A JUVENTUDE OPERÁRIA CATÓLICA – VISÃO DE UMA UTOPIA

 

Raimundo César de Oliveira Mattos

Mestre em História Social pela USS

Professor Adjunto do Curso de História  na

Faculdade de Filosofia de Valença

 VERSÃO PARA IMPRESSÃO (Microsoft Word)

Resumo:

A JOC – Juventude Operária Católica – desempenhou um papel importante no cenário nacional na construção de uma nova utopia, principalmente a partir do golpe de 64 que procurou amordaçar as poucas vozes que se levantaram para defender os direitos dos trabalhadores. Representativa, ainda, de uma nova maneira de organização do laicato na Igreja Católica, não encontrou, por parte da hierarquia eclesiástica, o apoio suficiente para sobreviver e, mesmo não extinta oficialmente como foi a Juventude Universitária Católica, acabou desaparecendo devido à perseguição militar e ao descaso de muitos bispos que não compreenderam a sua importância. Destacamos, em nossa dissertação de mestrado, esta importância que rendeu os frutos de novos movimentos sociais dentro da Igreja que, agredida em sua hierarquia, acabou por voltar-se contra um regime que muitos eclesiásticos chegaram a aplaudir.

 Palavras Chave: Utopia, Juventude Operária, Laicato.

 

A JUVENTUDE OPERÁRIA CATÓLICA – VISÃO DE UMA UTOPIA

 

            Valmir Francisco Muraro, em uma pequena obra sobre a JOC[1], trata do que ele classifica como “utopia jocista”. Não foi, ainda segundo o mesmo autor, apenas um sonho ou uma esperança abstrata, mas uma real possibilidade que se constituía nas fendas propostas pela transformação econômica brasileira.

            Note-se que o autor utiliza o termo “utopia” não como uma imaginação, um projeto ou um “sonho irrealizável e narcotizante”, mas designando uma força capaz de provocar mudanças sociais profundas. Nesse sentido, estabelece-se uma ligação com o exposto em Karl Mannheim:

 

                              “Utopias (...) são aquelas idéias, representações e teorias que aspiram uma outra realidade, uma realidade ainda inexistente. Têm, portanto, uma dimensão crítica ou de negação da ordem social existente e se orientam para sua ruptura. Deste modo, as utopias têm uma função subversiva, uma função crítica e, em alguns casos, uma função revolucionária”.[2]

 

            Michael Löwy, por sua vez, procura outra terminologia para aplicar tanto às ideologias quanto às utopias: “visão social de mundo”. E afirma que as “visões sociais utópicas” são aquelas que possuem uma função crítica, negativa, subversiva, quando apontam para uma realidade ainda não existente. Ora, nesse sentido, a história da “utopia” jocista conheceu momentos bem diferentes em sua trajetória, passando do “sonho” da salvação evangélica para a idéia do “paraíso social e deste para a idéia de revolução social”.[3]

            O movimento surgiu na Bélgica, criado pelo Padre Leon Joseph Cardijn, nascido na Cidade de Schaerbeek em 13 de dezembro de 18 82, perto de Bruxelas. Pertencia a uma família de classe operária e, ainda adolescente, ingressou no seminário da Cidade de Malinas, tendo norteado sua vida pela doutrina católica o quê, aliás, era comum às famílias pobres de sua época. Cresceu em uma Bélgica industrializada na expansão econômica de finais do século XIX. Nesse contexto, os trabalhadores tiveram que pagar um forte preço pela transição para uma sociedade industrial moderna: condições de trabalho perigosas, largas jornadas, baixos salários.

            Durante o período de férias escolares, chamou-lhe  a atenção um fato: a maioria de seus antigos colegas, ao trocarem o estudo pelo trabalho, acabavam se afastando da Igreja e das práticas religiosas. Muitos deles perdiam a fé e até tornavam-se adversários do catolicismo. Contando então quinze anos, Cardijn constatou que a Igreja tinha pouca ou mesmo nenhuma influência junto aos jovens operários que enxergavam o clero como “aliado das classes dominantes”. Foi talvez esta amarga experiência de rejeição da Igreja pelos operários que levou Cardijn a descobrir o mundo de sua vocação sacerdotal. A morte do pai por enfermidade profissional, por sua vez, levou Cardijn a prometer dedicar sua vida à causa da juventude trabalhadora.

