Ele voltou

O charme de Godard chega ao Brasil

Godard em JLG: narcisismo, belas imagens e auto-ironia

O cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard está de volta. Dado muitas vezes como morto, ele, o ranheta, o rebelde, o chato, o "cabeça", ressuscita justamente nos Estados Unidos, país que adora criticar em seus filmes. Lá, uma cópia remasterizada de O Desprezo, de 1963, filme que ironiza a indústria cinematográfica americana, entrou em cartaz por iniciativa do diretor Martin Scorsese. No Brasil, a "nova onda" Godard chega nesta semana com o lançamento, ainda que atrasado, em São Paulo, do filme JLG por JLG -- Auto-Retrato de Dezembro (França/Suíça, 1994). No filme está tudo o que contribuiu para dar a Godard a fama de espantalho de bilheteria: o egocentrismo -- afinal, é sobre ele mesmo --, as longas citações, de Diderot a Wittgenstein, e a velha cantilena de que o cinema americano padrão não é arte. Para quem não vai ao cinema com o intuito de "entender" o filme, no entanto, estão lá também todas as qualidades do cineasta. O humor, a seleção musical de primeira, a combinação esplêndida e surpreendente de música e imagens. E a fantástica criatividade. Ao se assistir, desarmado de preconceitos, a um filme de Godard, é impossível discordar de sua defesa, quase quixotesca em tempos de Star Wars, do cinema de autor. Afinal, Godard faz filmes bons ou ruins, mas nunca óbvios, e por isso mesmo diferentes de quase tudo o que se vê hoje nos cinemas.

Esse JLG por JLG traz bons exemplos do humor do cineasta, da maneira como ele se leva muito menos a sério do que os seus espectadores. É impossível não rir na cena em que ele contrata uma montadora cega para fazer a edição de seu filme ("Eu vejo as coisas dentro da minha cabeça, como todas as pessoas", ela diz). Ou com a ironia presente na postura do cineasta, que no filme fala o tempo todo praticamente sozinho, como que querendo entender o motivo pelo qual há tantos anos faz isso. Claro que o humor de Godard já foi mais ácido e colado à realidade do que é hoje. Há, por exemplo, a antológica cena de A Chinesa (1967) em que um terrorista resolve matar um embaixador e erra o número do quarto. Feito um ano antes do maio de 1968, esse filme marcou época e ajudou uma geração que se levava muito a sério a rir de si própria.

Retrato triste -- Nesse seu auto-retrato um tanto triste, Godard discute as grandes oposições que estão presentes na maioria de seus filmes: a cultura e a arte ("A cultura é a regra e a arte, a exceção. Faz parte da regra querer matar a exceção", diz numa tentativa de justificar seu próprio fracasso comercial), e também a cultura e a natureza. Assim, ao mostrar uma bela paisagem da Suíça no inverno, Godard sobrepõe a ela o som de um telefone tocando. Para o cineasta, a força de uma imagem está no contraste. Ele aparece quase todo o tempo sob uma luz escura, que deixa entrever um velho mal barbeado e ensimesmado. Como se sua imagem não importasse, é a sua voz que tem a maior presença no filme, interrompida às vezes por sons da natureza, da cultura e da arte.

Fernanda Scalzo

http://www2.uol.com.br/veja/130897/p_121.html