34.MINHAS LEMBRANÇAS DE MILTON SANTOS

Sebastião Nery

BRASÍLIA - Na madrugada de 31 de março para 1º de abril de 64, o ex-capitão do Exército Victor Hugo, reformado por "insanidade mental" mas encarregado de "missões especiais" no golpe, na Bahia, de arma em punho e aos berros, invadiu o 10º andar do edifício Napoli, bem em frente ao farol da Barra, em Salvador, para prender os moradores de seus quatro apartamentos:

O professor da Universidade Federal da Bahia e editorialista de "A Tarde", Milton Santos, o colunista social dos "Diarios Associados" Silvio Lamenha, o jornalista de "A Tarde" (depois diretor da Norberto Odebrecht em Brasília) Guilherme Simões, e eu, jornalista e deputado.

Guilherme estava em Porto Alegre, eu tinha ido para o Comício de 13 de março no Rio e ficado lá, dentro da crise das duas últimas semanas do governo de João Goulart, e passei a madrugada na Radio Mayrink Veiga. O capitão maluco levou presos Milton Santos e Silvio Lamenha. Quando voltei do Rio, de caminhão, para tentar reassumir o mandato, já estava cassado e reencontrei o Milton, sereno, sorridente e sábio, na prisão.

Um negro surpreende a Bahia

Em 64, Milton Santos já era mito e símbolo, na nossa Bahia tão disfarçadamente racista. Negro (e não mulato, como a maioria dos baianos), descendente de escravos, desde cedo surpreendeu a preconceituosa província. Nós o chamávamos de Noite Ilustrada, porque falava francês como um gaulês.

Formado em Direito em 48, na UFBA, fez-se logo professor, em Ilhéus e depois em Salvador, e começou a publicar seus livros, que surpreenderam os geógrafos brasileiros, pela originalidade e audácia: "O Povoamento da Bahia" (48), "O Futuro da Geografia" (53), "Zona do Cacau" (55) e outros.

Em 58, já voltava da Universidade de Estrasburgo, na França, com o doutorado em Geografia. E nos encontramos trabalhando ambos em "A Tarde" e na CPE (Comissão de Planejamento Econômico), precursora da Sudene, criada por Romulo Almeida para pensar e construir a moderna Bahia.

Em 60, Jânio Quadros o conheceu na viagem a Cuba e, eleito, nomeou sub-chefe da Casa Civil na Bahia. Continuou fazendo pesquisas e livros ("Localização Industrial", "A Cidade como Centro de Região" e outros). Em 63, no governo Lomanto Junior, presidiu a CPE.

Solto por Braudel

No "Globo", o Emir Sader diz que "Lomanto Junior, seu colega de juventude, foi preso (sic) com ele". Nada disso. Lomanto, governador do PTB, aderiu ao golpe logo na madrugada e Milton foi para a cadeia sozinho.

A "Folha" diz que, "preso 60 dias em Salvador, só foi libertado porque sofreu um princípio de infarto". Errado também. Passou mal lá na prisão, mas não foi infarto. Foi solto porque professores e intelectuais franceses, seus colegas em Estrasburgo, acionaram o historiador francês Fernando Braudel, um dos fundadores e pioneiros da USP (Universidade de São Paulo).

Cabelos brancos, rosto corado, incrivelmente jovem para seus então 70 anos, o mestre Braudel me contou em 73, em Paris, em sua biblioteca imensa, com 4 mil volumes sobre o Brasil e a América Latina. Ensinou em São Paulo de 33 a 37, onde foi colega de Levi Strauss, Caio Prado Junior e outros, "Gosto muito do mundo de vocês. Quando Caio Prado foi preso, em 64, passei um telegrama ao presidente Castelo Branco e ele me telegrafou dizendo que tinha mandado soltar o Caio Prado.

O Castelo foi adido militar aqui na França. Quando vinha a Paris, me procurava. Em 48, estive no Brasil e ele me convidou para fazer uma conferência na Escola Superior de Guerra, sobre Napoleão. Mostrei documentos provando que um dos objetivos do programa da Revolução Pernambucana de 1817, a Confederação do Equador, era libertar Napoleão prisioneiro em Santa Helena. Vocês brasileiros são uns românticos. Nem barco tinham e queriam soltar Napoleão em pleno mar".

E contou que, através da embaixada francesa no Brasil, encaminhou ao governo brasileiro um pedido de professores franceses para soltar "um geógrafo ilustre lá da Bahia, doutor de estrasburgo". Era Milton Santos. Na saída deu, a mim e à minha mulher, aluna dele, um livro sobre seus 70 anos e disse, "Nada disso tem importância. A única importância é ser feliz" (Tudo isso está em meu livro "Socialismo com Liberdade", de 74).

O nosso único Nobel

A imprensa refletiu bem a grande perda que foi a morte de Milton Santos. Exilado, passou de 64 a 77 ensinando na França, Estados Unidos, Canadá, Peru, Venezuela, Tânzania. Escrevendo e lutando por suas idéias.

Foi o único brasileiro e receber um "prêmio Nobel", o Vautrin Lud, que é como um Nobel de Geografia. Ainda bem que a "Record", editora de seus magistrais "Por Uma Outra Globalização" e "Território e Sociedade no Século XXI", vai reeditar toda sua obra. Um grande homem.

índice