Preserve a memória de sua cidade 

    

    

 

 O Rincão da Cerca Velha

 

Antes dos agricultores se fixarem por aqui, talvez muito antes, tocadores de tropas e criadores, habituados ao vai e vem pelo caminho que conduzia às Minas Gerais, sentindo-se atraídos pelas aguadas e pastos do alto da Serra de Santo Inácio, resolveram fincar raízes, também. Escolhiam um canto qualquer, que julgavam de ninguém, ou até mesmo sabendo ser de alguém e se estabeleciam.


Esta carta geográfica, foi localizada pelos botucatuenses Paulo Pinheiro Machado Ciaccia e Cesar José Maria Ribeiro, descendentes do Cap. José Gomes. Interessados em desvendar certos detalhes de nossa história, os dois botucatuenses fizeram microfilmar todo o acervo de papéis sobre Botucatu, do período compreendido entre os anos 1852 e 1899, existentes no Arquivo do Estado, em S. Paulo. Graças a eles, hoje, a cidade dispõe de um volume - em cópia digital - de 2.500 folhas, reproduzindo os documentos originais que aquele Arquivo guarda. (clique sobre o mapa para ampliá-lo)


Pelo Capão Bonito – um ajuntamento primitivo existente dentro das terras do vereador José Gomes Pinheiro - passava o caminho que conduzia às Minas Gerais. Superada a subida da Serra do Santo Inácio, pelas terras que estão no costão sul dela (hoje município de Pardinho), as tropas procuravam atingir os campos do rio Lençois, para varar o rio Tietê num ponto favorável, bem defronte ao Distrito de Potunduva (Jaú). Era por isso que, ao cruzarem os altos da Serra, passavam pelo Capão Bonito.

Desse ajuntamento de palhoças – um lugar, já na época chamado Capão Bonito - saía um outro caminho que, buscando o leste, procurava atingir a mais antiga Vila de Constituição, hoje Piracicaba. Dessas 20 léguas de caminho entre Capão Bonito e Constituição, em uma parte delas, os viajantes cruzavam as terras onde hoje está a cidade de Botucatu. Vinham por um antigo caminho, varando as matas densas e os campos de cerrado e, atravessando as águas de vários ribeirões, alcançavam o trecho em que hoje a cidade se encontra. Varavam, então, os riachos do centro urbano atual, buscando descer a Serra por uma da "bocainas" do paredão leste. Iam atravessar o Tietê por um outro varadouro.

Transferindo-se de Minas Gerais para cá, escolheu e fixou uma posse, um desses peões tocadores de tropas, de nome Joaquim da Costa e Abreu. Ergueu sua vivenda no coração das terras do Capitão José Gomes Pinheiro, um criador e negociante de Sorocaba, radicado em Itapetininga, onde havia sido eleito vereador à Câmara Municipal. Terras antigas, fazendas organizadas para cultura de cereais e criação de gado, haviam sido adquiridas por ele, ainda em 1816, ao seu antigo proprietário, o sargento-mor João Pires de Almeida Taques. Eram famosas, principalmente por serem as primeiras à beira dos velhos caminhos ao Mato Grosso, constituídas nas partes altas das Fazendas Jesuitas do Botucatu.

Dessas posses de Joaquim da Costa e Abreu, nasceu a mais famosa polêmica de disputas territoriais do princípio de nossa história. De um lado o capitão e vereador José Gomes Pinheiro. De outro a família Costa. Dessa disputa resultou um processo corrido no Forum de Itapetininga, e ficou conhecida pelo nome de seu episódio mais violento: Porteira da Contrada. Nele, as partes tentaram resolver, pela força das armas, a posição de suas divisas.

