A "vida
abundante" que Jesus ofereceu aos seus seguidores tem sido o objetivo dos mais
dedicados cristãos em todas as épocas. Esta prometida abundância tem sido usualmente
entendida como harmonia interna e liberdade espiritual, mais do que abundância material -
por razões óbvias. A busca por tal liberdade interior tem aparecido sob os mais diversos
nomes.
2. O QUE É CURA INTERIOR?
O fenômeno conhecido como cura interior tem dois objetivos. O seu objetivo primário e
espiritual é estender o senhorio e poder de cura de Cristo ao nosso passado, afetando
mesmo a nossa experiência antes da conversão. O objetivo secundário e psicológico é
portanto nos libertar de qualquer cativeiro emocional e psicológico que a nossa
experiência passada possa ter produzido. Os teóricos da cura interior defendem que os
bloqueios emocionais e os padrões habituais de comportamento (com os seus frutos
negativos de frustração, derrota e fraca auto-imagem) nos impedem de atingir a vida
abundante que Jesus prometeu. Portanto, eles concluem que, um esforço especial deve ser
feito para curar estas feridas interiores, de forma que possamos ser libertos das diversas
coisas que podem constringir e empobrecer as nossas vidas. Em resumo, o objetivo geral da
cura interior pode ser descrito como uma espécie de "santificação
retroativa".
O propósito geral do movimento de cura interior é claramente de natureza pastoral. Desta
forma, ele defende que a "cura das memórias" normalmente ocorra num
aconselhamento de base individual, ou em pequenos grupos. Considera-se essencial que os
dons do Espírito Santo estejam em operação, particularmente os dons de discernimento e
cura. Ao indivíduo que está buscando sua cura será pedido que reviva seu passado
através da imaginação. Isto geralmente envolve um "retorno" ao ponto-problema
- um encontro traumático ou assustador que moldou a auto-imagem e o comportamento da
pessoa e também porque este ponto se alojou em camadas profundas de sua psique. À medida
em que o "paciente" imaginativamente recria o ponto-problema, com toda sua
intensidade emocional, eles dizem ao paciente para imaginar que Jesus está lá (naquela
situação). Presume-se que a presença imaginativa de Jesus traga Seu amor e poder de
cura para relacionamentos perturbados com os pais e companheiros, os quais são muito
poderosos para que o indivíduo dê conta dos mesmos sozinho.
O que devemos fazer com estes fundamentos, teorias e técnicas que os acompanham? Na
verdade, o que devemos fazer com os "ministros e ministérios da cura interior"?
A época em que vivemos, com sua orientação voltada para o experiencial, tende a gerar
um entusiasmo desqualificado por experiências de cura interior dentro de alguns setores
da comunidade cristã. Infelizmente, esta mesma tendência tem efeito oposto em outros
cristãos, que vêem como muito suspeitas tais experiências e a fascinação acrítica
despertada por elas. Na maioria dos casos, não existe uma única resposta simples. A
época em que vivemos é caracterizada pela crescente complexidade da vida em todos os
níveis - econômico, material, moral e intelectual. À medida em que novas e antigas
idéias se proliferam, elas influenciam o pensamento cristão de várias formas. Algumas
têm mais validade que outras; muitas são completamente inaceitáveis. Nós devemos estar
preparados para encarar conceitos não-familiares e pacientemente e em oração desvendar
tanto as suas fontes bem como a suas implicações. Este processo pode ser frustrante e
cansativo, mas sua necessidade é cada vez mais crescente.
Dentro disto, nós podemos comentar que a cura interior é um fenômeno complexo e
altamente variável. Não é possível nem endossá-la, nem condená-la cegamente. É
possível, entretanto, identificar e avaliar aqueles elementos que influenciam as teorias
e as terapias dos que praticam a cura interior.
"Nossa vida interior é uma parte crítica de nossa identidade pessoal, e portanto a
necessidade para a cura das emoções e memórias sempre fez parte da nossa condição
humana."
