O filme noir, com suas almas
torturadas, renasce
com todo o esplendor das grandes falsificações
Geraldo Mayrink
Um filme sensacional que parece um
pastiche de velhas cenas em preto-e-branco, Los Angeles – Cidade
Proibida (L.A. Confidential, EUA, 1997) é o milagre da
reciclagem de materiais tirados do lixo. Lixo, em todos os sentidos, são seus
personagens. E a falsificação, em todos os seus níveis, a sua meta. Los
Angeles, no começo dos anos 50, era uma cloaca milionária onde não havia
identidades pessoais nem ética, apenas egos e vontades. Tudo tão postiço que,
não por acaso, Hollywood era, como ainda é, seu subúrbio industrial mais
famoso, onde as mulheres faziam plástica para se transformar em clones das
beldades da época, como Veronica Lake ou Lana Turner. A polícia tinha dupla ou
tripla identidade, como os bandidos que perseguia, e se comportava com o élan
de heróis de cinema. Plantava provas mentirosas para incriminar os alvos mais
frágeis, no caso mexicanos e negros, para ganhar prestígio e, como todo mundo,
brilhar numa cidade que consagrou o glamour como valor supremo. Tudo é para a
platéia. Os personagens de L.A. são charmosos, às vezes, sanguinários e sórdidos
quase sempre. Charmoso é Jack Vincennes (Kevin Spacey), tira que assessora um
programa de TV e dá notícias para alimentar um pasquim sensacionalista, Hush
Hush. Sanguinário é o chefe de polícia Dudley Smith (James Cromwell), um
monstro moral aclamado como grande homem. Charmoso é o policial bom-moço Ed
Exley (Guy Pearce), que quer melhorar a imagem da polícia e acaba premiado pelo
que não fez. Sórdido é Sid Hudgens (Danny DeVito), que chantageia através de
notícias forjadas para o seu jornal. Sanguinário é Bud White (Russell Crowe),
tira-trator sempre a um passo de soltar fogo pelas narinas. E linda, mentirosa,
adorável como uma verdadeira star, é Lynn Bracken (Kim Basinger), objeto de
desejo de dois deles, cópia de Veronica Lake (1919-1973). Diz Lynn: "Sou
morena. O resto é tudo meu".
O animal melancólico – O segredo em fazer do clássico uma
novidade é a falsificação mais brilhante do roteiro que o diretor Curtis
Hanson e Brian Helgeland tiraram do romance L.A. Confidential, de James
Ellroy, que tem 400 páginas de escrita forte e um cipoal de tramas que se
imbricam levando vários homens a perseguir com métodos diferentes uma mesma
verdade. É tudo tão ficção e memória que Ellroy, hoje com 49 anos, era
pouco mais que um bebê à época que descreve a cidade onde nasceu e vive.
Hanson, um diretor apenas mediano (Rio Selvagem, com Meryl Streep, A
Mão que Balança o Berço, com Rebecca De Mornay), teve a sensibilidade de
fazer com que seus personagens cresçam, tenham identidades e motivos próprios
e até mesmo uma melancolia inesperada, muito humana, como a do selvagem Bud
White, encharcado pela chuva, desnorteado porque foi traído pela sua bela e
impossível loura. Tudo isso convence e emociona porque tem um grande estofo
dramático por trás, uma referência histórica do cinema que é uma coisa do
outro mundo.
O mundo do chamado filme noir é o das perversões. A primeira, em relação ao
espectador, é que ninguém entende direito o enredo, no qual algo sempre escapa
ou se confunde com outra coisa. O que se vê não é o que parece e ninguém é
o que se imagina. Outra é que não há quem se responsabilize por essas
identidades nebulosas. Muitos filmes mostram que nem grandes artistas como os
escritores Raymond Chandler, James M. Cain ou David Goodis, os pais literários
dessa escuridão, nem mesmo o diretor Howard Hawks, um dos notáveis de
Hollywood, sabiam exatamente do que estavam tratando. Há uma cena num clássico
do gênero, À Beira do Abismo (1946), em que um cadáver bóia à
beira do cais. O galã Humphrey Bogart foi cobrar de Hawks o que era aquilo. O
diretor disse que não tinha idéia. Foram então perguntar ao roteirista,
William Faulkner, futuro prêmio Nobel de Literatura, que também confessou não
saber. Perguntado pelos três, Chandler deu mais uma golada no bourbon que anos
depois o mataria e os despachou irritado: "Mas como é que eu vou me
lembrar de uma coisa dessas?".
