exemplo a graduação em Geography and
Sports Science (The University of Birmingham, UK), voltada para a gestão e
planejamento de espaços de recreação e esportes na cidade. Nos encontros anuais
da Association of American Geographers, os esportes comparecem assiduamente há
vários anos. A dimensão espacial da atividade esportiva vem sendo reconhecida e
mesmo sendo explorada por outras disciplinas no Brasil e no exterior. Em linhas
gerais, todavia, o tema permanece situado à margem da agenda de estudos
geográficos. Na América Latina, até o momento não encontramos nenhuma
referência, o que supõe ser nossa iniciativa pioneira não apenas no Brasil1.
O
conhecimento e manejo dos elementos da natureza compõem, em cada região, um
amplo acervo cultural, e parece-nos razoável pensar que possivelmente os
diferentes "gêneros de vida" e as diferentes paisagens naturais
forneceram bases fundamentais para diversas modalidades esportivas do mundo
atual2. Esta evidente relação com o quadro natural sugere um amplo
caminho de investigações geográficas. Um deles é estudar a dimensão
"ecológica" de cada modalidade esportiva, desde sua origem aos
impactos ambientais atuais. O geógrafo enquanto agente de planejamento
territorial pode, a partir de um diagnóstico sócio-ambiental, ajudar a
estabelecer as áreas mais apropriadas para a prática de cada esporte, minimizando
assim impactos negativos ao meio ambiente. A expansão recente dos chamados
"esportes radicais"3, por exemplo, demanda sobremaneira
tal estudo, posto que muitas vezes tais atividades procuram a aventura em áreas
de natureza praticamente intocada (montanhas, alto curso de rios e mesmo
desertos), tendendo a causar impactos significativos, sobretudo quando promovem
eventos cuja divulgação visa atrair maior fluxo de visitantes, já no âmbito do
turismo esportivo. Preocupa-nos o caráter de "incerteza/indefinição
territorial" destes novos esportes de aventura, vistos como atividades de
difícil controle/planejamento e consequentemente de maior potencial de danos à
natureza e à sociedade (Mascarenhas2001b).
No
que tange à configuração territorial, isto é, o arranjo sistêmico-funcional dos
objetos geográficos4 no território, os esportes merecem a observação
cuidadosa, posto que sua prática implica transformações significativas na forma
e na dinâmica territoriais. Neste aspecto, devemos realçar o papel dos Jogos
Olímpicos, pois indubitavelmente trata-se do evento esportivo com maior poder
de transformação na paisagem geográfica das cidades, alterando profundamente
sua morfologia, sua funcionalidade e sua dinâmica territorial.
As
instalações esportivas (ginásios, autódromos, estádios etc.), além de se
apresentarem freqüentemente como paisagem durável (decorrente do grande
investimento necessário para edificação) e ampla visibilidade (decorrente do
porte físico), podem ainda constituir importante centralidade física e
simbólica no interior do espaço urbano (Mascarenhas, 2004).
Os
grandes estádios, por exemplo, são planejados de forma a facilitar o grande
afluxo de espectadores em dias de importantes eventos, quando o longo silêncio
das estruturas de concreto armado cede lugar ao delírio da multidão. Desta
maneira, tendem a se inserir em áreas bem servidas de meios e vias de
transporte5, ou ainda, segundo tendência mais recente, localizar-se
fora da área mais densamente urbanizada, de modo que o próprio equipamento crie
a demanda de investimentos de melhoria da acessibilidade. Neste caso, não
diferem de outros grandes objetos geográficos detentores de poder de
reorganizar a base territorial circundante, como os modernos shopping
centers..
Os
equipamentos esportivos afetam diretamente a dinâmica urbana, cada um segundo
uma lógica locacional e uma forma espacial que deriva da própria modalidade
esportiva que o criou. Por constituir esporte de elite, e por consumir extensas
áreas que mantêm-se verdes e silenciosas, o golf por exemplo produz campos que
notavelmente valorizam os terrenos vizinhos. John Bale (1989:156) estima que no
Reino Unido (onde tais campos de "monocultura" ocupam preciosos 80
mil hectares de terra) a presença de campos de golf valorizam em média as
propriedades mais próximas em aproximadamente 10%. O geógrafo norte-americano
Bob Adams (apud Bale, 1989:157) acredita que em muitos casos campos de golf são
criados mais por finalidades de valorização fundiária que propriamente para a prática
esportiva.
