Universidade, comunidade e os aviões-bomba
Geógrafa afirma que a academia está perplexa com os atentados
que implodiram o mundo preconizado pelos EUA.
Aviões-bomba aturdiram os Estados Unidos e o restante da Terra no dia 11 de setembro.
Que relação os atentados poderiam ter com a Unicamp, com uma entidade
não-governamental, agentes de saúde e crianças de uma região carente de Campinas?
“A comunidade científica está perplexa e calada diante do significado dos ataques
terroristas aos EUA. A academia não vem tendo coragem de
discutir esse evento dentro da própria ciência e da sociedade mundial”.
Declara, em tom desafiador, Maria Adélia Aparecida de Souza,
professora de Geografia Humana do Instituto de Geociências (IG)) da Unicamp
e docente aposentada pela USP.
A conferência de Maria Adélia abriu o
II Encontro Comunidade Saudável e o II Simpósio Ciência e Sociedade:
Economia Solidária.
Na platéia estavam representantes da Unicamp e do Instituto de Pesquisas
Especiais para a Sociedade (Ipes), que promoveram o duplo evento,
e aproximadamente 300 agentes comunitários de saúde, além de crianças
do Jardim São Marcos, uma das áreas mais pobres de Campinas.
Maria Adélia, logo de início, lembrou Milton Santos,
considerado o maior geógrafo brasileiro e que morreu neste ano:
“Se ele estivesse aqui, o primeiro ponto em que tocaria seria
referente a este evento: a universidade pública brasileira deve estar
sempre aberta para a comunidade. O segundo ponto, e que
deve centralizar essas discussões, é como o pensamento
profundo produzido na academia chega ao São Marcos, por exemplo?
Que mundo é este que a mídia chama de globalizado?”.
Sem esconder a indignação, Maria Adélia constata
que os estudos sobre o avanço do processo da globalização e suas resultantes
sociais, não mostram a difusão do bem-estar nem os temas centrais em torno da
economia solidária e da comunidade saudável. “Dados divulgados pelos próprios
países que representam os ricos (ONU, FAO, OMC) revelam que há um avanço
mundial da pobreza e da fome”, comenta. Ligando a região do São Marcos a Nova
York, a professora afirma: “Milton Santos prenunciou há dois anos que o mundo
estava entrando no período popular da história, quando o mando estará com a
política e não com a economia. O que garantia a compra das mercadorias pela
população mundial era o trabalho. Não existe mais emprego. Nossos braços, nossa
inteligência e nossa dedicação foram substituídos pelas máquinas”. Tropel de
eventos A alta tecnologia do mundo virtual, predominante atualmente, nos
permite tomar decisões mais acertadas sobre o futuro, admite Maria Adélia.
“Só
que, como disse Milton Santos, este tropel de eventos desmente verdades
estabelecidas da inviolabilidade, do poder da segurança. Foi tudo por terra.
Demanchou-se o saber e ai daquele que construir sua forma de pensar a partir do
que vem do Norte”.
Para a pesquisadora do IG, as redes de informação
que cruzam o planeta não atingem os buracos que na verdade são territórios
invisíveis, onde é possível montar estratégias que desmontam num “átimo” de
segundo o poder e a inviolabilidade. “O terrorismo e o narcotráfico já
perceberam isso. A classe média e a universidade ainda não o perceberam porque
fazem sua ciência com base em princípios e teorias do século 19”, critica. A
grande arma No que chama de “triste instante da história da humanidade”,
Maria Adélia acusa os EUA de declararem guerra a todo um povo, no caso o
afegão, para localizar um único homem que pode nem estar naquele país. “Bin
Laden talvez esteja lá, mas a discussão, hoje, é de um novo modelo de
sociedade. Por que os Estados Unidos brigam com os afegãos? Os norte-americanos
têm que se entender com todos os povos pobres do mundo. É isso que está em
discussão. A grande arma atual é a solidariedade”. A professora sustenta que,
sem a presença do Estado, o que nos resta é a construção de uma rede de
solidariedade, já que a população pobre soma mais de 4 bilhões de vidas. “O
período popular da história, a que se referiu Milton Santos, envolve uma nova
humanidade, onde se construirá a paz através da consolidação de mecanismos
solidários que não serão fabricados em laboratórios. Já estamos em pleno
período popular da história”.
A perda de dois Santos
Maria Adélia relacionou os atentados de 11 de
setembro também ao assassinato do prefeito de Campinas Antonio da Costa Santos,
ocorrido na noite anterior. “Com Milton Santos, perdemos dois Santos em 2001.
Um porque era intelectual brilhante e não cuidou da saúde para escrever sua
obra destinada exclusivamente aos pobres. Com ele aprendi que a universidade
tem de ser um território livre das grandes batalhas, o que é difícil, porque a
universidade é prisioneira dos interesses hegemônicos”. Quanto a Toninho do PT,
ela afirma que o crime, qualquer que tenha sido o motivo, aconteceu porque a
sociedade abandonou o seu território, agora ocupado pelos bandidos. “O
território onde vivemos foi abandonado pelo governo e pelas elites, que
comandam o processo político e por isso são os responsáveis pela morte do
Toninho”, atacou. O conceito de globalização apregoando o estado mínimo, o
governo enxuto, na opinião da professora elimina quaisquer possibilidades de
administrar a coisa pública ou território. “A iniciativa privada jamais deve
substituir o governo na administração do território e é isso o que está
acontecendo hoje”.