            O jovem seminarista tinha se alarmado com o fato de que o marxismo encontrava forte aceitação entre os operários de sua idade e passou a conceber a idéia de organizar um movimento de fundo cristão que fosse ao encontro desses jovens. Era o germe do movimento jocista que tomava forma em sua mente e que rapidamente se organizou. Por tais circunstâncias compreende-se porquê o movimento jocista, em boa parte de sua história, inclusive no Brasil, foi marcadamente anti-marxista. A realidade vivenciada pelo Padre Cardijn, o meio em que se desenvolveram as suas idéias para a criação da JOC acentuaram, de forma marcante, a tendência do movimento. No ambiente da fábrica as idéias marxistas acabavam sendo mais atraentes que as pregações católicas, ainda mais se levarmos em conta o afastamento considerável entre a hierarquia eclesiástica e o operariado, o que tinha levado a constatações como a do Papa Pio XI:

         “O Papa Pio XI havia lamentado que o maior escândalo do século XIX tivesse sido o fato da Igreja ter perdido a classe operária, e Pio XI e Pio XII viam a reconquista dessa classe como um objetivo prioritário”.[4]

            Nas fábricas, o apostolado católico estava mais voltado para as elites econômicas, o quê levava os jovens a um desinteresse pela religião que não respondia às suas necessidades. Foi diante de tais fatos que o então seminarista e depois Padre Cardijn criou a idéia de organizar um movimento religioso que pudesse reconquistar os jovens trabalhadores para o catolicismo. No entanto, para o Padre Cardijn os jovens operários deveriam ser mais do que simples objetos de uma conscientização. Deviam, eles mesmos, ser os agentes desta conscientização, agentes na resolução de seus problemas, condenando toda forma de paternalismo e assistencialismo. A Igreja entraria apenas como um apoio organizativo, pois toda a ação deveria ser sugerida e realizada pelos trabalhadores. Uma vez constatados os problemas, era necessário analisá-los para poder agir com maior segurança.

No princípio, o novo movimento não foi bem visto por parte da hierarquia eclesiástica belga, que não aprovava um movimento autônomo, principalmente na medida em que este desaprovava a atuação do clero despreocupado com os problemas sociais. A questão suscitada entre os bispos era: seria o movimento jocista uma versão comunista da atividade cristã católica? Na verdade, o movimento jocista apresentou-se como uma opção para os operários frente ao marxismo. Seguia retamente a Doutrina Social da Igreja expressa nas encíclicas papais. Mas era um movimento renovador e relativamente progressista diante da realidade religiosa em que se apresentou. No entanto, acabou por impor-se, uma vez que:

         “Do ponto de vista da Igreja institucional, a JOC era parte de um esforço amplo de realizar uma cautelosa modernização através do desenvolvimento de um trabalho pastoral mais eficaz entre a classe trabalhadora”.[5]

            As preocupações da Igreja com os problemas operários vinham desde 1891, ano em que foi editada a Rerum Novarum do Papa Leão XIII. Outros atos e pronunciamentos papais seguiram-se a esta encíclica, abordando os problemas da sociedade, mas o jocismo surgiu, na prática, como o movimento mais promissor, ainda mais levando-se em conta a questão aberta entre o clero e o laicato. Tal questão dizia respeito ao papel do laicato na Igreja, ou seja, qual seria a atribuição, quais seriam as funções dos leigos dentro da Igreja e fora dela. A JOC surgiu como um novo alimento para os trabalhadores que, na visão de seu criador e dos próprios jocistas, iriam refazer o mundo conjuntamente com a Igreja.

