Universidade, comunidade e os aviões-bomba
Geógrafa afirma que a academia está perplexa com os atentados 
que implodiram o mundo preconizado pelos EUA. 

 

JOÃO MAURÍCIO DA ROSA

 
Aviões-bomba aturdiram os Estados Unidos e o restante da Terra no dia 11 de setembro.
Que relação os atentados poderiam ter com a Unicamp, com uma entidade
não-governamental, agentes de saúde e crianças de uma região carente de Campinas?
 
“A comunidade científica está perplexa e calada diante do significado dos ataques
terroristas aos EUA. A academia não vem tendo coragem de
discutir esse evento dentro da própria ciência e da sociedade mundial”.
Declara, em tom desafiador, Maria Adélia Aparecida de Souza,
professora de Geografia Humana do Instituto de Geociências (IG)) da Unicamp
e docente aposentada pela USP.
 
A conferência de Maria Adélia abriu o 
II Encontro Comunidade Saudável e o II Simpósio Ciência e Sociedade:
Economia Solidária
.
Na platéia estavam representantes da Unicamp e do Instituto de Pesquisas
Especiais para a Sociedade (Ipes), que promoveram o duplo evento,
e aproximadamente 300 agentes comunitários de saúde, além de crianças
do Jardim São Marcos, uma das áreas mais pobres de Campinas.
 
Maria Adélia, logo de início, lembrou Milton Santos, 
considerado o maior geógrafo brasileiro e que morreu neste ano:
“Se ele estivesse aqui, o primeiro ponto em que tocaria seria
referente a este evento: a universidade pública brasileira deve estar
sempre aberta para a comunidade. O segundo ponto, e que
deve centralizar essas discussões, é como o pensamento
profundo produzido na academia chega ao São Marcos, por exemplo?
Que mundo é este que a mídia chama de globalizado?”.

 


A professora viu este mundo literalmente implodido no ataque terrorista ao World Trade Center, quando as duas torres desabaram trágica e simbolicamente diante das câmeras da TV global. “Lamento pelo terrorismo, pelas mortes, mas como cientista não posso deixar de tentar interpretar o quadro. O que acontece quando toda a humanidade, no mesmo instante, toma conhecimento de uma tragédia dentro do país mais poderoso do planeta, que durante séculos nos vendeu a imagem de sua invencibilidade e inviolabilidade?”. Segundo a geógrafa, a ciência se manteve passiva diante do marketing norte-americano em torno da vida segura, da venda de seus produtos ao mundo como ato humanitário e de sua democracia, propaganda que foi esfacelada pelo atentado terrorista. “Essa passividade não deve existir mais. Ficamos atrelados ao dinheiro para nossas pesquisas, o que eu nunca aceitei. Como professora e pesquisadora tenho o dever ético de ser livre e verdadeira, e de arcar com as conseqüências desse meu ato de liberdade permanente, sobretudo dentro da universidade brasileira”.

 

Sem esconder a indignação, Maria Adélia constata que os estudos sobre o avanço do processo da globalização e suas resultantes sociais, não mostram a difusão do bem-estar nem os temas centrais em torno da economia solidária e da comunidade saudável. “Dados divulgados pelos próprios países que representam os ricos (ONU, FAO, OMC) revelam que há um avanço mundial da pobreza e da fome”, comenta. Ligando a região do São Marcos a Nova York, a professora afirma: “Milton Santos prenunciou há dois anos que o mundo estava entrando no período popular da história, quando o mando estará com a política e não com a economia. O que garantia a compra das mercadorias pela população mundial era o trabalho. Não existe mais emprego. Nossos braços, nossa inteligência e nossa dedicação foram substituídos pelas máquinas”.

Tropel de eventos

A alta tecnologia do mundo virtual, predominante atualmente, nos permite tomar decisões mais acertadas sobre o futuro, admite Maria Adélia.
“Só que, como disse Milton Santos, este tropel de eventos desmente verdades estabelecidas da inviolabilidade, do poder da segurança. Foi tudo por terra. Demanchou-se o saber e ai daquele que construir sua forma de pensar a partir do que vem do Norte”.

 

Para a pesquisadora do IG, as redes de informação que cruzam o planeta não atingem os buracos que na verdade são territórios invisíveis, onde é possível montar estratégias que desmontam num “átimo” de segundo o poder e a inviolabilidade. “O terrorismo e o narcotráfico já perceberam isso. A classe média e a universidade ainda não o perceberam porque fazem sua ciência com base em princípios e teorias do século 19”, critica.

A grande arma

No que chama de “triste instante da história da humanidade”, Maria Adélia acusa os EUA de declararem guerra a todo um povo, no caso o afegão, para localizar um único homem que pode nem estar naquele país. “Bin Laden talvez esteja lá, mas a discussão, hoje, é de um novo modelo de sociedade. Por que os Estados Unidos brigam com os afegãos? Os norte-americanos têm que se entender com todos os povos pobres do mundo. É isso que está em discussão. A grande arma atual é a solidariedade”. A professora sustenta que, sem a presença do Estado, o que nos resta é a construção de uma rede de solidariedade, já que a população pobre soma mais de 4 bilhões de vidas. “O período popular da história, a que se referiu Milton Santos, envolve uma nova humanidade, onde se construirá a paz através da consolidação de mecanismos solidários que não serão fabricados em laboratórios. Já estamos em pleno período popular da história”.

 

A perda de dois Santos

 

Maria Adélia relacionou os atentados de 11 de setembro também ao assassinato do prefeito de Campinas Antonio da Costa Santos, ocorrido na noite anterior. “Com Milton Santos, perdemos dois Santos em 2001. Um porque era intelectual brilhante e não cuidou da saúde para escrever sua obra destinada exclusivamente aos pobres. Com ele aprendi que a universidade tem de ser um território livre das grandes batalhas, o que é difícil, porque a universidade é prisioneira dos interesses hegemônicos”. Quanto a Toninho do PT, ela afirma que o crime, qualquer que tenha sido o motivo, aconteceu porque a sociedade abandonou o seu território, agora ocupado pelos bandidos. “O território onde vivemos foi abandonado pelo governo e pelas elites, que comandam o processo político e por isso são os responsáveis pela morte do Toninho”, atacou. O conceito de globalização apregoando o estado mínimo, o governo enxuto, na opinião da professora elimina quaisquer possibilidades de administrar a coisa pública ou território. “A iniciativa privada jamais deve substituir o governo na administração do território e é isso o que está acontecendo hoje”.


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