Encontrou-se entre os escombros das ruínas de Kandahar, no país afegão, um embornal de couro que continha alfarrábios, um punhal de prata e uma promessa de vingança. Ao ser aberto, o cheiro de pólvora e sangue percorreu o mundo. Na parte da frente do embornal, impresso a ferro candente, lia-se: V. F. - Lampião. O garoto das montanhas, o eleito, ante cujos olhos o pai fora dilacerado sob o impacto de um míssil Tomahawk, indagou a Alah, porquê? E antes que a noite encobrisse as dunas, bem antes que a poeira do deserto lhe mostrasse um novo rumo, tingiu-se de negro seu coração, onde um duelo secreto e sórdido se instalou - matar ou morrer? Entre os alfarrábios, um minucioso mapa de Manhattan com uma cruz assinalando o World Trade Center e instruções de como pilotar um Boeing. A dialética transcendental impôs à infame rebeldia uma obstinação irrevogável. Morrer matando! Eis o absurdo imprevisível, que na análise imediata se contrapõe à lógica da vida, mas vislumbra no amanhã uma razão peremptória para justificar sua própria atrocidade, em prol das gerações vindouras - do direito de viver. Talvez a dor e o sangue derramado mostrassem os desígnios divinos aos infiéis impiedosos. E os homens grandes, mesmo os anônimos, sempre pagarão com sangue a fidelidade a certos ideais. Das caatingas castigadas dos sertões da América do Sul, onde a carne desidratada e envelhecida ainda pede clemência, o dono do embornal, estremeceria na catacumba, se seu corpo não houvesse sido devorado por aves de rapina, e a cabeça degolada, exibida à prepotência dos covardes. Mas aquilo que não morre, na fé dos cangaceiros sanguinários, na sede de vingança das vítimas dos facínoras travestidos e lançadores de mísseis, na esperança dos injustiçados, aquilo que não morre, há de revoltar-se nos céus ou nos infernos. Essas almas sublevadas hão de fazer um rebuliço na eternidade. Lá, Virgulino Ferreira vocifera indignado sem entender como um assassino desalmado adquire tamanho poder, sob os olhares incrédulos e impotentes da maioria dos homens ou com a conivência covarde de outros. Se fora ele cruel, a crueldade se revelara sua única opção, porque ao dorso do homem brioso é intolerável a canga e o chicote. O mundo que acolhe Jesus, Gandhi, Mandela, Lenon, Irmã Dulce, acalenta também Barrabás, Che Guevara, Tiradentes, Mao Tsé Tung, Lampião, e o menino revoltado do deserto. |