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Textos de Jorge Ribeiro Araújo - Academia Caetiteense de Letras - Caetité - Bahia - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor
O Dédalo do Recreio
         Se você não pode destruir o inimigo, junte-se a ele. Assim agiu instintivamente Licindo, ermitão que se escondia no velho casarão do Recreio, castelo mal-assombrado, cercado de cactos e seres imaginários, que em noites enluaradas se destacava à beira dos penhascos. Recreio, vasta região de alagadiço entre o Rio Paramirim e as montanhas, nos fundos da pequena urbe, onde em se plantando tudo dá! Serpentes e corujas vasculhavam a área, e a cascavel encontrou embaixo da cama do anacoreta, entre poeira e teias de aranha, abrigo do sol inclemente. O temor de um confronto ameaçador impôs uma relação de tolerância entre os títeres da caatinga. Ao nascer e ao morrer do dia, se encontravam os dois seres de hábitos antagônicos, como os enfeitiçados de Áquila: a cobra, predadora noturna, e Licindo, parasita diurno. No imaginário do povo da cidade o réptil crescia sem parar, devorando roedores e lagartixas, sob o ronco distraído do cúmplice solitário adormecido, e por isso os curiosos se afastavam. No casarão morava um homem terrível, que tinha poderes sobrenaturais, dormia em um ninho de cascavéis! Em noites sem lua viajava por terras desconhecidas, do outro lado das montanhas, em reinos encantados onde ninguém andou!
          Iô, como era conhecido na região, raramente era visto; podia ser esperado em aparições-relâmpago, se esgueirando atrás dos carros-de-bois, fugindo de olhares incrédulos, nos dias de feira, em busca da meiota de pinga, combustível para viagens fabulosas naquele universo alienado.
          Conta-se que Iô resolveu construir uma bicicleta de madeira, com guidom, rodas, catraca e tudo; após vários dias de labuta artesanal, triunfante, experimentou seu engenho em uma ladeira de pedregulhos que dava acesso a seu 'ateliê'. Quem estava na vizinhança acreditou ouvir um trovão seguido de um mugido assustador, quando o trambolho se espatifou com sua montaria. Cacos e lacerações revelaram as diferenças das resistências dos materiais ao Dédalo do Recreio.
          Ninguém sabe que fim levou Iô. Deve ter subido ao panteão da mitologia popular. A vã filosofia que não pôde imaginar quanta coisa há entre o céu e a terra, não conseguiu matar o mito. Um menino jura que viu uma serpente gigante com cabeça humana e cabelos desalinhados deslizando na direção dos penhascos.