Até tu, Vitória?

O amor plebeu da rainha que passou para
a História como símbolo puritano

Quem diria... A rainha Vitória, que passou para a História como símbolo do puritanismo do século passado, também deu suas escapadinhas. Durante seu longo reinado de 64 anos, já viúva, para horror de toda a realeza e agregados, ela afeiçoou-se por um reles cavalariço escocês. Grosseirão, chegado a umas boas talagadas de uísque, ele se chamava John Brown. Contando com a soberba interpretação da atriz inglesa Judi Dench, Sua Majestade, Mrs. Brown (Mrs. Brown, Inglaterra, 1997), que estréia nesta sexta-feira em circuito nacional, reconstitui com minúcia o encantamento de Vitória pelo plebeu. Além de Dench, uma atriz veterana do teatro britânico, brilham também Billy Connolly, um consagrado humorista escocês, na pele de John Brown, e Antony Sher, que vive o maquiavélico primeiro-ministro conservador Benjamin Disraeli. Ao narrar o drama pessoal de Vitória, e suas evidentes implicações políticas, o filme disseca a hipocrisia protocolar e as escaramuças partidárias que marcaram a época, com picardia e uma cuidadosa recriação da época vitoriana. Mesmo partindo de uma rigorosa pesquisa histórica, Sua Majestade deixa a cargo do espectador decidir se a rainha e o plebeu beberrão foram ou não além dos bilhetes, suspiros e furtivos beija-mãos.

Matrona e beata — Brown entrou na vida de sua majestade pela porteira do castelo de Balmoral, na Escócia, onde Vitória, matrona e beata, amargava um luto que já durava três anos, depois de perder o marido, o príncipe Albert, vítima de febre tifóide. Todo o império britânico sabia quanto ela sentia a falta do finado, até que Brown despontasse. Com sua barba frondosa, ele chegou três anos depois da morte de Albert na condição de um serviçal menor. Sua missão consistia em lavar, treinar os cavalos e levar a rainha a passeio quando e se ela assim o desejasse. Aos poucos, entretanto, ele, que fora um amigo leal do falecido Albert, impôs-se diante de Vitória a tal ponto que, além de conquistar sua confiança irrestrita, quase causou uma crise de Estado. Com seus modos rudes, Brown era capaz de mandar calar a boca o príncipe de Gales da época, o futuro rei Edward VII. Da mesma maneira, entrava nos aposentos reais sem bater à porta, e reteve Vitória na Escócia por nada menos do que seis anos, longe de suas obrigações burocráticas para com a coroa. Durante esse tempo, a rainha cavalgava diariamente acompanhada apenas por seu fiel escudeiro. Longe de Londres e do povo, e perto demais de Brown, a história deu o que falar.

O filme cresce justamente à medida que Vitória se debate entre o luto, o afeto pelo cavalariço e os deveres de soberana. Não tardam as intrigas palacianas para derrubar John do posto de primeiro-amigo. Nesse ponto, a interpretação primorosa de Bill Connolly enriquece a trama. Assim como não há evidências sobre a consumação do romance, Brown também surge como uma criatura ambivalente. Alguém que tanto pode ser um escroque arrivista quanto um abnegado que renuncia a tudo apenas para servir sua rainha. Há trinta anos, tentou-se levar o episódio para o cinema. Sean Connery e Elizabeth Taylor foram escalados para viver Brown e Vitória, mas a censura do Palácio de Buckingham acabou engavetando o projeto. Eram tempos sem Charles e Camila Parker-Bowles e Diana e Dodi Al-Fayed. Hoje, comparado às peripécias de alcova de tais personagens, o affair de Vitória não passa de uma cândida história da carochinha.

http://www2.uol.com.br/veja/180398/p_132.html