            Alguns anos foram necessários, no entanto, para a aprovação efetiva do movimento. As desconfianças do clero belga e do próprio núncio apostólico, Cardeal Mercier, levaram Cardijn até o Papa Pio XI que interferiu pessoalmente para tornar viável a organização do movimento. Pio XI agradeceu a “sagrada ambição da JOC de organizar, não só uma elite, mas o conjunto da classe trabalhadora”. Isso ocorreu em 1925, quando o Vaticano reconheceu a JOC como um movimento oficial da Igreja e foi obtido o apoio do clero belga, agora apaziguado com a aprovação oficial. Ao mesmo tempo, foi permitido um espaço para a difusão do novo organismo.

            A partir da década de 20 o jocismo organizou-se na Bélgica, alcançando grande sucesso, o quê permitiu ao movimento, na década seguinte, deixar os limites de seu país de origem assumindo dimensões internacionais. O sucesso alcançado pelo movimento tanto na Europa quanto em outros continentes, conquistando jovens trabalhadores, acabou convencendo o Vaticano a apoiar a implantação do jocismo em países onde a industrialização se fazia presente.

            Ao ser instalado no Brasil, o movimento jocista representava uma tentativa de união dos jovens operários em torno de uma luta de transformação da vida operária. Pretendia mostrar aos trabalhadores o “valor de ser filhos de Deus”. Os primeiros grupos no país foram criados na metade da década de 1930. Mas foi só em meados da década de 40, quando foi organizada a Ação Católica, que a JOC começaria a se tornar um movimento importante.[6]

            Segundo Mainwaring, existiam no Brasil alguns problemas enfrentado pela Igreja, a saber: o processo de secularização, a erosão do monopólio religioso, o baixo comparecimento às cerimônias religiosas em áreas rurais. Tais problemas já haviam sido apontados por D. Sebastião Leme em sua carta pastoral de 1916, ano em que assumiu a Arquidiocese do Rio de Janeiro. Tudo isso trouxe a conscientização de uma necessidade de desenvolver práticas pastorais mais eficazes, especialmente entre a classe operária urbana. Havia a crença, entre o clero, de que a classe trabalhadora era religiosamente ignorante e de que a Igreja precisava implantar uma fé mais atuante. Tal preocupação encontra-se expressa nos documentos da JOC do final da década de 50 e início da de 60.

Houve todo um evoluir na estrutura e forma de agir e pensar da JOC brasileira. No primeiro período de sua existência, defendia-se o Evangelho como fundamento de uma sociedade igualitária, justa e feliz. A partir do momento em que todos os cidadãos cumprissem os preceitos evangélicos, “o melhor dos mundos se instalaria como o reinado cristão”. Tratava-se, aqui, do princípio teórico básico do movimento. Esse mundo seria alcançado sem conflitos com as autoridades constituídas ou com os donos do capital, seguindo-se o preceituado pela Doutrina Social da Igreja, a partir da Rerum Novarum de Leão XIII. Por isso, no primeiro período da História da JOC no Brasil, esta se caracterizou por vagos traços de reivindicações sociais. Seus objetivos eram mais espirituais que materiais. A idéia de revolução social não era, enfaticamente, colocada.

            No segundo período, orientaram-se as atividades jocistas pela predominância de idéias liberais e humanitárias. Mas estava longe, ainda, de uma proposta reformista ou revolucionária. Reivindicava-se uma sociedade menos cruel e exploratória. Pretendia-se conseguir dos governantes a instalação de dispositivos reguladores das relações sócio-econômicas que pudessem minimizar os problemas materiais dos operários. Eram idéias transformistas, embora elementares. Seguiam paralelamente as próprias diretrizes do Estado Novo trabalhista, concessor de privilégios aos operários, embora com o preço de sua liberdade de ação. Estávamos em um período intermediário, entre o suicídio de Vargas e o golpe de 64, período esse que, segundo Marco Aurélio Nogueira:  

        “(...) desde o final dos anos 50, o Brasil mergulhara num ciclo de profundas transformações estruturais, que alterava o perfil de sua economia, de sua sociedade e de sua cultura. Dentre outras coisas, convivia-se com um novo padrão de demanda societal por bens e serviços públicos, que passaria a desafiar cada vez mais o Estado”.[7]  

