Música
Se
tens bom senso ou juízo, eu piso.
–Ensaio
sobre Tom Zé–
A
primeira vez em que a música de Tom Zé passou a ser trabalhada pelo
martelo interno de meus ouvidos – juntamente com
a foice no meu cérebro e no meu
coração -, jamais poderia imaginar de que se tratava de um dos gênios da
cultura brasileira. Aquela música desconexa não
fazia sentido, em absoluto, para mim, então um devorador da cultura de massa
veiculada nas rádios. Meu tio possuía algumas gravações (nem menciono CD
por sempre lembrar-me da frase no disco do Língua
de Trapo “Classe AB, ouve CD”) do tal Tom
(nesta época Jobim e Zé eram a mesma coisa) e sempre que podia, atirava o nome do baiano de Irará na conversa.
O
tempo passava e vieram as (r)evoluções. Talvez Tom Zé agora
soasse “legível”. Estava quase certo: a música até pouco tempo quase
erudita, agora teria lugar na minha massa cinzenta...Mas, ainda me surpreendia
aquela música.
Para
mim, Tom não era músico. Suas letras, suas entrevistas levavam-me a crer no
gênio e não no virtuose do violão ou Frank Sinatra na voz. Ficava
claro: o homem sertanejo que se tornou celebridade (talvez não
fosse uma palavra tão “ofuscante”) mundial e, o mais
importante: sem vender a alma ou a bunda ao diabo para
tocar em Montreux.
Como
um digno antropofágico ao estilo Oswaldiano, coloquei Tom no prato. Meu
tio foi meu garçom. Ensinou-me algumas coisas, insinuou outras sobre a intrépida
Semântica (palavra cujo SIGNIFICADO conheceria mais tarde
durante a graduação) que circundava o trabalho de Tom. As entrevistas do
baiano iam ajudando-me. Ocorriam – como sempre na TV Cultura – em raras
ocasiões. Logo, suas aparições eram aproveitadas ao máximo possível.
Houve
uma em especial. Durante o lançamento de Hips of Tradition em 1992, a TV
Cultura (o meu restaurante favorito) exibiu um especial. Diversos nomes
da contra-cultura estavam lá e, mesmo sendo os gênios que são,
encontravam alguma dificuldade em falar da obra de Toim Zé (uma variante freqüente
para Tom). Os maestros Diogo Pacheco, Júlio Medaglia, Augusto de
Campos, Arto Lindsay e David Byrne eram encurralados pela música
astuta e marota de Tom. A definição para Tom descrita por Medaglia era:
Tom
continua um guerrilheiro cultural.
Aquilo chocou-me. “Guerrilheiro”? Che? E,
de fato, Medaglia estava certo: Tom Zé era um grande
guerrilheiro que atuava em Campos e espaços (como diria Caetano em Sampa) quase
sempre não definidos. Poderia ir de Os sertões até Finnegans
Wake ou Ulysses em uma linha.
Ficava surpreso com o descaso das pessoas para com sua obra. Falava a
alguns conhecidos sobre Tom e quase era expulso do bate-papo.
Irritava-me o fato de nunca terem ouvido as músicas de Tom e, mesmo
assim, odiá-las como se a música do gênio de Irará os incomodasse. E, de
fato, incomodava.
Caetano Veloso (idolatrado, salve, salve) em seu Verdade Tropical
cita Tom Zé como o único dos tropicalistas a ficar em São
Paulo. Afinal, Tom sempre foi o grande tropicalista da turma. Exímio leitor de Oswald interessou-se pela poesia concreta e pelas idéias dos Campos
(essencialmente Augusto, que carinhosamente Tom apelidou
por “Guga”). Mas, acima de tudo, pela idéia da atomização das palavras
– característica que o segue desde então.