Também
os hipódromos tornaram-se equipamentos vistos como externalidade positiva no
mercado imobiliário. Até meados do século XVIII, entretanto, as corridas de
cavalo na Europa se realizavam geralmente em rústicas pistas providas apenas de
cercas para aglomerar em pé os poucos curiosos e apostadores, em áreas mais
afastadas do centro urbano. O crescimento das cidades e a expansão da indústria
do espetáculo esportivo (venda de ingressos) propiciaram melhorias materiais
significativas nesta paisagem, como a construção de arquibancadas e pavilhões
sociais, que enfim produziram o moderno hipódromo. A famosa reforma urbana do
Barão de Haussmann em Paris emprestou "glamour" ao turfe, ao edificar
no Bois de Boulogne o belíssimo e imponente hipódromo de Antenil. Desde então,
quase todas as grandes cidades que desejaram viver plenamente a belle époque
dedicaram um lugar especial (junto aos bairros de elite) à construção de um
majestoso hipódromo6.De um modo geral, a febre esportiva que se
verifica neste período histórico pode ser compreendida no âmbito da modernidade
urbana (Mascarenhas, 1999).
Em
síntese, os esportes apresentam uma diversidade geográfica, um conteúdo de
relação homem - natureza e uma capacidade de transformação do meio que os
habilitam plenamente como objeto de estudo da geografia. Os Jogos Olímpicos de
verão7, sendo um gigantesco evento, concentra forças de grande
impacto sobre os lugares, redimensionando-os em sua forma, função e dimensão
simbólica. Este é o assunto do próximo segmento.
Os Jogos Olímpicos e sua geografia: algumas notas
O
geógrafo Jean-Pierre Augustin (1995:31-36) ao discutir a dimensão geopolítica
dos Jogos Olímpicos (doravante abreviados como J.O.), alerta-nos para o quanto
estes representam uma autêntica vitrine das potências econômicas, alimentando
no plano imaginário a lógica das profundas desigualdades no cenário
internacional. Em suma, são estes países os que em geral se destacam na
performance olímpica, e os que exprimem sua enaltecida capacidade (econômica,
tecnológica e logística) de realização destes eventos. De fato, basta examinar
as 24 edições de J.O. já ocorridas até o momento, e constatar que apenas três
delas se realizaram fora do chamado mundo desenvolvido. Assim mesmo, devemos
considerar que dentre as três cidades situadas no capitalismo periférico, uma
delas (Atenas, em 1896) deve sua escolha a fatores muitíssimo peculiares: a
condição ancestral dos antigos jogos gregos e o caráter amador e de pequeno
porte que constituiu aquela primeira realização dos Jogos Olímpicos na era
moderna. Das duas restantes (México em 1968 e Seul em 1988), vale frisar que a
última situa-se em um país com elevado ritmo de crescimento econômico naquela
década, despontando como um dos festejados símbolos da vitória do capitalismo
sobre o modelo planificado, prestes a ruir naquela conjuntura. África e América
do Sul, a despeito de tantas candidaturas, jamais puderam sediar os Jogos
Olímpicos, enquanto a Europa Ocidental concentra mais da metade de todos os já
realizados.
A
distribuição pelas nações das medalhas conquistadas e das "cidades
olímpicas" é um valiosos tema para estudo geográfico. Queremos entretanto
concentrar maior atenção em outro aspecto, aqui já mencionado: o poder do olimpismo
na reestruturação urbana. Um poder crescente, que leva cidades de todo o
planeta a lutar pela obtenção do direito de sediar as olimpíadas, tomadas como
incontestável alavanca para a dinamização da economia local e sobretudo para
redefinir a imagem da cidade no competitivo cenário mundial8.
Desfrutando de bilhões de espectadores, tais cidades se transformam,
momentaneamente, no admirado centro das atenções em escala planetária. Em certo
sentido, os J.O. correspondem na atualidade ao papel similar cumprido por
algumas das grandes exposições universais da segunda metade do século XIX ao
início do século seguinte, ao por em relevo as utopias do progresso sem
fronteiras e da solidariedade e harmonia entre os povos9. Também
podemos comparar o imenso impacto destes eventos na dinamização e
reestruturação das cidades10. Em síntese, este esboço de estudo dos
J.O. como poderoso agente de planejamento e mudanças no espaço urbano se insere
num projeto mais amplo, o de avaliar o papel dos grandes eventos internacionais
na reestruturação das cidades.