            Nesse ponto da evolução jocista, pensava-se na fusão da “utopia” religiosa em um programa político que a levasse a efeito. O estabelecimento de uma nova vida, alcançada através da substituição total do regime sócio-econômico em vigor, seria a preocupação de uma reforma política. O jocismo brasileiro, após 64, aproximou-se nitidamente desse tipo de “utopia”, na medida em que seus militantes foram perseguidos e encarcerados. Nesse terceiro momento, as mudanças propostas deveriam ser realizadas imediatamente, não em um futuro distante. A imaginação utópica passou a manifestar-se na forma de idéias revolucionárias, onde os trabalhadores organizados poderiam promover as mudanças sociais desejadas. A partir daí, a intolerância e a violência opressora se fizeram presentes. O regime instalado no Brasil com o golpe de 64 sentia-se ameaçado por qualquer forma de organização popular, ainda que apenas discordassem dos princípios impostos pelos novos governantes.

            Valmir Muraro, neste ponto, afirma que “não é possível eliminar completamente a imaginação utópica” e que a “repressão movida pelo Estado e a indiferença do clero em relação à violência praticada contra os membros da JOC não conseguiram destruir a ‘utopia’ jocista”. A destruição do jocismo brasileiro, considerada por ele como aparente, não significou o fim da “utopia” operária brasileira, mas apenas a “superação de uma etapa. A pastoral popular desenvolvida atualmente pela Igreja no Brasil também foi um dos excedentes utópicos que foram além da morte formal do movimento jocista”.[8]

            A JOC organizou-se, internamente, em sua forma de atuar, como um movimento representativo dos operários em larga escala e, externamente, de maneira corporativista de classes. Uma de suas preocupações, pelo menos até o segundo período de sua existência no Brasil, foi o progresso material, além da seguridade social do trabalhador, tendo sempre apontado a liberdade como valor. O seu método de funcionamento, “ver-julgar-agir”, era adotado, segundo depoimentos de ex-jocistas, no sentido de observar a situação do operário a atuação dos empresários, julgar de que lado estaria a razão e, só então, agir, buscando a seguridade social e a manutenção da harmonia entre as classes, o status quo. No entanto, a partir do momento em que ocorreram as transformações políticas no país com o golpe de 64, a JOC transformou-se radicalmente, passando a ser um movimento  contestatório, principalmente se levarmos em conta que, além de representativo dos operários, era também representativa da juventude, de uma juventude que, muito cedo, era lançada no mercado de trabalho.

            A interrogação implícita nas diversas pesquisas sobre a condição juvenil é saber se os jovens são sujeitos potenciais de ação coletiva antagonista[9]. Essa é a interrogação que se coloca em relação à JOC: a juventude operária brasileira nas décadas de 60 e 70 tinha condições potenciais para representar uma ação coletiva antagonista ao regime militar implantado no país em 64? O regime assim entendeu, haja vista a perseguição que moveu contra o movimento, levando-o à extinção.

            Segundo o brasilianista Kenneth Serbin, “a JOC tornou-se uma das mais radicais organizações na Igreja brasileira”[10]. Uma de suas canções, composta em 1967, intitulada “Meu Brasil analfabeto”, convocava “toda a gente pra fazer revolução”. Em 1968, alguns jocistas participaram de importantes greves contra o regime em Contagem e Osasco. Não tinha, porém, ligações reais com organizações revolucionárias que viam os ativistas católicos como meramente reformistas. Isso, apesar de no final dos anos 60 a JOC ter passado a defender o socialismo. Com isso, entende-se porque o regime militar, entre agosto e setembro de 1970, ter desencadeado grande ofensiva contra o movimento. Ocorreram prisões no Maranhão e nas cidades do Rio de Janeiro e Volta Redonda. Alguns padres e numerosos jocistas foram torturados. A repressão, segundo o brasilianista supracitado, tornou-se maior depois da declaração do AI- 5, a partir do qual o Exército se empenhou sistematicamente em destruir a organização. E, segundo Scott Mainwaring, citado por Kenneth Serbin, por volta de 1970 ela (JOC),  se tornara um dos alvos principais do regime militar por sua liderança junto aos movimentos populares, sua crítica radical ao regime e seu compromisso com o socialismo. Isso levou, inclusive, à diminuição do apoio dos bispos, o que constituiu, juntamente com a repressão militar, o assalto final que praticamente destruiu a organização. No entanto, a experiência da JOC vai exercer profunda influência no desenvolvimento da Igreja progressista nos anos 70, fazendo com que alguns bispos, devido à repressão, passem a assumir uma posição mais aberta contra o regime. Um dos pontos de choque entre o movimento jocista e o regime militar foi o relativo aos andamento da economia.