3. REDIMINDO A PESSOA INTEGRAL
A queda da humanidade (Gn.3) introduziu o princípio da morte e decadência em todos os
níveis da existência humana. O veneno do pecado perpassa cada poro do nosso ser. Em seu
sofrimento e ressurreição, Cristo venceu a morte - não somente fisicamente, mas de
todas as formas em que somos afetados por ela. Nossa vida interior é uma parte crítica
de nossa identidade pessoal, e portanto a necessidade para a cura das emoções e
memórias sempre fez parte da nossa condição humana. O ensinamento e ministério de
Jesus reconheceram implicitamente esta necessidade, bem como o fez o alcance da igreja
primitiva. Jesus mesmo falou freqüentemente sobre "o coração" (isto é,
"a sede oculta da vida emocional") como fonte de pensamento e ação. Ele
também citou a profecia messiânica de Isaías 61, declarando seu propósito de
"restaurar o coração partido" (Lc. 4:18). O apóstolo Paulo falou
repetidamente sobre a renovação da mente no Espírito Santo (Rm. 12:2; Ef. 4:23).
O encontro na estrada de Emaús (Lc. 24) pode ser visto (entre outras coisas) como uma
forma de "cura das memórias". Se nós tomarmos este incidente como um
protótipo para o exercício válido desta forma de ministério, vários critérios podem
ser vistos. Se esta forma de cura tem sustentação bíblica, ela não se referirá
primariamente às cicatrizes emocionais e traumas psicológicos da infância. Muito mais,
ela tomará uma perspectiva mais ampla, lidando radicalmente com todas as forças da
ansiedade, medo e incredulidade que produzem pensamento e comportamento anti-bíblico. O
ponto central da cura interior nesta perspectiva mais ampla é a morte sacrificial de
Jesus e sua vitória através da ressurreição sobre o pecado e a morte, exatamente como
aconteceu na estrada de Emaús. Deste ponto-de-vista, a cura interior é muito menos um
fim em si mesma e muito mais um passo preliminar que capacita o cristão a conseguir a
libertação (Gl. 5:1) e a maturidade espiritual, deixando de lado a forma egoísta e
infantil de viver (I Co. 13:11-12).
Os discípulos, apóstolos e crentes do primeiro século conheciam o Cristo crucificado e
ressurreto como Senhor de toda a história - cósmica (Cl. 1:15-23), racial (Ef. 2:11-20)
e pessoal (Hb. 9:14). À medida em que eles seguiam Seu exemplo e a promessa de Sua eterna
presença, eles eram libertos (e libertavam outros) do pecado, da doença física e
psicológica e dos problemas emocionais, bem como do medo da morte e da falta de
esperança que ela produz. Foi-lhes dada radicalmente uma nova base para a auto-estima, a
qual não está baseada na mentira, ira ou outras formas de auto-afirmação. Esta nova
base desafiou tanto a religião farisaica como sensualidade desenfreada.
4. A PSICOLOGIA DA PESSOA INTEGRAL
Existe comunhão entre psicologia e o Cristianismo? Esta questão, em seu sentido mais
amplo, escapa do objetivo da nossa aula. Entretanto, o assunto é pertinente, desde que
muito da "cura interior" está baseada em visão secular de como a nossa
personalidade é formada e influenciada.
Muitos elementos da psicologia secular, entretanto, são mais ambíguos; alguns são
frontalmente contrários ao pensamento bíblico. Sigmund Freud é a maior fonte de
tendência a se enfatizar o trauma infantil. Carl Jung foi seu aluno e colega que se
envolveu superficialmente com ocultismo. Sua abordagem sistemática à compreensão da
natureza da mente inconsciente se tornou influente nos anos 60 e 70. Muito dos conceitos
de Jung têm sido empregados num modelo "carismático" por pessoas como John
Sanford e Morton Kelsey. Portanto, Freud e Jung (para não mencionar outros) indiretamente
ajudaram a delinear muitas das pressuposições do movimento de cura interior. Além do
mais, algumas das técnicas utilizadas para resgatar memórias têm sido tomadas de
empréstimos de terapias seculares.
"Alguns praticantes da cura interior...não somente têm adotado um sub-modelo da
natureza humana; eles têm permitido que os próprios modelos se tornem parâmetros de
interpretação da Bíblia."
5. ALGUNS PARÂMETROS PARA O DISCERNIMENTO
À medida em que consideramos estes fundamentos, teorias e técnicas, e tentamos pesar
suas implicações, nós devemos ter me mente alguns fatores críticos. A cura do
"interior do homem" é uma premissa biblicamente demonstrável. Por esta razão,
nós precisamos abordar alguma idéias e métodos sobre cura interior com cautela. A
admoestação de Jesus a seus discípulos de que fossem "prudentes como as serpentes
e símplices como as pombas" (Mt. 10:16) nos colocará numa posição bem firme para
que sejamos capazes de identificar as influências sub-cristãs sem sermos influenciadas
por elas.