As
primeiras décadas de J.O. deixaram, todavia, poucos vestígios na paisagem
urbana. A falta de apoio oficial, a pouca difusão do olimpismo, o reduzido
número de participantes, uma série de fatores enfim somaram para um grau ainda
incipiente de organização e porte dos J.O., caracterizados pelo improviso e
precariedade das instalações físicas. Segundo Muñoz (1996), somente em 1932
pode-se iniciar a falar, embora timidamente, em "urbanismo olímpico",
quando a cidade de Los Angeles utilizou os jogos como oportunidade de
reerguimento da economia local, muito abalada pela crise de 1929. Em 1936,
Berlin seguiu o exemplo e consolidou a nova tradição de edificação de vilas
olímpicas dotadas de alguns equipamentos específicos para os atletas.
Após
a Segunda Grande Guerra Mundial, o olimpismo adquiriu força inédita, atraindo
maior interesse e apoio governamentais, bem como verificando crescente adesão
de atletas de diversos países. E assim, em 1952, Helsinki inaugura a era dos
grandes projetos habitacionais populares a partir dos J.O.. Nos jogos
seguintes, Melbourne não apenas seguiu o modelo como incorporou o uso de vasta
infra-estrutura esportiva universitária. Em Roma (1960), a novidade foi a
criação de uma vila olímpica com modernas e bem equipadas edificações dentro de
um explícito projeto de expansão urbana, incluindo a implantação de
infra-estrutura geral e de acesso. Devemos considerar o novo contexto
sócio-econômico, para entender a afirmação de um "urbanismo olímpico"
multiplicador de equipamentos públicos de lazer e esporte: a consolidação do
Estado de Bem-estar Social na Europa Ocidental não apenas garantiu maior
capacidade de consumo como também oportunizou a difusão da prática esportiva,
dentro da política social "esporte para todos". Desde então, cada
olimpíada vem deixando (ou propiciando) marcas indeléveis na paisagem das
cidades, tornando-se uma efetiva possibilidade de executar o planejamento
urbano.
Nos
anos 70, nota-se um aprimoramento desta conjugação entre J.O. e planejamento
urbano. Entre urbanistas, crescia naquele momento a preocupação para com a
indesejável obsolescência das áreas centrais, em favor de novos sub-centros e
subúrbios de perfil econômico elevado, processo acionado sobretudo pela difusão
do uso do automóvel. Nos J.O. de Munique (1972) e Montreal (1976) nota-se,
segundo Muñoz (1996), uma clara política de instalação ou aproveitamento de
equipamentos esportivos junto à área central, valorizando-a. Podemos afirmar
que neste momento os J.O. propiciaram a oportunidade de concretização de novas
idéias urbanísticas, que ainda hoje situam-se no centro do debate sobre a
renovação das cidades.
Moscou
(1980) demarca o ápice da política de construção de habitações populares a
partir de uma vila olímpica: nada menos que dezoito blocos de apartamentos
pré-fabricados com 16 andares cada um. O imenso investimento soviético se
explica não apenas pela conformidade de tal iniciativa com o modelo funcional e
homogêneo de urbanismo socialista, mas sobretudo por ser aquela ocasião para a
já decadente URSS uma das últimas chances de exibir ao mundo seu poderio
(atlético, financeiro e organizativo). Insistimos, por conseguinte, que cada
evento olímpico guarda suas especificidades, refletindo ao mesmo tempo o
contexto histórico e a espacialidade concreta.
Seul
(1988) e Barcelona (1992) constituem claros exemplos de uso dos J.O. como
poderosa alavanca para o desenvolvimento urbano. Ambas as cidades investiram
vultosas quantias e implementaram projetos urbanísticos de elevada envergadura,
redefinindo centralidades e constituindo verdadeiros marcos na evolução urbana.
Ademais, conseguiram projetar mundialmente a imagem destas cidades,
proporcionando efeitos multiplicadores a curto e médio prazo: grande aumento do
afluxo de turistas, dos investimentos etc.
Há
outras inovações nos J.O. em pauta. Seul e Barcelona promoveram não apenas uma
eficiente política de renovação de sua área central. Suas vilas olímpicas
também constituem uma novidade em termos de geração de novas moradias: trata-se
de uso residencial para classes médias, e não mais destinadas ao uso popular,
marca tradicional das vilas olímpicas até então. Mais uma vez, podemos observar
a incidência de novas forças macro-estruturais, desta vez típicas do período
neoliberal que se instaura sobretudo com a derrocada do bloco soviético em
1990: o declínio das políticas sociais, em favor dos princípios do mercado. A
bela vila Olímpica de Barcelona, muito bem equipada e provida de amenidades
naturais como a posição litorânea, representa esta mudança evidente na política
urbana, de novo crescentemente envolvida com interesses privados. E a cidade
procura afirmar ao mundo sua capacidade empresarial.