            O que pretendia o regime de 64 quanto à economia do país? Segundo Marco Aurélio Nogueira, “previa o impulsionamento autoritário da expansão econômica, liberando-a dos entraves de natureza política e social ativados pela precedente fase democrático-populista”[11]. Mas, ainda segundo o mesmo autor, isso ajudou apenas “a aprofundar as deformações típicas do capitalismo brasileiro. O regime articulou-se simultaneamente com os grupos dominantes mais atrasados e com o grande capital monopolista, promovendo rápida modernização econômica”. Era nova fase de intervencionismo estatal que “modernizou o País, mas deformou-o em vários setores, recheando de artificialismo a estrutura produtiva e impondo um pesado ônus à sociedade”. Contra tal situação insurgiu-se a JOC. E o Estado militar repressor voltou-se contra ela e contra toda e qualquer organização que tivesse vida própria. Essa união ou articulação do regime com antigos e novos grupos dominantes já se fizera sentir no Estado Novo.

            Em boa parte do país, a repressão inaugurada em 64 fez surgir nos jocistas uma nova visão social. A nova situação deixou claro, no entanto, que somente uma transformação radical da sociedade poderia melhorar a situação dos setores menos favorecidos da população. Passou-se a substituir o anticomunismo antigo do movimento jocista por uma posição mais moderada: os comunistas passaram a ser vistos como possíveis aliados na luta pelos direitos dos trabalhadores. Até 1964 alimentava-se a esperança de mudanças pacíficas. O golpe enterrou tal visão, contribuindo para uma mudança de posição e atitudes. Nunca o “sonho da salvação da classe trabalhadora”, alimentado pelo criador da JOC, que conheceu muito bem as “dificuldades econômicas que levavam muitas famílias, naqueles dias, a colocar os filhos muito cedo no mercado de trabalho”, esteve tão presente no ideário do jocismo brasileiro. Note-se aqui que, durante a década de 60, ia se tornando mais clara a presença de uma esquerda católica na pastoral especializada da Ação Católica Brasileira, da qual fazia parte a JOC. A ACB foi se radicalizando e aproximando-se da esquerda, distanciando-se da orientação eclesiástica, caminhando para criar vida própria e autônoma da hierarquia, como era a sua finalidade. Com isso, a “idéia revolucionária” tornava-se mais forte que a perspectiva desenvolvimentista alardeada pelo novo regime e os militantes considerados mais radicais da JUC (Juventude Universitária Católica), JOC e JEC (Juventude Estudantil Católica), como resultado desse novo ambiente, criaram em 1963 a Ação Popular (AP), que optou por uma política de preparação revolucionária, atuando na mobilização e conscientização popular em uma luta contra a exploração capitalista. Exatamente o capitalismo brasileiro com as “deformações típicas” aprofundadas pelo regime militar.

            Entre 1964 e 1968, os jocistas tentaram ser porta-vozes dos leigos que pretendiam transformar revolucionariamente o papel da Igreja e da sociedade, mas foram perdendo sua liberdade de ação, quer seja pela vigilância do Serviço Nacional de Informações, quer seja pela diluição lenta promovida pelo episcopado católico. Foram pressões tanto da parte das autoridades eclesiásticas como dos policiais. O relacionamento da JOC com o Estado foi se deteriorando progressivamente. Como exemplo, logo após o golpe algumas regiões distribuíram críticas e advertências contra o novo regime e, na medida em que o governo procurou sair da crise através do sacrifício dos operários, as críticas da parte dos jocistas foram aumentando. A repressão mais violenta contra o movimento iniciou-se a partir do Congresso realizado pela ACB e pela JOC em Recife em 1968, quando seus documentos foram considerados profundamente subversivos pelos militares. Depois de 1970, enquanto o movimento jocista continuava sua trajetória em outras partes do mundo, até mesmo na América Latina, no Brasil subsistiu apenas debilmente em algumas cidades, ou transfigurou-se com outras roupagens.

