Cantinho dos amigos da Vampy

MEMÓRIAS

«Victory Dance», Frederic Remington

 

One, two, three, four... hoje em dia toda a gente fala a língua do branco, mas quando eu era miúdo... three, four... como é a seguir? ... Maldita memória... quando eu era miúdo era até proibido falar dos brancos, quanto mais balbuciar as palavras deles... mas eu, eu sabia contar até dez. E sabia mais uma porção de coisas: horse, indian, man, woman... a minha mãe não pôde ensinar-me mais. Morreu cedo e nem eu ousei chorá-la. Havia por então problemas mais prementes... havia a maré branca que avançava, ondas de caravanas numa enxurrada que cobria aos poucos as terras que eram nossas, que afogava os bisontes, que dizimava as tribos...

Ah, aquelas pradarias imensas, aquele verde onde a gente se perdia, debaixo do sorriso ofuscante de um céu infinito... tão doce e azul como os olhos da minha mãe... e o tropel da manada que se aproximava, as lanças firmes na mão, os gestos temerários, os gritos de entusiasmo, às vezes de dor, a poeira, o suor, o sangue, tudo aquilo nos deixava como se tivéssemos tomado daquela água de fogo que os caras-pálidas consumiam... depois era uma alegria esquartejar os animais, provar a carne palpitante, ver as mulheres curtir as peles, e, à volta da fogueira, reviver a caçada debaixo de um céu por então coalhado de estrelas.

Mas a paz já não reinava nos corações. Pontiac tinha feito o que pudera, reunira tribos, e como ele houve mais... soubemos de Cochise, do capitão Jack, do Jerónimo... houve muita traição, muita mentira...e Sitting Bull a exibir-se num circo para ganhar a vida, e tantos dos nossos a definhar em reservas! Reservas! Como se gado fôssemos... e esta terra que era dos nossos antepassados e portanto nossa, terra que já bebera do sangue e se reanimara da carne dos nossos , esta terra vendia-se por uma vintena de dólares, pobre terra que já não oferecia bisontes... já não havia caça, já não havia cultivos, já não havia futuro.

Um dia... mas isto foi antes, muito antes, julgo eu... já não recordo bem...um dia veio até ao acampamento um Cherokee. Vinha em paz, mas não sozinho: acompanhava-o um velho alquebrado, de pele engelhada de flácida : procurava alguém. Nós da linguagem dos Cherokees entendíamos os gestos, o velho falava um inglês abastardado de termos índios de uma dezena de tribos; havia anos que a sua filha fora feita prisioneira pelos índios. Havia anos que ele, teimoso, a procurava de tribo em tribo, sabedor de que frequentemente educávamos as crianças brancas como se nossas fossem. Com palavras corteses foi mandado embora : não havia ninguém que correspondesse à sua busca.

Do meu tepee eu observava tudo aquilo enquanto aguçava as flechas: foi a primeira vez, e a última, que vi o meu avô.

Ah, aquelas pradarias imensas... mas espera, onde é que vais? Ficou tanto por dizer...Vais juntar-te à escória branca, é isso? Vais outra vez passar a noite em bebedeiras, gastar a tua mocidade em bares, chamar amigo àqueles que te deserdaram em vez de te unires aos da tua raça, de reviveres as tradições, de lutares pelo cumprimento de todos os acordos que os brancos desrespeitaram...

«A Doubtful Handshake», Charles M. Russell

Onde é que vais? Ainda nem te falei da batalha de Little Big Horn, de Red Cloud, de Osceola... não queres saber da história do nosso povo? ...e então da história da tua bisavó, daqueles olhos docemente azuis que...

Joel A. Martins