 

O romancista Francisco Marins 

e d. Elvira,  que guardam a 

imagem de Sant´Anna, trazida por José Gomes Pinheiro

e Anna Florisbela

em 1842

 

No curso do ano de 1843, quando as duas comissões de averiguação apresentaram seus relatórios, opinando sobre as pretensões dos moradores do Capão Bonito, no sentido de terem a sua Freguesia, o vereador José Gomes Pinheiro estava aqui, morando em suas fazendas, havia mais de ano. É que, desde o ano anterior, os partidários do Regente Feijó e Rafael Tobias de Aguiar encontravam-se no ostracismo, ausentes da vida pública, por força dos atos subsequentes à Revolta Liberal de 1842, que ambos lideraram. A repressão, fortíssima, que se seguiu à Revolta, a uns colocou na cadeia, a outros marginalizou da vida pública e a muitos determinou a fuga, como recurso extremo. O capitão e vereador José Gomes Pinheiro era um deles. Refugiara-se nos fundos de suas propriedades do alto da Serra do Santo Inácio, quando as tropas de Caxias deram cabo da Revolta de Sorocaba e engaiolaram suas lideranças, para, depois, partir no encalço de seus aliados – os vereadores da Câmara de Itapetininga.

Casarão que hoje é o Museu do Bandeirante de Porto Feliz. Em 1842 abrigou a oficialidade das tropas de Caxias, antes do ataque aos insurretos de Sorocaba e seus aliados da Câmara de Itapetininga.

Cada dia mais, parece ter sido fundamental esse fato, para concretizar as pretensões dos moradores da Serra do Santo Inácio. É que, residindo em suas fazendas, o capitão-vereador travou, com os moradores do lugar, uma vivência mais estreita e conheceu mais de perto suas aspirações. Tivera muito tempo para isso e, então, em março e maio de 1843, quando os relatórios das sindicâncias apareceram em Itapetininga, um deles sugerindo que não se criasse a Freguesia, o vereador José Gomes Pinheiro já estava articulado, o suficiente, com a população local, para influir diretamente na busca de soluções para a criação da Freguesia.

As lideranças do povoado estavam reunidas em torno de uma comissão pró-Freguesia, que já havia conseguido agregar os moradores do lugar e canalizar sua força em cima do mesmo objetivo, havia três anos, pelo menos. Sua direção estava entregue a Felizberto Antonio Machado, um lavrador. Tinha experiência, era insistente, havia enviado um solitário ofício à Assembléia Provincial, em 1840, pedindo a instalação de uma Freguesia, como já vimos. Depois – decorridos alguns anos - passou a contar, também, com outros nomes: João da Cruz Pereira, também lavrador e Manoel de Almeida Toledo. Juntos, em janeiro desse 1843, encabeçam uma lista com duzentos nomes de moradores locais, insistindo na pretensão de ver criada a Freguesia de Cima da Serra.

Enquanto os tais relatórios tramitavam entre a Câmara da Vila de Itapetininga e a Cidade de S. Paulo, sede do governo provincial, aqui no alto da Serra de Santo Inácio, os líderes da comissão pró-freguesia procuraram entender-se com o capitão/vereador José Gomes Pinheiro Veloso. Como o fizeram? De quem foi a iniciativa? Quem aproximou as partes? Em que momento? Estas são perguntas que sobrevivem sem respostas, em nossa História, mas algum fato parece ter ocorrido entre os meses finais daquele ano de 1843 – talvez a própria divulgação dos relatórios da sindicância. Esse fato, ao que tudo indica, acelerou os acontecimentos e definiu os rumos que tomaria a luta pela Freguesia, porque, nos últimos dias do ano, em 23 de dezembro de 43, com certeza concretizando o acordo com as lideranças, o Capitão José Gomes, elabora um documento, no qual define uma área e faz a doação dela para formar o patrimônio de uma futura Freguesia.

Esse episódio não ficou apenas na doação de terras e na entrega de uma folha de papel que deveria ser registrada no Cartório de Itapetininga. Não, a partir daquele momento, a Comissão pró-Freguesia começou a trabalhar em um novo projeto de Capela, acertado de comum acordo com o Capitão José Gomes Pinheiro. Seria uma nova Capela, que já nascia com um patrimônio territorial, com nova localização e nova santa protetora, Santana, para dar forma a um novo lugarejo que deveria se formar no entorno da Capela, dentro de um prazo de 6 anos.