A lógica criminal desses filmes é muito vaga. Valiam mais, naquelas produções
dos anos 40 e 50, as imagens carregadas de "clima" e insinuações,
suspense e tipos mal-encarados. Agem em lugares-chave do submundo, boates sórdidas,
cais do porto, o bairro chinês, sempre por dinheiro, e todos – todos mesmo
– têm contas a ajustar com o passado. Mas sempre existe um detetive que
acredita, moderadamente, na própria honestidade. É desse ancestral que se
nutre o falso bonzinho Ed Exley em Los Angeles – Cidade Proibida.
O cinismo, a desesperança e a amoralidade são a moeda corrente do noir, em que
aliás os valores morais, por falar em moeda, não valem um tostão. Ninguém
presta, nem a loura de sonhos, de cachos caídos sobre o olho e que parece viver
uma atmosfera impregnada de óleos perfumados. Sua voz, rouca e quente, é puro
veneno. Mente. Às vezes tortura. Pode matar. As calçadas onde eles pisam em
geral estão molhadas, os letreiros são em gás neon e a noite dominadora
raramente deixa entrar o sol em cena, como se ele pudesse desmascarar os
personagens. A prosa noir ganhou expressão visual com um estilo importado da
Europa muitos anos antes, o expressionismo alemão e suas aberrações em
claro-escuro e ângulos distorcidos, transplantados para Hollywood por um grupo
de austríacos e alemães de grande talento, como Fritz Lang, Otto Preminger e
Billy Wilder. O noir, com suas impressões digitais em preto-e-branco e sua alma
apenas em preto, desenvolveu-se na mesma época em que, do outro lado do Atlântico,
nas caves igualmente enfumaçadas de Paris, os existencialistas suspiravam com náusea
pelo ser e pelo nada. Coincidência ou não, outros futuros prêmios Nobel, como
Albert Camus e Jean-Paul Sartre, devoravam a ficção ordinária americana com
grande apetite. Como tantos mundos cinematográficos nebulosos e estranhos, o do
noir, que Los Angeles – Cidade Proibida faz renascer, não se passa
nem no céu nem no inferno, mas num limbo de almas penadas.
O estrelato sem pressa Só nos últimos dois anos começaram a prestar atenção em Kevin Spacey, depois que ele ganhou o Oscar de ator coadjuvante – só um – pelo personagem duplo no policial Os Suspeitos, de Bryan Singer, em 1996. Nesse período, acumulou mais dez prêmios, inclusive o Globo de Ouro e dos críticos de Nova York e Chicago. Aos 38 anos, dezesseis de palcos, programas de TV e filmes, Spacey é um homem elegante, de fala mansa, nem um pouco ansioso por ter esperado tanto tempo pelo reconhecimento. "Minha carreira foi ajudada pelo Oscar, é claro, mas esse negócio de astro não tem nada a ver comigo", diz. Spacey é de Nova Jersey, filho de pai escritor de livros técnicos de engenharia, estudou arte dramática em Nova York, mas não se formou. Nas telas, já foi visto em Tempo de Matar, de Joel Schumacher, Assassinato sob duas Bandeiras, de Bruno Barreto, e recentemente em Ricardo III – um Ensaio, de Al Pacino, de quem é muito amigo. "Foi divertidíssimo fazer este filme", conta. "Para mim revelou o método de trabalho de Al. Ele sempre foi muito reservado quanto a isso, mas agora sabemos o motivo: pudemos ver o canastrão que ele realmente é." Demoraram a reparar nele e agora estão querendo tirar o atraso. Spacey interpretou em Nova York uma peça de Neil Simon, Lost in Yonkers, dirigiu o filme Ciladas da Sorte (Albino Alligator), com Matt Dillon e Faye Dunaway. Acaba de medir forças com John Kusak no novo filme de Clint Eastwood, Midnight in the Garden of Good and Evil, no começo do ano faz The Negotiator ao lado de Samuel L. Jackson e, mais para a frente, uma peça ainda não definida em Londres. Vive em Nova York, não se sabe com quem. Comenta com ironia: "Não importa se os personagens que faço são bons ou maus. Importa sua ambigüidade. Sou muito feliz, mas não quero dizer com quem. É minha ambigüidade, além de direito constitucional". |
http://www2.uol.com.br/veja/121197/p_134.html