Tom conta que o Tropicalismo iniciou em 68, viveu em 69 e, em 70, Tom foi
enterrado. Daí a afirmação de Caetano de que Tom foi o único a
ficar em São Paulo e só ser “ressuscitado” no início dos anos 90
quando David Byrne (ex-integrante do grupo inglês Talking
Heads) veio ao Brasil procurar alguns discos de samba (David, após a
dissolução do grupo, tornou-se um estudioso da música) e encon-
trou Estudando o Samba de Tom Zé (raríssimo
nos dias de hoje). Byrne ficou maravilhado e, conta Matinas
Suzuki Jr. que ao entrevistar David, viu um bilhete: “No Brasil,
procurar Tom Zé”.
O que maravilhou Byrne foi, além da música (Tom utiliza um meio de
composição muito próprio, mas essencialmente de vanguarda,
ao estilo Cage ou Varése), a temática de suas composições. O povo. Nada
mais do que isso. Com Defeito de fabricação lançado em
1999 expressa em sua contracapa a insatisfação do
baiano (do interior – Tom sempre frisa isso tomando por base
que o baiano de Salvador é um ser atípico dentro da própria Bahia) em relação
ao domínio enrustido, cultural, das potências econômicas:
O
terceiro mundo tem uma crescente população. A grande maioria se
transforma em uma espécie de andróide, quase sempre
analfabeto e com escassa especialização para o trabalho. Isso acontece
aqui, nas favelas do Rio, de São Paulo, no nordeste do país,
e em toda a periferia da civilização. Esses andróides são
mais baratos que o robô operário fabricado em Alemanha
e Japão. Mas revelam alguns “defeitos” inatos, como
criar, pensar, dançar, sonhar; são defeitos muito “perigosos” para o patrão
primeiro mundo. Aos olhos dele, nós, quando praticamos essas
coisas por aqui, somos andróides com defeito de fabricação.
Pensar sempre será uma afronta. Ter idéias, compor, por exemplo, é
ousar. No umbral da história, o projeto de juntar fibras vegetais e
criar a arte de tecer foi uma grande
ousadia. Pensar sempre será.
Talvez esse seja o grande problema de Tom: pensar demais. Ousou
pensar mais do que todos os tropicalistas (palavra que certa
vez confessou a Lorena Calábria odiar profundamente por todo o ocorrido com o
movimento Tropicalista), mais do que Caetano ou Gil ou
Os Mutantes. Tornar-se amigo dos poetas concretos,
de Luiz Tatit (ex-integrante do grupo de vanguarda paulistano Rumo
que incluía Ná Ozzeti nos vocais e professor de Semiótica na USP), de
José Ramos Tinhorão (renomado estudioso da música popular
brasileira, conhecido por ser “tinhorão”) tornou Tom Zé
e sua genialidade incompreensíveis. Hoje, é aclamado na
Europa (essencialmente na França), nos USA – ABUSA e no Japão.
Como diz o próprio Tom em relação ao imperialismo econômico: o patrão
primeiro mundo chamou o andróide que possuía o maior defeito de fabricação:
o de PENSAR.
Uma parte da estética do arrastão do plagicombinador
em Com defeito de fabricação deixo aqui. Na próxima edição
tem mais sobre Tom e sua genialidade. Até lá.
Defeito
13: Burrice
(Tom
Zé)
Veja
que beleza!
Em
diversas cores
Veja
que beleza
Em
vários sabores
A
burrice está na mesa
Veja
que beleza!
Refinada,
poliglota,
Anda
na direita
Anda
na esquerda
Mas
a consagração
Chegou
com o advento
Da
televisão
Da
televisão
Da
televisão
Ensinada
nas escolas
Universidades
e principalmente
Nas
academias de louros e letras
Ela
está presente
Ela
está presente
(discurso
político)
Senhoras
e senhores,
Senhoras
e senhores,
Se
neste momento solene
Não
lhes proponho um
Feriado
comemorativo para
A
sacrossanta glória da burrice
Nacional,
é porque todos os dias,
Graças
a Deus, do Oiapoque ao Chuí,
Dos
pampas aos seringais, ela já é
Gloriosamente
festejada
Gloriosamente
festejada
Arrastão
do “Sottsier de Bouvard e Pécuchet” de Flaubert e da música caipira
Eduardo
Messias Oliveira é estudante de Língua e Literatura Brasileira da UMESP