A ênfase exagerada numa certa técnica na vida espiritual facilmente se torna uma
tentativa de manipulação psíquica, um esforço de produzir uma experiência ou um
encontro com Deus. Não há nada de intrinsecamente errado em se utilizar a imaginação
na oração, mas a dependência de invocação imaginativa de imagens religiosas pode se
tornar insana. O uso do termo "visualização de fé" não batiza semanticamente
tais práticas. Os produtos da imaginação podem também ser convenientemente trazidos
para o campo do desejo e do ego, enquanto que o Cristo vivo não pode. Uma ênfase
extremada na confissão verbalizada pelo crente no movimento da "palavra da fé"
é outro ensino aberrante o qual, sutilmente, se torna uma espécie de ocultismo. Nestas
formas exageradas, a visualização da fé cria um "video-interior de Jesus", o
qual pode ser manipulado para quase qualquer sentido.
Da mesma forma, devemos estar atentos para os modelos psicológicos que se baseiam em
visões anti-bíblicas da natureza humana. É também necessário identificar e rejeitar
tecnologias terapêuticas que são utilizadas para sustentar tais modelos. Alguns
praticantes de cura interior, infelizmente, não somente têm adotado um sub-modelo da
natureza humana; eles têm permitido que os próprios modelos se tornem parâmetros de
interpretação da Bíblia. Tais práticas se situam entre a aberração e a apostasia.
Como já dissemos, existem ligações demonstráveis entre tais técnicas como a
"visualização da fé" ou a "confissão positiva" e algumas formas de
pensamento do ocultismo e da Nova Era. Os esforços de se voltar para o interior para
encontrar a globalidade, pode levar-nos à "dimensão divina interna" do
misticismo Neoplatônico ou aos "arquétipos" do inconsciente coletivo de Jung.
Em ambos os casos, bem como num grande número de casos similares, o sujeito que busca
termina ofuscado por um subjetivismo, o qual é racionalizado com termos originários da
metafísica oriental e da psicologia humanística.
Neste ponto, uma mudança da verdade bíblica para especulações humanas se torna base
para uma séria confusão sobre a natureza da cura e, mais importante, sobre a natureza do
praticante da cura. Neste novo papel, Jesus, o Messias, se torna em parte o terapeuta
primal e em parte um xamã primevo. Nesta situação, uma tentativa de se fazer uma
avaliação racional ou bíblica é negativamente rotulada como um "falta de
fé", "apagar o Espírito" ou "bloquear o fluxo"; pode mesmo ser
desprezada como uma "viseira".
"A postura bíblica sobre a nossa natureza é, com certeza, uma avaliação
verdadeira e mais confiável do que a feita por nossos medos, iras e memórias..."
6. UMA QUESTÃO DE PRIORIDADES
É razoável assumir que os problemas psicológicos e emocionais a que a igreja primitiva
se referia eram tão complexos como os de hoje. Nós também vamos assumir que as
soluções que ela aplicava são tão funcionais para hoje como eram no primeiro século.
Não havia nenhuma necessidade de se renunciar à visão escriturística da condição
humana ou de Jesus Cristo, a fim de fazerem estas soluções funcionarem. A imposição de
mãos, a unção com óleo, a confissão mútua e a meditação direcionada eram alguns
dos métodos empregados para produzir ambos, a cura interna e a cura externa. Os
apóstolos foram estranhamente silenciosos, entretanto, sobre qualquer necessidade de
reviver experiências relacionadas com a infância, ou sobre a prática de esfaquear o pai
na imaginação, como alguns praticantes de cura interior têm aconselhado aos seus
clientes.
Com certeza, há abundantes benefícios psicológicos em se colocar Jesus como o centro
radical de nossas vidas e afetos - mesmo acima e além de nossos laços familiares. Nós
também somos chamados, entretanto, a meditar sobre coisas que estão acima e, de alguma
forma é bom que se diga, que não estão nutrindo ressentimentos ou usando a nossa
liberdade como desculpa para o mal (Ef. 4:26; I Pe. 2:16; Gl. 5:1). Existe uma
considerável distância entre confessar a presença de um desejo negativo e
dramaticamente realizá-lo - mesmo que na fantasia.
Nós devemos evitar confundir o sagrado com a saúde. A cura da psique e emoções pode
ser uma importante parte do nosso crescimento em direção à espiritualidade. Entretanto,
ela não deve ser superestimada em detrimento de outros aspectos da santidade, nem deve se
tornar um substituto deles . Nós devemos nos guardar da idéia de que os cristãos estão
isentos de toda sorte de enfermidades, doenças e tentações e que, qualquer ocorrência
deste tipo seja um ponto negativo em nossa condição espiritual. Por outro lado, é
importante não perder de vista as variadas maneiras pelas quais Deus provê libertação
de coisas que nos impediriam viver plenamente em Cristo.