Por aquelas decisões, lavradas no documento de doação, o núcleo em torno do qual seria formada a Freguesia mudou de lugar. Se antes, a pretensão era edificar no Capão Bonito, onde por alguns anos Felizberto Antonio Machado tentara fundar uma pequena Capela, agora, o perímetro das terras doadas delimitava que a futura Freguesia se formaria nas terras cedidas ao patrimônio da Capela de Santana.

As referências aqui citadas,

sobre a atuação do Cap.José Gomes, na Câmara de Itapetininga,

foram pesquisadas pelo historiador Hernani Donato

e constam de seu livro "Achegas para a História

de Botucatu".

 

A presença do Capitão (única expressão política com representatividade na Vila de Itapetininga), residindo então aqui em suas terras, e tomando as decisões diretamente, somada ao ato da doação, são fatos e circunstâncias que vão determinar o fortalecimento de novas lideranças – com certeza ligadas a ele, enquanto – ao contrário – vão, aos poucos, enfraquecer o papel da família Costa e das lideranças ligadas a ela. Quando é criada a Freguesia e são feitas as primeiras nomeações, consolida-se a figura de João da Cruz Pereira (indicado sub-delegado de polícia e juiz de paz) e de Manoel de Almeida Toledo (indicado tabelião do Cartório, coletor, fabriqueiro da Matriz e sacristão). Sem dúvida firmaram-se alinhados ao Capitão. Não foi isso que ocorreria a Felizberto Antonio Machado. Principal liderança que era, desde a década de 30, ele desaparece. A História só vai voltar a falar dele quando em 1849 ele faz registrar uma transcrição da doação de terras feita pelo Capitão José Gomes, em benefício da Freguezia, ou quando, em 1862, a Câmara o cita como um dos tres agricultores que plantavam trigo, no alto da Serra.

Em 1844, José Gomes Pinheiro, anistiado, está de volta a Itapetininga e à Câmara de Vereadores da cidade sede do município. Já seduzido pela população da Serra, assume a luta da emancipação, na sua plenitude. Em 15 de outubro de 1845 produz um retrato do florescente agrupamento de casas e das novas formas que ele vem assumindo, defendendo em sua indicação, a criação da Freguezia: "estão os povos daquele lugar erigindo uma nova Capela com a denominação de Santana – cujos povos têm afluído em maior parte de Minas Gerais e Franca, e já se contam duzentos e tantos fogos (...) gente rude de pouca ou nenhuma obediência às autoridades e grande parte criminosos que pendem para este lugar, por não haver aí autoridade suficiente para corrigi-lo, e nem ao menos os inspetores têm força para dar cumprimento às ordens dos magistrados desta vila..." .

Não bastasse isso e em 20 de dezembro daquele ano ele volta à carga, construindo novo depoimento e lembrando de sua indicação de outubro: "...é inegável que aquele território tem propriedade para berço de uma populosa vila, porque a abundância de campos, além de outros que se poderão descobrir, boas matas de cultura, fertilizadas de vertentes colocadas entre dois poderosos rios, Paranapanema e Tietê, clima salubre e abundância de peixe e caça, a cana, café, fumo e algodão, têm aí franca vegetação, além do terreno que vai findar nas margens do Paraná...".

Botucatu, 1872

(data provável) 

(clique sobre a figura para ampliá-la)

 

Madura, a questão começou a apresentar resultados. É muito provável que naquele 20 de dezembro a Câmara de vereadores de Itapetininga ou, pelo menos, os circulos políticos da sede, soubessem que estava iminente uma decisão do governo provincial paulista. Então, em 19 de fevereiro de 1846, por ato do Governo Provincial, com a lei número 283, é criada a Freguezia de Botucatu.

