Já se disse que o medo é também filho do cansaço e da solidão. Na madrugada o medo fertiliza a imaginação. Na madrugada os sonhos libertam os espíritos das amarras dos corpos. Sábios indígenas acreditam que os espíritos deixam os corpos e viajam pela floresta durante as noites, avaliam os estragos que o homem branco fez durante o dia. Essa deve ser a causa da solidão que nos abraça quando estamos acordados enquanto todos dormem e sonham. Cercados de corpos "desalmados", a sós, e em geral cansados, portanto sob o império do medo, todos os ruídos despertam atenção. Se não há companhia, mais intensos esses fenômenos. A noite é a vez da hegemonia da audição. Vencido o impacto inicial gerado pelo sentimento que protege os dentes, a inteligência tolhida da maioria dos sentidos que lhe trazem o mundo, processa os estímulos que chegam por uma audição hipertrofiada. Os assombrados podem entrar em pânico nessa hora. Um tropeiro morto há tempos, contou que as casas emitem sons peculiares, que as identificam, e que são claramente percebidos no silêncio das noites. As observações foram colhidas de suas andanças e estadias sob os mais variados tetos das cercanias por onde conduzia comboio de mulas. Ocasiões houve em que lhe serviram de bússola, quando lapsos de memória desorientavam, em noites de insônia, deixando-o perdido na escuridão do quarto, sem saber onde estava. Era possível reencontrar-se ao ouvir estalidos, pingueiras, portas e janelas emperradas rangendo, gemidos de cama, roedores noturnos, roncos de moradores e os incontáveis sons produzidos pela ação do vento nos coqueirais e outras árvores vizinhas, assobiando nos fios elétricos, nas frestas de janelas, sem falar de sons distantes vindos de cachoeiras, de sinos em alvoradas, de animais, de automóveis, etc. Como as impressões digitais identificam as pessoas, esses caracteres sonoros são impressões auditivas que identificam as casas. Todas as casas têm suas identidades sonoras, melhor percebidas à noite; é só procura-las, dizia ele. Podem se repetir em alguns lugares, mas em seqüências, números e tonalidades peculiares, que o observador arruma formando um corpo de identificação; tais acordes constituem um arranjo próprio que revela a sinfonia de cada morada, partitura executada sob a batuta do medo. As mentes mais férteis ouvem até sussurros de almas outrora residentes, mas isso o tropeiro não contou. |