            Havia, antes do golpe de 64, toda uma preocupação de a JOC afirmar-se como um movimento representativo não somente dos jovens trabalhadores, mas como uma organização representativa do mundo operário. Seus militantes tinham passado, em grande número, a participar de organizações operárias como sindicatos, associações profissionais, clubes de bairros e mesmo em associações partidárias. Já se falava em revolução e trabalhava-se para isso. Nesse sentido é que se compreende que o movimento de 64 tenha sido considerado pelos jocistas como uma “anti-revolução”. Chegou-se mesmo, em 1967, à conclusão, por parte dos jocistas, de que “o marxismo para nós é uma doutrina como qualquer outra. O comunismo não nos assusta. Se o marxismo contribui para dar ao operário aquilo de que ele precisa e permita a sua realização como indivíduo, não nos colocamos contra ele”[12]. Estava selado o seu destino.

            Como movimento operário e, sobretudo, jovem, a JOC adotou a postura apontada por Alberto Melucci em sua obra:

 

                                        “Os jovens podem, portanto, tornarem-se atores de conflitos porque falam a língua do possível; (...) fazem exigência de decidir por eles próprios, mas com isto mesmo reivindicam para todos este direito. (...) A cultura juvenil exige, então, da sociedade o valor do presente como única condição de mudança; exige-se que aquilo que vale se afirme no aqui e agora; reivindica o direito à provisoriedade, à reversibilidade das escolhas, à pluralidade e ao policentrismo das biografias individuais e das orientações coletivas. E, por isso, não pode desencontrar-se com as exigências do sistema que impõe imprevisibilidade, redução da incerteza, estandartização”.[13]

 

            Foi justamente essa “reversibilidade de escolhas” que ocorreu com a JOC brasileira. Passou de simples organização que procurava a “harmonia social” para uma posição que abraçou a luta da classe operária e mesmo do país contra o regime militar que, segundo Marco Aurélio Nogueira, diante da crise, “aos poucos quebrava a própria base de sustentação política do regime, generalizava o descontentamento social e estimulava a exacerbação de demandas e reivindicações, em torno das quais começaria a se estruturar uma nova subjetividade política no País”[14]. Mesmo esmagada, a JOC serviu de base para a tomada de posição aberta contra o governo por parte da hierarquia eclesiástica, abrindo caminho para o que se convencionou chamar de progressismo nas fileiras do catolicismo brasileiro e que foi extremamente importante para o fim do regime militar.

           O movimento jocista no Brasil foi vítima de uma violência para a qual não estava preparado. Mas isso não foi suficiente para eliminar as suas influências e a sua continuidade. Alguns núcleos esparsos subsistem até hoje. Antigos militantes atuam em outros movimentos da Igreja Católica ou mesmo em sindicatos, associações de moradores e similares. Alguns abandonaram a Igreja Católica, motivados pela falta de apoio do episcopado durante a repressão. O método criado por Cardijn foi adotado oficialmente pela CNBB em suas diversas linhas de atuação. Ao lado de outros movimentos da Ação Católica especializados em juventude o jocismo brasileiro pretendeu promover uma reviravolta no catolicismo do Brasil para a pastoral popular. As experiências jocistas representaram um apostolado mais próximo daquilo que os trabalhadores esperavam da Igreja. A JOC, pode-se afirmar, despertou a Igreja para a importância de se fazer uma “opção preferencial pelos pobres”, oficialmente definida em Medellin, para não perdê-los.

            As transformações da Igreja a partir da repressão militar, mas que já se faziam sentir bem antes do golpe de 64, foram dialéticas, segundo Scott Mainwaring. Muitas inovações foram iniciadas nas bases, mas se tornaram significativas somente depois de terem sido adotadas pela hierarquia eclesiástica. As contribuições e os limites da JOC na transformação da Igreja ilustram essa observação.  

