A PUBLICIDADE É UM CADÁVER QUE NOS SORRI

Oliviero Toscani

Tradução Luiz Cavalcanti de M. Guerra

4a edição Ediouro(187 p.)www.ediouro.com.br

 

Sumário

 

1.Aleluia! O Neném faz Xixi Azulzinho!

2.Crime Contra a Inteligência

3.A Rainha da Inglaterra Toda Negra

5.Uma Voltinha no  Mundo dos Preconceitos

6.Eis A Publicidade, Vou ao Banheiro

7.Cruz, Suástica, Coca-Cola

8.Brainstorming,Briefing,Mediaplanning,Bullshiting

9.Contra a Monocultura

10. Modelo Turbo GTI, Quatro Babacas A Menos

 

1.

Aleluia! O Neném faz Xixi Azulzinho!...

2.

Crime Contra a Inteligência

 Quero abrir um processo de Nuremberg da publicidade.Sob que acusações?

 

CRIME DE MALVERSAÇÃO DE SOMAS COLOSSAIS

CRIME DE INUTILIDADE SOCIAL

CRIME DE MENTIRA

CRIME CONTRA A INTELIGÊNCIA

CRIME DE PERSUASÃO OCULTA

CRIME DE ADORAÇÃO ÀS BOBAGENS

CRIME DE EXCLUSÃO E DE RACISMO

CRIME CONTRA A PAZ CIVIL

CRIME CONTRA A LINGUAGEM

CRIME CONTRA A CRIATIVIDADE

CRIME DE PILHAGEM

 

CRIME DE MALVERSAÇÃO DE SOMAS COLOSSAIS. De acordo com a AACC[1] a publicidade representa para as empresas européias um  orçamento de 330 bilhões por ano, 406,7 bilhões nos estados Unidos, 172 bilhões no Japão, cifras de 1992 em plena crise.

Armada desse colossal financiamento, a publicidade cobre cada esquina de rua, praças históricas, os jardins públicos, os pontos de ônibus, o metrô, os aeroportos, as estações de trem, os jornais, os cafés, as farmácias, as tabacarias, os isqueiros, os cartões magnéticos e de telefone. Interrompe filmes na televisão, invade o rádio, as revistas, as praias, os esportes, as roupas, acha-se impressa arte nas solas dos nossos sapatos, ocupa todo o nosso universo, todo o planeta! É impossível esboçar um passo, ligar um rádio, abrir uma correspondência, ler o jornal sem dar de cara com a amiga publicidade. Ela está por toda a parte. É o irmãozinho, sempre sorridente.

 

Apavorante que todo esse imenso espaço de expressão e de afixação de cartazes, o maior museu vivo da história moderna, esses milhares de quilômetros quadrados de cartazes mostrados no mundo inteiro, esses painéis gigantes, esses slogans pintados, essas centenas de milhares de páginas de jornal impressas, esses milhões de horas de televisão, mensagens radiofônicas, fiquem reservados a esse paradisíaco mundo de imagens imbecil, irreal e mentiroso. Uma comunicação sem qualquer utilidade social, uma exaltação grotesca de um modo de vida yuppie, agradável e bem-humorado . A Renault, a Ford, a Fiat, a Honda, fazem as suas propagandas de automóveis deslizando ao sol poente.Quem financia estas campanhas, somos nós os consumidores, o investimento de publicidade fica embutido no preço da mercadoria. A publicidade é o primeiro imposto direto.

 

CRIME DE INUTILIDADE SOCIAL. Por que as grandes empresas de automóveis nunca lançaram verdadeiras campanhas de conscientização contra a embriaguez ao volante, excesso de velocidade?Por que a publicidade, a “comunicação”dessas empresas, não aborda nunca os grandes problemas sociais acarretados pela invasão do automóvel?

