1.
A Europa antes da guerra
No final do século XIX aumentam os contrastes sociais, o mal-estar dos
operários, dos intelectuais, das mulheres marginalizadas. Vivem-se
grandes momentos de ansiedade e de desilusão. O Grito de Edvard Munch é
a imagem do homem europeu que se move numa paisagem fugidia com as suas
cores sombrias e repleta de sons sinistros, de medos pavorosos.
Edvard
Munch.
O Grito
. 1893
A guerra é esperada. São colossais os investimentos em material bélico.
Os conflitos sucedem-se uns atrás dos outros: a França e a Alemanha
disputam Marrocos. A Áustria anexa a Bósnia. Os nacionalistas erguem as
suas bandeiras com o grito de "independência ou morte!" A
"Europa inteira, cheia de incerteza e perturbação, caminha para uma
guerra inevitável cuja causa imediata permanece ainda ignorada, mas que
se aproxima com a certeza implacável do destino." (1) As rivalidades
comerciais entre as grandes potências continuavam a abrir mais feridas,
atravessavam fronteiras longínquas e atroavam no telégrafo, na imprensa,
nos documentários cinematográficos, nos aplausos ou nas pateadas do público,
nos comícios e nos discursos de quase todos os estadistas. Afonso Costa,
o primeiro-ministro português, muito antes do verão de 1914,discursava
neste tom: "...vai talvez dar-se uma conflagração europeia, estalar
a guerra mais aniquiladora que se tem dado no mundo, nós não sabemos
ainda qual terá que ser o nosso papel, porque não está definida
verdadeiramente a natureza, a extensão, os efeitos, da nossa aliança com
a Inglaterra. As grandes potências preparam-se para a luta e, seja qual
for o fim dessa guerra monstruosa, que parece iminente, não podemos nem
devemos simplesmente pensar no que poderá suceder-nos quando se tratar da
paz final...qualquer que seja a atitude do nosso país, urge defini-la sem
demoras, para que não tenhamos dolorosas, horríveis surpresas." (2)
As suas preocupações, na conjuntura da época, eram legítimas: as colónias
africanas estavam a ser cobiçadas e corriam sérios riscos.
(1) A. de Mun, Echo de Paris, 12/02/1913
(2) Afonso Costa, Santarém, 10 de Novembro de 1912
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2.
O início da guerra
O facto
mais próximo relacionado com a eclosão da guerra está aí, dia 28 de
Junho de 1914: o arquiduque herdeiro da Áustria-Hungria visita a Bósnia
e é assassinado. O plano foi concebido na Sérvia e executado por dois
jovens, membros da Mão Preta (3): Gabrinovic e Gavrilo Príncip. Foi por
isso que o Chanceler do velho Império, com o apoio da Alemanha, declarou
guerra à Sérvia. O seu ultimato, em 23 de Julho, não serviu para nada.
Já se sabia que as exigências austríacas só podiam cair em saco roto.
Sem tempo para acordos diplomáticos, as declarações de guerra não
cessaram entre Julho e Agosto.
Max
Bekmann,
Declaração de Guerra
, 1914
Mobilizam-se as tropas no meio de um grande furor e na manhã de 4 de
Agosto, 1914, a cavalaria alemã aligeira a sua marcha para pôr em prática
parte de um plano elaborado em 1900 pelo chefe do estado maior, Alfred von
Schlieffen: invadir a Bélgica para chegar a França. Helmut von Moltke
(4) comanda as tropas. Mais atrás escutava-se o rumor de uma marcha de
seiscentos mil homens. Vinham ainda a cantar com a esperança de uma
guerra curta a brilhar na ponta das baionetas. As aldeias transfronteiriças
belgas foram caindo uma a uma no primeiro dia da ofensiva. No dia seguinte
dezenas de divisões estão às portas de Liège. A resistência que vem
dos fortes surpreende a infantaria alemã. Muitos soldados ficam no
caminho. Mas o avanço para França continua apesar de outros percalços
criados por atiradores furtivos. As motivações dos soldados alemães são
intensas e deixam rastos de crueldade. Vingam-se no povo. "A nossa
progressão na Bélgica é inegavelmente brutal", confirma o general,
"mas batemo-nos pela nossa sobrevivência, e todos os que se colocam
transversalmente no nosso caminho devem suportar as consequências."