           “A onda de repressão de 1970 silenciou a JOC justamente quando a Igreja popular começava a ganhar espaço e quando a instituição começava a defender os direitos humanos. Durante o governo Médici, outros grupos da Igreja adquiriram um dinamismo que ultrapassava a JOC e a ACO. As comunidades de base desabrocharam e as recém-formadas Comissão Pastoral Operária e Comissão Pastoral da Terra tornaram-se os focos ativos da inovação da Igreja”.[15]  

            Mas essas comissões, bem como as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), talvez não tivessem surgido se não fossem as experiências jocistas e o pioneirismo da JOC que, partindo das bases, lançou as raízes para o posicionamento de boa parte do clero nacional junto ao povo. A maioria dos estudiosos da história religiosa no Brasil não vê nenhuma relação entre o jocismo e as CEBs, no entanto. Mas não é difícil localizar antigos militantes e assistentes da JOC envolvidos com essas comunidades. Sabe-se, por exemplo, que algumas das primeiras CEBs surgiram no interior do Maranhão e foram fundadas por pessoas ligadas à JOC. Certamente, o caso do Maranhão não é o único.

            As transformações do catolicismo brasileiro não se realizaram puramente de cima para baixo, do Vaticano II para as bases, mas em sentido inverso, de baixo para cima, com o papel destacado da JOC no processo. Ela contribuiu na formação da Igreja popular e involuntariamente provocou o conflito Igreja-Estado em torno de 1970, além de ter propiciado nova concepção da fé, mais envolvida com a vida concreta dos trabalhadores e com práticas pedagógicas importantes para a pastoral popular. Tanto a JOC como a ACO foram continuadoras de uma tradição iniciada pela JUC, o MEB, a AP e outros movimentos, de uma fé vinculada a uma opção política de esquerda. Mas acabaram dando uma contribuição singular. Enquanto os movimentos anteriores haviam sido liderados por intelectuais de classe média, a JOC e a ACO tinham uma visão mais popular. O seu ponto de vista era, de um modo geral, a situação material, a fé e os valores do povo. E parte integral dessa nova fé era encarar Cristo como um pobre que escolheu outros pobres e trabalhadores como seus discípulos e que veio para salvar os pobres acima de todos, atacando os ricos e poderosos ao clamar por justiça social. Foi essa temática que se fez presente na Igreja popular. Criada com o objetivo de trazer a Igreja até a classe operária, de cristianizar a classe operária, seu significado histórico reside em ter feito o oposto, ou seja, em ter ajudado a Igreja a compreender a classe operária.

            A JOC ajudou a Igreja a reavaliar seus tradicionais paternalismo e elitismo com as classes populares. Influenciados por outras experiências em educação e cultura populares, os assistentes da JOC foram pioneiros na sua reflexão sobre os princípios pedagógicos do trabalho pastoral junto às classes populares. Afirmavam que os trabalhadores tinham algo a ensinar e que eram seres humanos completos, dignos de tanto respeito quanto os outros.

           “A ênfase no valor humano fundamental de todos e na importância do respeito às massas, característica da Igreja popular contemporânea, emergiu da JOC por volta de 1963” .[16]  

            O movimento jocista organizou-se como representativo de parcela da sociedade civil: os operários jovens. Norberto Bobbio discorre sobre a questão da sociedade civil em sua obra, afirmando que:  

           “A digressão histórica mostrou a variedade de significados, inclusive entre si contrastantes, com os quais foi usada a expressão ‘sociedade civil’. Resumindo, o significado predominante foi o de sociedade política ou Estado, usado porém em diversos contextos conforme a sociedade civil ou política tenha sido diferenciada da sociedade doméstica da sociedade natural, da sociedade religiosa.

           (...)

           Nestes últimos anos pôs-se a questão de saber se a distinção entre sociedade civil e Estado, que por dois séculos teve curso, teria ainda a sua razão de ser.

           (...)