A Fiat italiana, por exemplo, despende centenas de milhões de dólares em publicidade através do mundo. E em nossos dias a reputação da Fiat continua sendo deplorável. Imaginem se a Fiat resolvesse lançar-se a uma comunicação mais social, por exemplo com os toxicômanos e as suas famílias, a fim de sensibilizara opinião para o financiamento dos programas de metadona, criaria uma dinâmica sem precedentes. Hoje todos os automóveis se parecem. Como mostrar a diferença entre eles senão pelo engajamento, uma visão do mundo, tomadas de posição, criatividade?

“Durante a agonia, a venda continua”, declarava uma vítima da Aids na legenda da foto  que julgava com isso ter encontrado uma maneira de protestar contra os meus anúncios que evocavam o drama da Aids. Ora, eu mesmo estou de acordo com a idéia terrível deste slogan.Durante a agonia dos acidentados nasa estradas, a venda deve continuar.Durante a agonia dos que sofrem de câncer, a propaganda tabagista deve continuar. Durante a agonia de milhões de alcoólatras americanos e europeus, a  publicidade nos excita com belas garotas abraçando garrafas.

Os publicitários não cumprem a sua função: comunicar. Carecem de ousadia e de senso moral. Não refletem sobre o papel social, publico e educativo da empresa que lhe confia o orçamento. Preferem despender milhares de dólares para galopar atrás de um Citroen  . Não querem pensar nem informar o público, com medo de perder os anunciantes. A responsabilidade deles é imensa.

 

 

 

CRIME DE MENTIRA. A publicidade não vende produtos nem idéias, mas um modelo falsificado e hipnótico da felicidade, seduzir um grande publico com um modelo de existência cujo padrão exige uma renovação constante de todos os objetos do dia-a-dia.A publicidade oferece aos nossos desejos um universo subliminar que insinua que a juventude, a saúde, a virilidade, a feminilidade dependem daquilo que compramos.

 

CRIME CONTRA A INTELIGÊNCIA. A publicidade nos propõe um mundo de ninharias entusiastas cada vez mais batidas nestes tempos de crise econômica e espiritual. De tanto ver esse mundo, o publico já se sente cansado, de tanto ouvir as eternas musiquinhas, o consumidor já está ficando com raiva dos anúncios, foge dos comerciais, não memoriza mais, a publicidade torna-se transparente. “A publicidade vende felicidade, repetem todos os grandes pensadores da comunicação, e os slogans refletem isso.

 

CRIME DE PERSUASÃO OCULTA. A publicidade é uma arapuca, ela acabava nos tornando anoréxicos. O público, que dá um duro danado para fechar bem o mês, aterrorizado pelas dispensas, o desemprego, a Aids, as drogas, vai se persuadindo um pouco mais a cada dia que ele nunca chegará a viver do modo apregoado pelas propagandas.

O capitalismo tem que se adaptar  à nova situação: a sociedade de consumo não consome mais. Se o consumo se acha à deriva, é porque a publicidade mistifica o público. Ela o engana sobre a mercadoria. Ela o excita para que acabe pagando o maior preço. Ela mente para ele.

 

CRIME DE ADORAÇÃO ÀS BOBAGENS. Durante a década de 1980, década do culto ao sucesso pessoal a qualquer preço, da grana e da “aparência”, década dos “vitoriosos  “ apresentados em quadros inteiros na televisão, a publicidade enchia os jornais com clipes de cenas e slogans “vencedores”.

 

CRIME DE EXCLUSÃO E DE RACISMO. Nas campanhas da propaganda nazista, coortes de belas e belos adolescentes de cabelos louros corriam também pelos campos verdejantes e pelas cidades assépticas. A década de 1930 foi a década do futurismo, da moda, da ginástica, dos estádios, dos jogos olímpicos presididos por Hitler. Um logotipo gráfico simbolizava todo esse universo fascista – a Suástica, um símbolo gráfico. O mesmo mundo de símbolos na União Soviética, na década de 1930, proletários e técnicos sorridentes e vigorosos posavam em enormes fábricas e abraçavam-se para melhor construírem o futuro radiante. Na China comunista, meninas de dentes branquíssimos, gordinhas bochechas de porcelana, viviam à volta do presidente Mao em todos os momentos.