No início de Agosto os alemães estavam a três léguas de Paris. Depois
da batalha do Yser (Outubro, Novembro) a ideia de uma guerra rápida tinha
caído redondamente e assiste-se a uma guerra de posições: os exércitos
vão ficando estancados ao longo de uma linha de oitocentos quilómetros.
Cavam-se "buracos, a que se chamam trincheiras, de passagens
estreitas" (5) e erguem-se barreiras de arame farpado.
Félix
Vallotton,
O arame farpado
, 1916
3) Mão Preta: braço armado de uma organização nacionalista denominada
"União ou Morte".
(4) Helmut von Moltke.General. Nasceu a 23 de Maio de 1848 em Gersdorf (Mecklenburs)
e morreu a 18 de Junho de 1916 em Berlim.
(5) Florent Fels, in Voilà
3.
A guerra das trincheiras
A
vida quotidiana nas trincheiras foi dramática. Um vazio enorme. As
saudades da casa, dos pais, das mulheres, dos filhos, das namoradas,
das fontes, dos pássaros, do aroma das flores, da comida, das
festas, do tempo vivido em paz. Foram estes os quadros lentos,
suaves e repetidos que se iluminaram nas sombras, nos momentos de
pausa ou de conversa. E também os do vocabulário jocoso, das
expressões de calão, das palmadas nas costas, da partilha de
alimentos, água, cachaça e cigarros. Os outros mostram a vida às
avessas, o sofrimento, a amargura, o queixume dos magalas:
"falta-nos praticamente tudo. Aprendi cedo a dependurar o pão
num arame para o pôr fora do alcance dos ratos, a dormir com os
sapatos apertados, porque tentar calçá-los depois de os tirar era
uma ilusão, a dormir enrolado num capote molhado, dormir 4 horas no
meio de algazarra, de gritos humanos, de cheiros pestilentos, mas a
dormir." (6) E a cada hora que passa tudo se torna mais turvo:
os dias de combate, o fogo de artilharia, a morte. "A alguns
passos de nós, no fundo da trincheira, jaz um corpo. É de um
oficial subalterno; está semi-enterrado; só se vê a cabeça, um
ombro e um braço com a mão em gancho. Está ali desde a véspera,
o braço retesou e ergueu-se, e naquela mão, naquele braço, se
engancham e tropeçam todos os que vão e vêm por aquela passagem
estreita. Era preciso cortar aquele braço ou afastar o corpo. Ninguém
teve coragem para tal" (7) Mais além, noutro lugar, "o
bombardeamento com gases tornou-se mais intenso. (...) Daí a pouco
não se via senão gente sufocando, tossindo, com o nariz e as
goelas queimadas e os olhos irritados lacrimejando.
- Ponham as máscaras – gritava-se." (8)
Não era possível aguentar. Vieram os motins. As deserções. As
canções proibidas, como essa enigmática "canção de Craonne",
que tem a música da noite, do silêncio e da chuva para dar o
timbre às emoções de soldados exaustos, sem réstia de esperança
no fim de uma guerra infame, numa dolorosa despedida à vida, ao
amor e às mulheres.
Ao longo da guerra, caíram em combate dez milhões de homens.
Muitos ficaram mutilados e doentes. Outros desapareceram no meio de
lamaçais. "Era terrivelmente óbvio que dezenas de homens com
ferimentos sérios se tinham arrastado até outros buracos
provocados por granadas, para conseguirem alguma segurança, e agora
a água que caía em volta deles, imóveis,
estava a afogá-los lentamente. Não podíamos fazer nada para os
ajudar». (9) Os seus corpos ficaram enterrados nesses campos
calcinados, como o da Flandres. Mas ainda hoje, não sei bem porquê,
florescem lá as papoilas...
Soldados
portugueses nas trincheiras
(6) Florent Fels, in Voilà
(7) R.Cazals, Cl Marquié, R. Piniès, Années cruelles
1914-1918, in História da vida privada, direcção de
Philippe Ariès e Georges Duby, vol.5,
(8) Jaime Cortesão, Memórias da Grande Guerra
(9) E.C. Vaughan, Regimento Real de Warwickshire, Agosto de
1917
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