O SEGREDO DOS PREDESTINADOS
(Publicado no jornal O Povo, CE, em 09/08/1999) 
Autor: Ricardo Kelmer 

Depois de ver o filme Matrix entusiasmadas quatro vezes e ler certas críticas (que o filme não tem história ou que ela é confusa demais, que vale apenas pelos efeitos especiais, que é só uma colagem de citações...) decidi meter o nariz onde não fui chamado. E contar do segredo. 

Matrix é grandioso. Sua história é densa e intrincada, sim, mas pra quem anda familiarizado com certas questões atuais, Matrix é claro. Trata-se de uma ótima história em ritmo de cinemão e expõe uma nova e intrigante fronteira que não mais poderemos evitar: a questão do que é de fato a Realidade. Com o advento da Realidade Virtual, ultrapassamos o ponto de retorno e teremos agora que encarar mais esse desafio sobre as possibilidades da Psique. Matrix é forte e seu conteúdo tão rico que pode-se abordá-lo sob diversos ângulos. Escolhi o ângulo da mitologia. 

Mitos são como esqueletos da Psique, imprescindíveis à sua compreensão. Em Matrix, reedita-se um velho tema que se repete desde nossos mais remotos e peludos antepassados: a jornada do herói. Trata-se de uma metáfora do processo de crescimento psicológico e auto-realização do ser humano. O herói, nos mitos, somos cada um de nós, representados num personagem que geralmente precisa abandonar sua terra (a segurança de velhas certezas) e partir em busca de algo precioso (verdades mais úteis e abrangentes) ou enfrentar inimigos terríveis (encarar os próprios medos e bloqueios). Jornada difícil, e perigosa, que requer coragem, obstinação e honestidade. Mas o herói vence o desafio e retorna à sua terra, levando benfeitorias a seu povo e muitas vezes substituindo um velho rei doente ou injusto (renovação). 

Neo, o herói de Matrix, aventura-se numa realidade que parece sonho, partindo em busca de um mistério que pode enlouquecê-lo e até matá-lo. Ele se recusa a crer que possa ser o Predestinado de que fala a profecia e que mudará o mundo e despertará as pessoas. Essa dúvida faz com que o Oráculo consultado não o esclareça. Oráculos são meros instrumentos de auto-investigação psicológica onde podemos obter respostas sobre nós mesmos através de concentração e meditação. Até que nem tanto esotérico assim. A rigor ninguém precisaria de um oráculo pra saber sobre si. No entanto, o ritmo de vida atual nos afastou de nosso mundo interior e são exatamente o simbolismo e a ritualística dos oráculos que propiciam essa interiorização. Na verdade quem responde à questão lançada somos nós mesmos, ou melhor, uma parte de nós que é mais sábia e que não costumamos escutar no dia-a-dia. Se a resposta é obscura, é porque a pergunta também o foi. A pergunta certa já contém em si a resposta. 

Neo consulta o Oráculo. Mas a idéia de ser o Predestinado o incomoda e ele obtém a resposta que deseja ouvir. Porém, atente: o Oráculo não diz em momento algum que ele não é o Predestinado. Diz apenas que ele não está preparado. Preparado pra entender que de fato é. E quanto a isso, ninguém pode fazer nada, nem oráculos nem deuses nem ninguém. 

AUTOCONSCIENTIZAÇÃO 

A jornada pessoal de auto-realização nos põe em situações onde não confiamos em nosso potencial. Somos capazes de muitas coisas quando temos perfeita consciência de quem somos e do que podemos fazer. Porém chegar a essa autoconscientização é difícil. Conhecer verdadeiramente quem somos é luta armada travada no campos da consciência e do inconsciente, guerra de toda uma vida onde cada auto-revelação representa uma importante batalha vencida. O verdadeiro autoconhecer-se dói pra danar porque implica necessariamente enfrentar o que se teme, tornar-se o que se evita ser, entrar no fogo dos piores medos. A recompensa é o mundo novo que a realização mais íntima nos traz. 

No mundo de Matrix as pessoas estão adormecidas e sem senso crítico. Acreditam no que lhes é dado a crer. Nada muito diferente de nosso mundo atual, onde a massificação das idéias faz as pessoas perderem a noção de si mesmas, onde querem nos convencer que numa sociedade desonesta e violenta temos de ser mais violentos e desonestos que os outros. Difícil fugir desse círculo vicioso. Em Matrix, Neo sofre o diabo pra aprender que tudo que ele precisa é... mudar a visão que tem de si próprio, apenas isso. Não pense que é, saiba que é. A profecia diz que o Predestinado mudará o mundo e salvará a humanidade. Neo não pode acreditar que seja capaz disso tudo. Mas o segredo pra vitória do herói esconde a mais simples e a maior de todas as ironias: pra mudar o mundo, basta mudar a si mesmo. 

Transforme-se e tudo em volta se transformará – eis o segredo! Porque a aparente separação das coisas esconde a unicidade de tudo que existe. Talvez seja impossível dobrar uma colher com o pensamento. Mas se você sabe que a colher e você são a mesma coisa, então basta dobrar a si mesmo. O mito da jornada do herói nos ensina que o destino de cada um de nós é realizar o que verdadeiramente somos mas ainda não aceitamos. A aventura de Neo é a aventura de nós todos em busca de nossa essência mais legítima, aquela que enfim nos libertará. Até alcançá-la, a vida nos provará de muitos modos e teremos de conviver com dolorosas incertezas e auto-enganações. No entanto, indo do micro pro macro, a aventura de Neo é a aventura da humanidade inteira, em busca de sua sobrevivência como espécie. Num tempo de tecnologia idolatrada e valores essenciais esquecidos, corremos o risco de ver nossa própria criação voltar-se contra nós. Ante tal possibilidade, a única saída parece ser, ainda, seguir o que dizia, logo em sua entrada, o Oráculo de Delphos na Grécia Antiga: conhece-te a ti mesmo. A tecnologia não tem sentimento. Nós temos. Uma máquina não é capaz de amar. Nós somos. Essa diferença óbvia pode pesar bastante no roteiro do nosso filme. 

Um certo nazareno revolucionário, dois mil anos atrás, já dizia que somos todos deuses. Pois vou no mesmo caminho: igual a Neo, somos todos heróis. Heróis de nossas próprias vidas. Como Neo, somos predestinados a realizarmos a nós mesmos. Feito um Salvador, cada um de nós tem o poder de mudar o mundo. Mas é preciso antes mudar a forma como entendemos a nós próprios. Eis o segredo que se esconde por trás do filme Matrix e também de toda a vida. O segredo que de tão óbvio não se vê e que aguarda pacientemente por todos os predestinados.