Mais Alguns Poemas

"O dinheiro compra até o amor verdadeiro" - Nelson Rodrigues

Adiamento - Álvaro de Campos

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã... 
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã, 
E assim será possível; mas hoje não... 
Não, hoje nada; hoje não posso. 
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva, 
O sono da minha vida real, intercalado, 
O cansaço antecipado e infinito, 
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico... 
Esta espécie de alma... 
Só depois de amanhã... 
Hoje quero preparar-me, 
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte... 
Ele é que é decisivo. 
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos... 
Amanhã é o dia dos planos. 
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo; 
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã... 
Tenho vontade de chorar, 
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro... 

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo. 
Só depois de amanhã... 
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana. 
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância... 
Depois de amanhã serei outro, 
A minha vida triunfar-se-á, 
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático 
Serão convocadas por um edital... 
Mas por um edital de amanhã... 
Hoje quero dormir, redigirei amanhã... 
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância? 
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã, 
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo... 
Antes, não... 
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. 
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser. 
Só depois de amanhã... 
Tenho sono como o frio de um cão vadio. 
Tenho muito sono. 
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã... 
Sim, talvez só depois de amanhã... 

O porvir... 
Sim, o porvir...

 

Arte de Amar - Manuel Bandeira

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. 
A alma é que estraga o amor. 
Só em Deus ela pode encontrar satisfação. 
Não noutra alma. 
Só em Deus - ou fora do mundo. 
As almas são incomunicáveis. 
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. 
Porque os corpos se entendem, mas as almas não. 


Bilhete - Mário Quintana 

Se tu me amas, ama-me baixinho 
Não o grites de cima dos telhados 
Deixa em paz os passarinos 

Deixa em paz a mim! 
Se me queres, 
enfim, 
tem de ser bem devagarinho, Amada, 
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda... 


Poesia Matemática - Millôr Fernandes

Às folhas tantas 
do livro matemático 
um Quociente apaixonou-se 
um dia 
doidamente 
por uma Incógnita. 
Olhou-a com seu olhar inumerável 
e viu-a do ápice à base 
uma figura ímpar; 
olhos rombóides, boca trapezóide, 
corpo retangular, seios esferóides. 
Fez de sua uma vida 
paralela à dela 
até que se encontraram 
no infinito. 
"Quem és tu?", indagou ele 
em ânsia radical. 
"Sou a soma do quadrado dos catetos. 
Mas pode me chamar de Hipotenusa." 
E de falarem descobriram que eram 
(o que em aritmética corresponde 
a almas irmãs) 
primos entre si. 
E assim se amaram 
ao quadrado da velocidade da luz 
numa sexta potenciação 
traçando 
ao sabor do momento 
e da paixão 
retas, curvas, círculos e linhas sinoidais 
nos jardins da quarta dimensão. 
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidiana 
e os exegetas do Universo Finito. 
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas. 
E enfim resolveram se casar 
constituir um lar, 
mais que um lar, 
um perpendicular. 
Convidaram para padrinhos 
o Poliedro e a Bissetriz. 
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro 
sonhando com uma felicidade 
integral e diferencial. 
E se casaram e tiveram uma secante e três cones 
muito engraçadinhos. 
E foram felizes 
até aquele dia 
em que tudo vira afinal 
monotonia. 
Foi então que surgiu 
O Máximo Divisor Comum 
freqüentador de círculos concêntricos, 
viciosos. 
Ofereceu-lhe, a ela, 
uma grandeza absoluta 
e reduziu-a a um denominador comum. 
Ele, Quociente, percebeu 
que com ela não formava mais um todo, 
uma unidade. 
Era o triângulo, 
tanto chamado amoroso. 
Desse problema ela era uma fração, 
a mais ordinária. 
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade 
e tudo que era espúrio passou a ser 
moralidade 
como aliás em qualquer 
sociedade. 

Versos Íntimos - Augusto dos Anjos

Vês?! Ninguém assistiu ao formidavel 
Enterro de tua última quimera. 
Somente a Ingratidão - esta pantera - 
Foi tua companheira inseparável! 

Acostuma-te à lama que te espera! 
O Homem, que, nesta terra miserável, 
Mora, entre feras, sente inevitável 
Necessidade de também ser fera. 

Toma um fósforo. Acende teu cigarro! 
O beijo, amigo, é a véspera do escarro, 
A mão que afaga é a mesma que apedreja. 

Se a alguém causa inda pena a tua chaga, 
Apedreja essa mão vil que te afaga, 
Escarra nessa boca que te beija 


Mimosa Boca Errante - Carlos Drummond de Andrade

Mimosa boca errante 
à superfície até achar o ponto 
em que te apraz colher o fruto em fogo 
que não será comido mas fruído 
até se lhe esgotar o sumo cálido 
e ele deixar-te, ou o deixares, flácido, 
mas rorejando a baba de delícias 
que fruto e boca se permitem, dádiva. 
Boca mimosa e sábia, 
impaciente de sugar e clausurar 
inteiro, em ti, o talo rígido 
mas varado de gozo ao confinar-se 
no limitado espaço que ofereces 
a seu volume e jato apaixonados, 
como podes tornar-te, assim aberta, 
recurvo céu infindo e sepultura? 
Mimosa boca e santa, 
que devagar vais desfolhando a líquida 
espuma do prazer em rito mudo, 
lenta-lambente-lambilusamente 
ligada à forma ereta qual se fossem 
a boca o próprio fruto, e o fruto a boca, 
já chega, chega, chega de beber-me, 
de matar-me, e, na morte, de viver-me. 
Já sei a eternidade: é puro orgasmo. 

As Sem-Razões do Amor - Carlos Drummond de Andrade

Eu te amo porque te amo, 
Não precisas ser amante, 
e nem sempre sabes sê-lo. 
Eu te amo porque te amo 
Amor é estado de graça 
e com amor não se paga. 
Amor é dado de graça, 
é semeado no vento, 
na cachoeira, no eclipse. 

Amor foge a dicionários 
e a regulamentos vários. 
Eu te amo porque não amo 
bastante ou demais a mim. 
Porque amor não se troca, 
não se conjuga nem se ama. 

Porque amor é amor a nada, 
feliz e forte em si mesmo. 
Amor é primo da morte, 
e da morte vencedor, 
por mais que o matem (e matam) 
a cada instante de amor. 

 

Subversiva - Ferreira Gullar


A poesia
quando chega
não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
de qualquer de seus abismos
desconhece o Estado e a Sociedade Civil
desrespeita o Código de Águas
relincha
como puta
nova
em frente ao Palácio da Alvorada.

E só depois
reconsidera: beija
nos olhos os que ganham mal
embala no colo
os que têm sede de felicidade
e de justiça

E promete incendiar o país.


Teresa - Manuel Bandeira

 

A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

 

A Flor que És - Ricardo Reis

A flor que és, não a que dás, eu quero.
Porque me negas o que te não peço.
Tempo há para negares 
Depois de teres dado. 
Flor, sê-me flor! Se te colher avaro 
A mão da infausta esfinge, tu perene 
Sombra errarás absurda,
Buscando o que não deste.


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