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Textos de Jorge Ribeiro Araújo - Academia Caetiteense de Letras - Caetité - Bahia - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor
UM ARTISTA DA MISÉRIA
         Mucugê é uma pequena e antiga cidade que descansa preguiçosa  ao lado de uma das montanhas da Chapada Diamantina, com suas casas velhas, suas ruas de pedra e seu cemitério bizantino, onde jazem coronéis. Além de preciosidades minerais no passado, exportou na década de 70, um andarilho de pequena estatura, quase um pigmeu, que pedia esmolas nas cidades da região. Ele aparecia em temporadas, como as pombas de bando tinham seu tempo, como o umbu tinha sua época. Chamava-se Sebastião, e falava ligeiro trocando o G por Z e engolindo o R dos encontros consonantais.
          -Você é de onde Tião?
          -De Mucuzê. Sou de Mucuzê.
          "Cada doido tem sua mania", diz o adágio popular. Esse pedia esmola e a colocava num pequeno saco de pano; o dinheiro apenas entrava na sacola, sair, nada. Podia ser um óbolo irrisório, qualquer quantia, mas tinha que ser inteira porque ele não dava troco. Se alguém chegasse com uma nota de cem reais e lhe pedisse um real de volta, dando-lhe noventa e nove, ele dispensava no ato, não queria. Dinheiro caiu no saco pronto, não saía mais.
          As pessoas pouco generosas ou ranzinzas descobriram um jeito de afastá-lo, de fazê-lo fugir como o diabo da cruz, quando ele se aproximava praticando seu ofício: antes da expressão corriqueira - me dá uma esmolinha aí! - alguém se adiantava e lhe pedia um dinheiro emprestado. Bastava; ele dava meia volta e sumia sem conversa. Emprestar dinheiro era como receber uma facada. Moleques e adultos debochados se juntavam para negociar com ele seu produto peculiar. Ele vendia peidos, peidos sonoros e rasgados em quantidades que dependiam do comprador.
          -Quero cinqüenta Tião. Quanto é?
          -Cinqüenta é dois reais.
          -Então tá. Comece!
          E após receber o pagamento, sério como um comerciante qualquer, entregava a mercadoria, contando:
          -Um, dois, têis,...quarenta e nove, cinqüenta. Vou dar dois de agado!
          No rosto dos presentes, no meio da balbúrdia, desenhava-se uma interrogação: como ele fazia aquilo? Vendia dez, cinqüenta, cem ou mais e ainda dava alguns de gratificação; no final dava um sorrisinho matreiro e saía. Será que Tiãozim tinha algum instrumento escondido nas calças? Pairava a dúvida, mas depois se soube que eram gases intestinais autênticos, felizmente inodoros. Muitos anos se passaram sem notícias dele. Ninguém informava de seu paradeiro.
          Há algumas semanas, voltando da cidade histórica de Lençóis, encontrei, na terra natal de nosso astro, um ancião num restaurante de comida caseira, que me deu informações impressionantes. Tiãozim estava vivo, o tempo pouco tinha lhe deformado as feições, possuía casa bonita, podia até ser chamado de rico, tinha casado com uma mulher nova e alta que há pouco o deixara, casara-se de novo, e continuava pedindo esmolas em cidades distantes onde não era conhecido. Diante dessa revelação inusitada, achei que o velho se enganara e para certificar-me, indaguei se era aquele que vendia peidos a granel e ele disse, com absoluta segurança:
          -Esse mesmo. É Tiãozim mesmo.
          Voltei pra casa surpreso e feliz após experimentar o pirão de galinha caipira da terra de Tiãozim.