Esse mundo utópico inquietante, seletivo e racista perpetua-se com a publicidade. Procure encontrar numa propaganda de nossos dias, pobres, imigrantes, acidentados, revoltados, ladrões de apartamentos, baixos, inquietos, gordos, barrigudos, entediados, céticos, desempregados, espinhentos, drogados, vítimas de engarrafamento, doentes, países do quarto mundo, loucos artistas obcecados, excessivos, estridentes, pessoas que sofrem de herpes, provocadores, grandes problemas sociais, uma crise, desastres ecológicos, explosões da juventude e o pânico dos idosos. Foi tudo substituído por Claudia Schiffer, grande loura assexuada, excitante como uma máquina de lavar, com aquele sorriso sem graça? A perfeição da beleza ariana, um sonho da juventude hitlerista.

 

CRIME CONTRA A PAZ CIVIL.De tanto querer nos vender a felicidade, a publicidade acaba fabricando legiões de frustrados dá origem a deprimidos e delinqüentes, que acabam por se sentir alijados da sociedade. Fracassados, os filhos ficam pressionando para que eles lhes comprem aquele videogame radical, suas mulheres choram por não possuírem aquele creme de polpa de seda à base de fruta ou aquele eterno diamante.

A publicidade não vende felicidade, ela gera depressão e angústia. Cólera e frustração.

 

CRIME CONTRA A LINGUAGEM. Os truques grosseiros da publicidade saltam à vista desde que se preste atenção nos seus slogans. Bobos. Repetitivos. Pobres. Imbecilizantes. São sempre as mesmas receitas para os mesmos pratos. Assim, uma propaganda precisa elogiar a qualidade do o produto que ela promove. Os slogans das agencias descarregam as palavras “experiência”  e “qualidade”nos comerciais.

 

CRIME CONTRA A CRIATIVIDADE. Um dos mais velhos ganchos da publicidade  no qual ela insiste ,e que todo o esforço de produção de bens de consumo adapta-se às suas necessidades, dirige-se as pessoas e não as massas. O dinheiro gasto torna-se uma mera formalidade, porque de qualquer maneira “você “ vinha sonhando com isso.

Se nos contentássemos apenas com estas três formidáveis palavras, fulgurantes de invenção, “qualidade”,” experiência” e “você”, conseguiríamos um bom bocado de slogans publicitários. Combinando-os de maneira aleatória, pode-se com certeza anunciar um caminhão inteiro dos novos slogans, se é que já não existem: o sabor da qualidade; A qualidade da experiência; a experiência para você; etc.

Acrescentem a essas poucas palavras-chave as três receitas mais do que batidas dessa grande ciência publicitária. Existe o golpe de colocar em tudo “mais’, bem mais, “melhor” ”verdadeiro”: quando somos bem mais, somos melhores . A astúcia da palavra engraçada inventada a partir do produto: vencer é esportemidável(Loto sportif), etc. Há também o truque da oposição dos termos:o menor dos grandes prazeres, etc.

 

CRIME DE PILHAGEM. Logo que um grande filme chega às telas, uma corrente de idéias se impõe. Eles copiam tudo, adaptam tudo, recuperam tudo. Spielberg dirigiu Os caçadores da arca perdida, . Os clipes fizeram disso  paródias que não acabam mais, com aventureiros de todo tipo e idade. Nove semanas e meia de amor foi copiado para vender roupas de cama. A maioria das cenas famosas dos filmes alimentam inumeráveis clipes e fotos publicitárias. Os diretores publicitários, pagos a peso de ouro enquanto o cinema está ,morrendo, servem-se sem pudor. Pois a publicidade é uma máfia. Quanto ao paraíso, pode ser encontrado debaixo do chuveiro, numa viagem de avião ou numa padaria. Exemplo: um gosto de paraíso(Bounty).

