O CANTO
Voltar ao Ïndice
Textos de Jorge Ribeiro Araújo - Academia Caetiteense de Letras - Caetité - Bahia - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor
Eu não posso, como o unicórnio azul,
cantar a neve que limpa as colinas
e esconde a aridez dos morros esmaltados.
Eu canto o cascabulho e a terra rachada
dos fundos dos lagos ressecados
onde a lágrima se evapora
ao menor contato.
Eu canto o vento quente
que queima a lagoa de meus olhos.
E quando o sol, padrinho tirano, se retira, 
a brisa  fria da noite                            
vem lamber as feridas
e as bocas ressequidas.
Eu canto a perseguição à fêmea
nas labaredas dos grotões
nas areias dos barrancos
antes que esse vento furioso
a seduza numa noite cravejada de estrelas cadentes.
Eu canto,
não a neve que o unicórnio vê,
mas o cheiro dos currais
que atrai e repugna,
que cavalga o tempo
nas veredas de mandacarus
farejando os cios.
Eu não posso cantar as catedrais
ou as avenidas de cristais,
nem os gemidos dos viadutos
ou o cheiro podre dos dejetos humanos.
Eu canto, ó musa dos sertões,
as dores e as paixões
nos rastros dos cangaceiros.
Eu canto as solidões dos caatingais
onde não há jornais
nem zumbidos de balas perdidas encontradas
que fazem flores de sangue no asfalto
e se abrem  no peito de mães decapitadas.
Eu não posso cantar os anjos negros
de asas quebradas,
navalha na algibeira e língua bífida.
Tenho os urubus e as baraúnas
e um pacto com o sol e o ferro.
Tenho uma filha que o vento bulina
e um filho que corta a barriga da terra
e um neto escondido.
Livres da covardia,escravos da liberdade.
Meu tesouro é o murmúrio da noite
que espalha segredos
que as novelas podem desmentir
com mentiras de um sabor nojento.
Meu tesouro é o luar que não esconde
o pirilampo de mil cores.
Vou apenas aonde meu cavalo vai.
E meu cavalo é o sonho.
Aqui não há dor, há destino!
                        JRA abril de 2003