No
Rio de Janeiro, em 1996, a candidatura da cidade a sediar os J.O. de 2004 gerou
ampla mobilização popular e inúmeros projetos urbanísticos destinados a
preparar a cidade para este fim. Valeria uma abordagem geográfica mais
aprofundada sobre os diversos projetos, o amplo debate suscitado (não apenas
entre técnicos e políticos), a releitura da cidade e os prováveis impactos da
realização dos Jogos Olímpicos, entre outros aspectos que não cabem nos limites
deste artigo.
Devemos
frisar que, caso a candidatura fosse bem sucedida, provavelmente teríamos hoje
uma outra paisagem urbana. A abandonada Ilha do Fundão, por exemplo, teria
adquirido um aproveitamento intensivo de seus vastos espaços, tornando-se
privilegiada concentração de equipamentos esportivo-recreativos. Vale ressaltar
que tal infra-estrutura estaria ao alcance de segmentos sociais de baixa renda
que habitam o entorno imediato da Ilha. Esta mesma população que consome em
larga escala o "piscinão" da renovada Praia de Ramos, polêmica
iniciativa do governo estadual para atenuar a crônica carência de opções de lazer
para os habitantes da zona norte da cidade11, que não desfrutou
historicamente dos caudalosos investimentos públicos da zona sul, nem apresenta
a morfologia moderna e descompacta da zona oeste, para onde se dirigem
atualmente muitas das iniciativas no setor de lazer, como por exemplo os
parques temáticos.
Por
outro lado, a realização de J.O. no Rio de Janeiro poderia ter acionado a
dinamização da obsoleta zona portuária, que há décadas vem sendo alvo inerte de
debates e projetos de revitalização. A proposta então veiculada destinava a
esta zona a criação de um "novo bairro", a partir do setor de
alojamento para a imprensa internacional. Outros projetos de vulto, como a
despoluição da Baía de Guanabara e da Lagoa Rodrigo de Freitas, foram incluídos.
Entretanto, apesar de suas belezas naturais e do relativo êxito na realização
do evento ECO-92, a candidatura carioca não logrou sucesso. Trata-se de uma
grande cidade com graves problemas sociais e ambientais, típicos do
subdesenvolvimento. Um cenário que, como vimos, historicamente não tem
convencido o Comitê Olímpico Internacional como local adequado à realização de
J.O.. Permanecendo os atuais critérios de seleção das sedes, e a acirrada
competição entre cidades de todo o mundo, dificilmente o Rio de Janeiro terá
sua oportunidade, sobretudo com o agravamento da gestão da segurança pública.
Por
outro lado, a cidade conquistou o direito de sediar um evento olímpico de menor
porte: os Jogos Panamericanos de 2007. O que se nota é que o planejamento
urbano que envolve o evento apresenta princípios bastante distintos daqueles
que nortearam a candidatura supracitada. Desta vez, movida por um urbanismo
mercadófilo, a gestão da cidade se orienta no sentido de atender os diversos
interesses empresariais, concentrando em área nobre (entorno da Barra da
Tijuca) a maior parte dos investimentos: a vila olímpica e a maioria das
instalações esportivas. Em suma, a cidade que emergirá deste evento consolidará
um modelo excludente e segregador. Mas este é o assunto para a investigação que
no momento apenas iniciamos.
Breves considerações finais
Entendemos
que geografia e esportes formam, à primeira vista, um casamento inusitado, mas
com razoáveis perspectivas futuras. Muitas vezes, trata-se apenas de superar um
preconceito para notar que a geografia já produz vias de análise bastante
adequadas ao tratamento do fato esportivo. Milton Santos, por exemplo, ao
tratar das novas condições da "fluidez" (capacidade ampliada de
deslocamento espacial, superando distâncias e "barreiras"), afirma
que estas se baseiam em formas, normas e informações universais (Santos,
1996:219). Os esportes modernos cumprem plenamente estes requisitos, exibindo
equipamentos (formas), regras (normas) e informações universais.
Em
pouco mais de cem anos de história, os J.O. apresentam uma impressionante
evolução. Da idealista iniciativa de Coubertin à paulatina incorporação do
nacionalismo, daí ao contexto vigoroso da Guerra Fria, chegando à grande
mercantilização dos dias atuais, tal evento foi adquirindo cada vez maior
importância. E com ela uma crescente capacidade de intervir no espaço
geográfico, sobejamente nas cidades, onde o impacto olímpico vai muito além do
campo meramente esportivo. Poderíamos mesmo afirmar que trata-se mais de um
tema da geografia urbana (cuja omissão soa imperdoável) do que da nascente
geografia dos esportes. O urbanismo olímpico da atualidade nos remete aos
debates acerca da emergência da cidade-empresa no contexto de afirmação do
neoliberalismo. Em síntese, o fenômeno olímpico e seu impacto nas cidades
refletem em grande medida as principais transformações das macro-estruturas
sociais. Guardando, é claro, todavia suas especifidades (as do lugar em si, e
as do olimpismo).