Hoje os produtos se parecem cada vez mais. Entramos na era do “me too product”.

A publicidade é um cadáver perfumado. Sempre se diz a respeito dos defuntos: “ele está bem-conservado, parece até que sorri”.O mesmo vale para  a publicidade. Acha-se morta, mas continua sorrindo  .

 

 



[1] Associação das agências de consultoria em comunicação. Sindicato profissional francês

 

3.

A Rainha da Inglaterra Toda Negra

Agora quero mostrar os rosto daqueles cuja existência o mundo inteiro dissimula. Hoje, os palestinos, amanhã, os coreanos do norte, os indianos, os iemenitas ou os ciganos. Todos os povos esquecidos.Há bem uns dez anos as campanhas da  Benetton misturam os gêneros – anti-racismo, fotos de atualidades, redirecionamento de lugares-comuns etc - , transtornam o espaço publicitário  com imagens nunca utilizadas nessa área, interpelam as reações políticas e morais do público.

 

Relação das propagandas de Toscani para a Benetton:

§         O primeiro cartaz que despertou uma polêmica mundial foi o de um bebê branco nos braços de uma mulher negra;

§         Dois bebês nus, negro e branco, sentados em seus penicos, brincavam juntos;

§         Uma minúscula mão de uma criança negra espalmada contra a grande mão de um adulto branco;

§         Uma série de bonecos Pinóquio de todas as cores;

§         Um casal de mineiros cobertos de pó negro(o trabalho vence a cor da pele);

§         Uma mulher loura e uma mulher negra;

§         Uma criança asiática;

§         Um par de algemas ligando um adulto branco e um negro;

§         Uma criança que acabava de nascer , nua, coberta de placenta, ainda ligada à mãe pelo; cordão umbilical;

§         Um carro esporte todo amassado;

§         Um cemitério;

§         Um  soldado negro com um osso humano na mão;

§         Vários órgãos genitais, dos dois sexos, de todas as idades e cores;

§         Um doente de Aids morrendo no hospital ao lado dos pais;

§         Um pássaro sujo de óleo;

§         Um corpo tatuado escrito HIV positivo;

§         A bandeira americana;

§         Camisinhas de todas as cores.

 

Spike Lee, que dirigiu o filme Malcolm X, escreveu um artigo para a revista Rolling Stone, onde se podia ler:

“O emprego, a droga, o crime, a Aids, a guerra, o racismo, a educação, os sem-teto, o meio ambiente, são esses realmente os grandes problemas da atualidade, a cujo respeito teremos de tomar iniciativas. (...)

A “United Colors “desafiou o apartheid quando a agente de África do Sul protestou junto a Luciano Benetton, reclamando  novos cartazes, Luciano respondeu-lhe”Sinto muito, mas não mudamos as fotos; esse é um problema seu, não nosso. O apartheid vai acabar desaparecendo um dia!”.

A prefeitura socialista   de Milão proibiu o cartaz dos bebês nus . O cartaz dos mineiros e Pinóquios foi apreendido por Margaret Thatcher. No dia da guerra do golfo, publicamos grandes fotos de cemitérios. Todas as guerras terminam em cemitérios.

Dois bebes nus, negro e branco, sentados em penicos brincavam juntos. Naquele mesmo ano de 1980 realizei uma campanha com a foto da criança negra espalmada contra a grande mão de um adulto branco . Lançamos este cartaz em painéis em 110 países durante a batalha do referendo que ia pôr fim ao apartheid . Por que a publicidade, como a arte, como qualquer meio de comunicação, não poderia ser um jogo filosófico, um catalisador de emoções, um espaço polêmico?

Continuei realizando uma série de fotos que embaralhavam todas as idéias consagradas sobre a cor da pele: uma mulher loura e uma mulher negra, uma criança sa asiática, um par de algemas ligando um adulto branco e um negro, uma série de bonecos Pinóquio de todas as cores, um casal de mineiros cobertos de pó negro - o trabalho vence a cor da pele, etc.