           Sob este aspecto, sociedade e Estado atuam como dois momentos necessários, separados mais contíguos, distintos mas interdependentes, do sistema social em sua complexidade e em sua articulação interna”.[17]  

            É esta separação entre Estado e sociedade civil, tão discutida e aceita durante séculos, que convém analisar no caso da JOC. Principalmente se levarmos em consideração o confronto entre o movimento e o Estado brasileiro sob o governo dos militares. E ainda o confronto entre o clero, como um Estado religioso, e os leigos, a sociedade civil. E como Bobbio diferencia ainda esta sociedade religiosa, é conveniente esclarecer que a JOC, embora sendo um movimento organizado pela Igreja, pretendia ser antes de tudo representativo do operariado, construído a partir da fábrica, do meio em que o operário vivia, para levá-lo de volta à Igreja.

            Durante os últimos anos da década de 60 os movimentos populares da Igreja Católica ganharam uma força sem precedentes no Brasil. Afetaram muitos líderes da Igreja, tanto por chamarem a atenção para a importância de se dar apoio às reformas quanto por criarem, no caso dos grupos conservadores, uma conscientização do rápido crescimento da esquerda. E o papel do laicato dentro da Igreja foi algo que evoluiu a partir do Vaticano II. A JOC, como os demais movimentos leigos deste período, tentou alcançar autonomia. Acabou conseguindo, de certa maneira, pois chegou a ser abandonada pela hierarquia eclesiástica no seu momento mais dramático durante a repressão. Quando esta mesma hierarquia despertou para o problema, o movimento já estava enfraquecido.

            Enfim, a JOC procurou, à sua maneira, despertar uma consciência de classe na juventude operária do Brasil dos anos 50 e 60. Foi a “utopia” jocista, massacrada pelo regime militar, mas que marcou a história dos movimentos sociais da Igreja no Brasil, como precursora de uma nova ordem social, política, econômica e cultural, até mesmo religiosa. .

 

Notas e Referências

[1] MURARO, Valmir Francisco. Juventude Operária Católica. São Paulo, Brasiliense, 1985.

[2] Citado em LÖWY, Michael. Ideologias e Ciência Social. Elementos para uma análise marxista. São Paulo, Cortez, 2002.

[3] MURARO, Valmir Francisco. Op. cit.

[4] MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil (1916/1985). São Paulo, Brasiliense, 1989, p. 141.

[5] MAINWARING, Scott. Op. cit., p. 141.

[6] É conveniente esclarecer que a JOC foi fundada como um movimento autônomo que nada tinha a ver com a Ação Católica. Com o tempo, a JOC brasileira acabou tornando-se um dos ramos especializados da ACB, isto é, voltado para uma parcela específica da população.

[7] NOGUEIRA, Marco Aurélio. As possibilidades da política. Idéias para a reforma democrática do Estado. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1998.

[8] In MURARO, Valmir. Op. cit.

[9] In MELUCCI, Alberto. A Invenção do Presente. Movimentos Sociais nas Sociedades Complexas. Petrópolis, Vozes, 2001.

[10] SERBIN, Kenneth. Diálogos na Sombra. Bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo, Cia das Letras, 2001.

[11] NOGUEIRA, Marco Aurélio. Op. cit.

[12] MURARO, Valmir Francisco. Op. cit.

[13] MELUCCI, Alberto. Op. cit.

[14] NOGUEIRA, Marco Aurélio. Op. cit.

[15] MAINWARING, Scott. Op. cit., p. 157.

[16] MAINWARING, Scott. Op. cit., p. 159.

[17] BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade. Para uma teoria geral da política. São Paulo, Paz e Terra, 2001, p. 49.

 

Referências bibliográficas  

BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade. Para uma teoria geral da política. São Paulo, Paz e Terra, 2001.

LÖWY, Michael. Ideologias e Ciência Social. Elementos para uma análise marxista. São Paulo, Cortez Editora, 2002.

MAINWARING, Scott. Igreja Católica e política no Brasil (1916/1985). São Paulo, Brasiliense, 1989.

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MURARO, Valmir Francisco. Juventude Operária Católica. São Paulo, Brasiliense, 1985.

NOGUEIRA, Marco Aurélio. As possibilidades da política. Idéias para a reforma democrática do Estado. São Paulo, Paz e Terra, 1998.

SERBIN, Kenneth. Diálogos na Sombra. Bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo, Cia das Letras, 2001.