A tarde refulgia de calor, o sol ondulava os
contornos das areias pálidas, ali, à beira do deserto.
Os cavalos escorriam suor, igualmente o escravo
pressuroso que se aproximava de parasol aberto para o cobrir.
Não falou: contentou-se com um gesto breve, negativo.
Furtar-se aos raios do sol seria o mesmo que
furtar-se à própria vida.
Os poucos homens que faziam parte do seu séquito
mantinham-se em silêncio, esperando ordens. Pois bem, que armassem
uma tenda, que comessem, que restaurassem forças. Ele nada mais
queria que o silêncio, que a meditação, que o seu pai sol tocando-lhe
a pele.
As pirâmides, quase fluidas naquele braseiro
do sol do meio-dia, desenhavam-se tremeluzentes num horizonte
próximo. Para elas se encaminhou, a areia escaldante nos pés que
as sandálias mal protegiam.
Foi com reverência que fitou a esfinge, retrato
de antepassado remoto, também ela um tributo ao sol que tudo cria.
Por entre as patas leoninas, hieráticas, erguia-se a estela colocada
por seu avô Tutmósis, em memória de uma outra tarde de calor quando,
jovem príncipe sem direito à coroa, ela lhe prometera o trono
em troca da libertação das areias que a cobriam..
Sentou-se aos séculos da sua sombra. O silêncio
trazia-lhe as vozes animadas dos homens que até ali o tinham acompanhado.
Em Tebas, em todo o Egipto, esta era a hora da
sesta, era uma loucura afrontar assim o poder de um deus.
Mas louco era como todos o consideravam, sorriu
para si próprio. Até mesmo aqueles que, contra a sua vontade e
a deles, ali o tinham seguido naquela peregrinação em busca de
um passado, em busca de uma luz mais forte ainda que os raios
do deus solar, que o iluminasse interiormente e lhe apontasse
o caminho. Que lhe justificasse a existência.
Relaxou os músculos, cansado de muita coisa.
Não da viagem, que o barco descera o Nilo sem contratempo e a
bom ritmo, era mais o cansaço de uma vida feita de imutáveis rituais,
numa corte rígida e intriguista, cada gesto comandado por antigos
preceitos que não entendia.
A co-regência com Amenófis, seu pai, atormentava-o
de decretos e decisões que lhe roubavam o sono e o precioso tempo
que votava àquele deus que sabia único: Aton.
Falsos, abstractos, vivendo do povo e da sua
vontade eram todos os outros: Amon, Osíris, Ptah, aos quais contudo
devia prestar tributo, homengear, festejar nas datas prescritas
por uma tradição obsoleta.
Havia porém algo de puro na sua vida: Nefertiti,
uma criatura de bondade e luz, compreensiva, a única talvez do
seu lado, companheira criada por Aton, que não via os seus devaneios
como sinais de loucura latente, antes como a procura necessária
do caminho para a Verdade.
Nefertiti! Neste momento a dormir, serena, na
obscuridade do fresco quarto do palácio real, sonhando com ele,
porque o amava. Isso era uma certeza.
Descalçou as sandálias. Sentia uma vaga dor de
cabeça, os olhos cansados do fulgor do sol. Se este ao menos lhe
enviasse um sinal, qualquer que fosse, por mais ínfimo... Adormeceu,
alheado do perigo de escorpiões naquelas areias brandas, embalado
em sonhos místicos.
E eis que do areal, surgido não se sabia de onde,
talvez da escada que liga ao céu dos deuses as pirâmides, se encaminhou
na sua direcção um corpo perfeito, demasiado belo para ser humano,
um corpo cuja face irradiava amor, tão formosa que apetecia mais
não fazer que cair em adoração perante ela, eternamente.
E o deus - porque tinha fatalmente de o ser -
falou: "Meu filho, constrói para mim uma cidade em terra não contaminada
pela adoração a outros deuses. Porque eu sou o único, indivisível,
eu sou Aton, o princípio de todas as coisas..."
O jovem príncipe acordou então, despertado por
um som familiar: "Esta é a Rádio Novidade! Estamos consigo onde
quer que se encontre...! E já de seguida o último êxito da Britney
Spears..."
Tatjana K.
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