No dia da guerra do Golfo, publicamos fotos de cemitérios. Todas as guerras terminam em cemitérios.

Em 1985 uma bandeira americana aparecia nas minhas fotos. Qualquer utilização não-oficial da bandeira americana era proibida nos Estados Unidos: eu ignorava isso.No final, o regulamento foi suprimido. Eu tinha mandado a lei pelos ares.As sociedades conservam os clichês que merecem.

             Quando o mundo tem medo de uma criança que acaba de nascer: concebi a foto de uma criança que acabava de nascer , nua, coberta de placenta, ainda ligada à mãe pelo cordão umbilical. Em plena guerra do Golfo a vida continuava. Fui atacado por quase toda a imprensa européia.Foi a partir daquele bebê novinho que comecei a utilizar fotos de reportagem das agências Magnum, Sygma e outras.

Como o militar negro, a mulher que chorava a perda do filho , o pássaro sujo de óleo, o navio de refugiados e o doente de Aids. Me trataram como um provocador cínico, e até de safado. Eu agora estava brincando, diziam eles, com a doença, o sofrimento, com o mal absoluto para vender pulôveres. Uma brincadeira? Não, um combate.

 

4.

Uma Voltinha no Mundo dos Preconceitos

 

A primeira entrevista coletiva ocorreu em Nova York, no dia 13 de fevereiro de 1992, então Milão,Paris, Londres,Amsterdã, Frankfurt, Zurique, Madri, Nápoles,Budapeste, Praga, Varsóvia, Tóquio. Resultado: em Paris tacharam-nos de "anarquistas de direita", e os ingleses gostam mais de cães do que de bebês,em Madri, um piquete de greve bloqueou a entrada ao salão da entrevista coletiva. Foi no leste europeu que encontrei as melhores reações, em  Budapeste, Praga, Varsóvia.Quanto arejamento de espírito!

Umberto Eco, que também é um especialista dos signos da nossa sociedade, já refletiu sobre este curioso ciúme da imprensa em relação a nós, escreveu na revista italiana Europeo:"A imprensa escrita é a única responsável por ter incensado sua imagem provocante, dando-lhe uma dimensão psicanalítica ou social, que garantia sua assimilação na opinião pública.(...)

 

 

5.

HIV Publicidade

 

 Dize-me o que te incomoda que eu te direi quem és. Fim de 1993. A guerra se alastrava por toa a ex-Iugoslávia nessa época toda a imprensa européia não falava senão das discórdias conjugais do príncipe Charles e de Diana! Toda a atualidade parecia resumir-se nesse folhetim melodramático, enquanto a guerra na ex-Iugoslávia era jogada para as páginas internas, reduzida à pequenos artigos sem força, enquanto os sérvios massacravam, violavam, enquanto se descobria a atroz "depuração étnica". Fizemos um cartaz e uma página dupla de jornal com o uniforme manchado de jovem soldado e o lançamos em 110 países: sobre uma página dupla com um fundo branco, a blusa de meia rosa suja de sangue à direita, o zuarte à esquerda, mas de maneira que estas duas peças desenhassem o corpo do homem que a tinha usado. O buraco causado pelo impacto da bala era visível, toda a sua vida tinha se escoado por ali.

            Com a campanha sobre os órgãos sexuais de todas as idades e de todas as cores, com esta foto me pergunto se podemos ser reconhecidos à simples vista de nossos sexos, como no caso do rosto.A Bienal de Veneza então me convidou para expor fotos de sexo.

 

6.

Eis a Publicidade, Vou ao Banheiro

 

Meu pai era fotógrafo. Cobriu a guerra civil espanhola, a revolta de Budapeste, o reinado de Mussolini, o Duce, mesmo quando ele se encontrava com Hitler. Meu pai tirou uma foto de Mussolini mijando na água em Riccione.