Notas
1.
Trata-se da tese de doutoramento em Geografia Humana,
defendida na USP (Mascarenhas, 2001a), e outros estudos correlatos.
2.
Quanto ao conceito de "gêneros de vida", cumpre
esclarecer que trata-se de uma importante noção clássica em geografia, que
recobre o conjunto particular de relações que o homem estabelece com o meio em
determinada região. Sobre as paisagens naturais, interessante consultar pelo
menos o caso do golfe, cuja origem escocesa guarda estreita relação com a
paisagem natural da região centro-leste daquele país: topografia suavemente ondulada,
cobertura vegetal de gramíneas de tipo macio, solos bem drenados e concavidades
naturais (ver Bale, 1989:154). Ou ainda a antigüidade da prática de esquiar em
regiões de clima frio acentuado: na Suécia, há vestígios de objetos utilizados
pelo homem para deslizar sobre a neve que datam de aproximadamente 320 anos
antes da era cristã (Sörlin, 1996:147).
3.
Rafting, vôo livre, wakeboarding, mergulho, automobilismo
off-road, alpinismo, mountain bike, é longa e sobretudo indefinida a lista de
modalidades que são socialmente encaradas como esportes radicais, pois trata-se
de terminologia imprecisa e de tema pouco estudado (Mascarenhas, 2001b).
4.
Milton Santos utiliza largamente o conceito de objeto
geográfico como elemento da materialidade historicamente construída ou
apropriada (quando natureza) pelo trabalho humano. De forma que "No
princípio tudo eram coisas, enquanto hoje tudo tende a ser objeto, já que as
próprias coisas, dádivas da natureza, quando utilizadas pelos homens a partir
de um conjunto de intenções sociais, passam, também, a ser objetos"
(Santos, 1996:53).
5.
Um belo exemplo é o estádio Mário Filho, o Maracanã,
inaugurado no Rio de Janeiro em 1950, cuja decisão locacional privilegiou a
acessibilidade (a ferrovia e o corredor viário que a margeia), além de
situar-se, à época, em ponto relativamente equidistante entre as zonas norte e
sul da cidade. O futebol pode, assim, ser visto como atividade que gera pontos
de grande conectividade na malha territorial. No Brasil, um estudo sobre a
difusão do futebol a partir de redes de infra-estrutura do território
encontra-se em Mascarenhas (1998).
6.
No início do século XX, estava bem delineada no Rio de
Janeiro uma segregação residencial que estabelecia toda a zona sul como área
nobre, tornando o majestoso Prado Fluminense, na zona norte da cidade, um
ornamento geograficamente deslocado. E assim se edificou o imponente hipódromo
do Joquey Club na Gávea (inaugurado em 1926), corrigindo uma "distorção
locacional" que a evolução urbana havia imposto ao turfe.
7.
Nos limites deste artigo não trataremos dos jogos de
inverno, evento naturalmente de bem menor porte, mas que também apresenta
formidável expansão e, consequentemente, um crescente poder de reestruturação
territorial.
8.
Em Seul, por exemplo, antes de 1988 o turismo local
correspondia ao afluxo anual de um milhão de visitantes. Desde então, tal
índice foi multiplicado em onze vezes, com a nova imagem da cidade no cenário
mundial.
9.
Segundo Pesavento (1997), tais exposições serviram para
difundir o mito de que a civilização ocidental burguesa era baseada na
fraternidade entre os povos, bem como para alimentar o exibicionismo burguês.
10.
A evolução urbana de Barcelona apresenta como marcos
importantes as duas exposições universais ali realizadas em 1888 e 1929. No Rio
de Janeiro, a exposição de 1922 consolidou a demolição do Morro do Castelo, a
abertura da esplanada dos ministérios, o início dos grandes aterros litorâneos,
afirmando-se como um marco decisivo na evolução urbana carioca.
11.
Do ponto de vista urbanístico, trata-se de uma extensa área
urbana cujo processo de ocupação não predestinou zonas livres ou verdes para o
lazer popular, realizando um preenchimento compacto e contínuo das terras que
outrora abrigaram usos rurais.
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