7. AS MARCAS DA INTEGRIDADE ESPIRITUAL
Cura espiritual pode ser considerada como tendo base bíblica. Se assim for, ela deve ser
reconhecida como uma parte integral de nossa vida cristã. Três principais pontos nos
ajudarão a discernir a consonância bíblica de cada forma em particular, de cura
interior. Todos os três pontos são vitais para um entendimento equilibrado e seria
desaconselhável isolar ou superestimar qualquer um destes elementos.
Primeiro: A cura espiritual deve tocar o problema na sua fonte. O indivíduo deve ser
liberto da prisão de uma memória em particular e do falso significado atribuído a ela.
As feridas emocionais causadas pelo incidente que forçou a repressão de sua memória
deve ser curada. Paulo fala de Deus como o Pai da compaixão (I Co. 1:3-4) e também
enfatiza que a provisão do sangue de Cristo é um aspecto da Sua perfeita sabedoria (Ef.
1:7-8). De fato, é a "contínua aspersão do Seu sangue" que guarda o coração
e a consciência das "palavras mortas" (Hb. 9:14; 10:22) e nos liberta do
cativeiro emocional destas palavras a fim de que possamos servir ao Deus vivo.
Segundo: A cura interior deve quebrar padrões de respostas habituais e comportamentos que
foram gerados em reação a um trauma inicial. A pessoa que está sendo curada deve
cooperar ativamente neste processo, ao invés de reagir passivamente à instruções e
manipulações do que ministra a cura interior. Toda redenção envolve o fazer escolhas e
o exercício da nossa vontade. Uma vez que fomos convocados ao arrependimento e
renovação, somos também chamados a abandonar velhas formas de responder às pessoas e
circunstâncias (Cl. 3:12-17; I Pe 2:1-3). Nós devemos portanto aprender novas atitudes e
formas de lidar com estas situações (Ef. 4:22-24; I Pe. 1:5-9).
Terceiro: A cura interior deve produzir mudanças pessoais que sejam compatíveis com a
revelação das Escrituras, do nosso novo ego (eu) em Cristo. Isto deve estar combinado
com uma ênfase na confiança do que Deus nos diz sobre nós mesmos, mais do que nossos
sentimentos podem dizer. A postura bíblica sobre a nossa natureza é, com certeza, uma
avaliação verdadeira e mais confiável do que a feita por nossos medos, iras e
memórias, sem mencionar as acusações do Adversário (Rm. 8:1-2). A cura interior deve
nos ajudar a sermos reeducados (através da palavra de Deus) acerca de quem somos em
Cristo. Uma vez que entendemos como Deus nos vê, bem como a provisão que Ele fez para o
nosso crescimento, nós começaremos a desenvolver uma auto-estima que corresponde
precisamente à nossa confiança na justiça de Cristo, mais do que em nossa própria (Rm.
12:3).
Nós não temos que abandonar o ponto-de-vista bíblico ou o compromisso com o senhorio de
Cristo a fim de podermos nos beneficiar da cura interior. De fato, se tal necessidade for
expressa ou se está implícita, é aconselhável reconsiderar a validade dos fundamentos
que têm sido colocados.
Jesus mesmo reconheceu o dilema fundamental da humanidade, bem como suas secundárias
implicações emocionais e psicológicas. Ele reconheceu o problema de se atingir
auto-estima diante em ambiente hostil e uma consciência igualmente hostil que foi
imperfeitamente moldada por influências imperfeitas durante os anos de formação da
pessoa. A consciência ainda não-redimida se torna um entrave na condição psicológica,
o qual inevitavelmente produz sua própria dissolução (Rm. 8:6). Jesus sugeriu ao homem
que a vida entregue a Ele e o fato de seguirmos seu exemplo - mesmo a sua morte como
mártir - é uma carga mais fácil de ser suportada do que se lutarmos com as nossas
próprias forças. (Mt. 11:28-30).
Pr. Joaquim de Andrade, Vice-presidente da AGIR (Agência de
Informações Religiosas).
E-Mail: joaquimherege@uol.com.br
Fonte: http://www2.uol.com.br/bibliaworld/igreja/estudos/doutr012.htm
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