Publiquei a minha foto aos 14 anos: a mulher de Mussolini.Eu estava vivendo a fábula da cigarra e da formiga ao contrário, assim passei a minha juventude de fotógrafo.

 

7.

Cruz, Suástica, Coca-Cola

 

A maior campanha publicitária da história da humanidade foi a de Jesus Cristo.Ela lançou um slogan universal:"Amai-vos uns aos outros"  . E um admirável logotipo: a cruz.

No Renascimento, os grandes produtores e os mecenas da Igreja, a agência vaticano, não hesitavam em contratar os maiores criadores de sua época: Miguelangelo, Leonardo da Vinci , Rafael, Lê Benin e tantos outros. As igrejas foram durante séculos consideráveis centros culturais, com escolas, concertos, grandes músicos, bibliotecas, afrescos, esculturas, artistas e mestres.

A publicidade sempre viveu da contribuição fundamental da agência. Os Apóstolos da comunicação. Ela procura sem esmorecer logotipos e símbolos universais. Quebra a cabeça para bolar slogans que se tornem divisas tão simples e fortes como o “Amai-vos uns aos outros”. Enche as revistas de mulheres belíssimas,intocáveis, virgens sobre o papel glacê. Mas esquece tudo o mais, toda a imagística piedosa do caminho da cruz, a violência dos soldados, os corpos feridos, a dor aceita como redenção.

“Nunca falar de modo negativo, evitar os textos profundos, e o sentido, principalmente não confrontar o público com o real, mostrar-se simplório, pensar sempre que você está se dirigindo a subdotados”, eis o que não cessam de repetir nos seminários de formação de publicitários. Quanta asneira!

Eu acreditava que os Beatles tinham dito a verdade quando afirmaram ser tão famosos quanto Jesus Cristo.

A publicidade é o contrário do amor. Promete tudo e não dá nada. É o catecismo da religião do consumo.

A publicidade é um livro de missa sem imaginação, sem nenhum senso do drama nem do mistério humano. É uma religião materialista, uma monstruosidade. Para os cristãos, o paraíso não é deste mundo, o reino anunciado constrói-se depois de séculos e séculos de reflexão e de provas. A publicidade confunde milagre e carteira de dinheiro, os afrescos da Capela Sistina e catálogo pornográfico, música sagrada e música internacional, o sonho de uma outra vida e o paraíso imbecil do frescor de vida, a pietà  e  a garota. 

 

8.

Brainstorming,briefing,mediaplanning,bullshiting

Depois que Baudelaire, com a sua obra Flores do mal, cantou a feiúra fascinante das cidades e inaugurou a literatura moderna, entre os maiores escritores do século, nos livros de Henry Miller, de Céline, de Genet, em Moravia, Malraux, Cioran, Beckett, germinou a mesma mentalidade. A literatura moderna não dá a mínima para as narrativas felizes. No que, aliás, ao fim deste século atroz, ela se mostra bastante lúcida. E a publicidade? Está com um século de atraso.

A agência é o reino da assepsia e da mediocridade. Sempre se encontra um chefe medroso, que fala de direito divino – o ponto de vista do cliente -, capaz de cortar o pescoço diante de qualquer ousadia. Vêm em seguida o diretor de arte e o diretor de criação . Estes dois pretendem ter o grande saber da arte. Têm plena confiança em sua intervenção. Assim que intervêm diante e um verdadeiro artista – este, que tateia e avança passo a passo -, tratam-no com grosseria, aterrorizam-no e acabam por lhe cortar as asas. Esta tragédia se repete a cada dia, em todas as agências do mundo inteiro.

Quando Gustave Eiffel propôs a construção de uma torre de metal de trezentos metros de altura à margem do Sena, riram na cara dele, os grandes espíritos começaram a dizer que ia desfigurar a capital da França . Somente os artistas, os precursores o saudaram. Hoje a Torre Eiffel é o símbolo de Paris.