Em seguida é a vez da emancipação política e, em 14 de abril de 1855, a Freguesia de Botucatu é elevada à condição de Vila. Teria assim a sua Câmara de Vereadores e suas decisões políticas já não dependeriam da Câmara de Itapetininga.


O Vigário era a autoridade em toda Freguezia. Existia o Vigário Encomendado e o Vigário da Vara da Comarca, ambos nomeados pelo Bispo. Ao Vigário da Vara da Comarca cabia, entre outras coisas, tirar devassas, receber denúncias, proceder contra pessoas desobedientes, fazer autos contra os que usurpam a jurisdição do bispo. Este conjunto de atribuições lhes dava força política. Era a eles que o Governo da Província recorria, em se tratando das Freguezias.  (clique sobre a figura para ampliá-la)


Padre Joaquim Gonçalves 

Pacheco Primeiro vigário 

de Botucatu - 1849

 

Passado algum tempo e chega a vez do Judiciário; afinal, as questões para serem resolvidas, exigiam longas viagens, do sertão até Itapetininga. E o sertão não terminava aqui; o vasto território ía até as barrancas do Rio Paraná, ao Oeste. Primeiro Botucatu é considerada Termo Unido à Itapetininga, em 29 de agosto de 1857. Em seguida, e sob pressão dos moradores, o Governo Provincial cria, por decreto, a possibilidade da Vila ter o seu Foro Cível e o seu Conselho do Juri (28/04/1859). A primeira sessão do Juri local ocorre um ano depois, em 06 e agosto de 1860. Botucatu, no entanto, continuava dependente em relação às decisões de Itapetininga, pois a criação do Conselho de Jurados e do Foro Cível não a desanexava daquela Comarca. Isto só vai acontecer em etapas. Primeiro acontece a separação de Itapetininga, em 15 de dezembro de 1860. Parecia fácil, a criação da nova Comarca. Mas não foi criada. Só mesmo por lei provincial, de 20 de abril de1866, isso vai acontecer. Nessa ocasião, São Paulo foi subdividida em novas Comarcas e Botucatu recebe a sua, finalmente, com jurisdição sobre cidades como Itapeva, Apiaí e Lençóis Paulista.

Finalmente, em 1876, o presidente da Província, Sebastião José Pereira, decreta a elevação de Botucatu à condição de Cidade.


O Cenário

Havia, nas terras do Capitão José Gomes Pinheiro Veloso, uma invernada, chamada de Invernada das Laranjeiras. Contígüo à invernada havia um Serro, coroado por um mato alto e bonito. A este deram o nome de Capão Bonito e, por proximidade, a invernada passou a ser conhecida, também, como a Invernada do Capão Bonito.

Dividindo a Invernada do Capão Bonito e a Fazenda do Sobradinho existia um enorme trecho de mata, conhecido pelo nome de Mato Alto ou Mato Geral.

Quando o mineiro Joaquim da Costa e Abreu aqui chegou, estabeleceu-se com sua vivenda, exatamente no início do mato alto e levantou ali uma porteira, que obstruiu a comunicação entre a Invernada e a Fazenda. O caso acabou no Forum de Itapetininga e a porteira foi removida.

No Serro do Capão Bonito e em suas proximidades, nasciam inúmeros arroios bordados de matas que, juntos, formavam uma restinga, que ligava o Serro do Capão Bonito ao Mato Alto, divindindo a Invernada referida em dois pedaços. De um lado da restinga ficava o rincão de campo chamado também da Capela ou da cerca velha e, do outro lado, outro rincão de campo vendido pelo Capitão José Gomes para o lavrador José Antonio Pereira. Ambos estavam dentro da Invernada do Capão Bonito.

Falecido Joaquim da Costa e Abreu, após resolvida a primeira pendência, seus descendentes iniciaram uma nova questão, obstruindo desta vez o acesso dos animais do Capitão, à água existente ao longo da restinga. De novo tudo acabou no Forum de Itapetininga, em 1846.


 

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