Durante um jantar em Milão com gente de publicidade, a conversa recaiu sobre a publicidade, e esse senhor dirigiu-se a Luciano: “Não compreendo! Nossa agencia me fez gastar uma fortuna para comprar grandes desportistas como Baggio, Boris Becker, Steffi Graf, e ninguém fala da nossa comunicação, nenhum jornal, ninguém! Já o seu fotografo comprou algumas camisinhas de todas as cores num supermercado, fez uma única foto, e fala-se na Benetton no mundo inteiro”.

Luciano Benetton financia hoje uma escola de comunicação para criticar a comunicação, a Fabrica. Oferecemos a direção da escola da Benetton a Fidel Castro.

 

9.

Contra a monocultura

            Um belo exemplo do colonialismo cultural das marcas. Ela dá o testemunho do desenvolvimento irresistível de uma monocultura mundial, nivelada pela publicidade. A publicidade não vende produtos, mas um modelo de vida uniforme. O público mal percebe  a que ponto o que ele consome muda a face do mundo.

            O gado para hambúrguer ocupa hoje 24% das terras cultivadas do planeta. Um quarto das terras cultivadas no Brasil serve à alimentação do boi exportado. Com suas dejeções gigantescas, dezenas de milhões de toneladas de bosta que poluem a água e a atmosfera.

            Aquilo que consumismo no ocidente muda a face do planeta, porque nossos produtos, nosso modo de vida, nossos hábitos alimentares colonizam o mundo inteiro. Seja. É lei do capitalismo. Logo a Ásia vai ter a sua revanche.

            Quando Cristóvão Colombo - de onde deriva a palavra “colonialismo”- e os conquistadores desembarcaram no Novo Mundo, eles tinham vindo praticar a pilhagem, mas também vender os seus produtos.

            A publicidade é a última ideologia conquistadora. A Coca- Cola tornou-se símbolo do capitalismo americano. Assim que o primeiro outdoor da Coca-Cola foi erguido nas ruas de Pequim, a imagem deu a volta ao mundo. A inauguração do primeiro Mac Donald em Moscou teve a mesma significação de mudança.

            Hoje em dia, o público acredita no que ele vê na televisão, nos telejornais, nos programas, nos anúncios. A realidade é a imagem da televisão. Uma tela .Eles controlam a imagem, portanto, a realidade.

            Cada foto possui uma força intrínseca. Achava-me num estúdio , ocupado em fotografar Kirsti, a mulher com quem viria a me casar mais tarde. Ela estava usando um vestido de noiva Dior. Já vivíamos juntos. Por brincadeira, peguei uma camisa e uma gravata iconoclasta com a costureira e pedi ao meu assistente que tirasse uma foto nossa. Mandamos cópias aos parentes e aos familiares. Eles acreditaram que estivéssemos realmente casados. Isso vale também paras os negócios. O espírito publicitário invade tudo, telenovelas, jornais, revistas, telecompras. Entramos na era do pós-humano.Vivemos numa tecnosfera onde os corpos tornados inúteis serão combinados a televisões gigantes e computadores equipados com “luvas táteis”. Joguei a minha televisão no lixo

10.

Modelo Turbo GTI, Quatro Babacas a Menos

            Escolhi a foto de um carrão todo arrebentado. Colei a imagem no meio de um cartaz branco. Acima do veículo estraçalhado, escrevi o número de pistões e válvulas, a aceleração de 0 a 100Km/h em seis segundos, 120 cavalos-motor, GTI...embaixo, coloquei: Modelo Quatro Babacas a Menos. O tabaco é igual à maconha: é preciso informar sobre sos perigos do prazer. Por que nunca se vê um pênis ereto nas campanhas anti-Aids? Logo o público pedirá contas às empresas: “Vocês estão poluindo? E suas leis sociais? “

            Toda a publicidade precisa ser reinventada.